<%@ Language=VBScript %> De volta de outra vida - conto tirado da Mala de Histórias

 

 

Quem morre pode voltar para o mundo dos vivos?

De volta de outra vida

 

 

(conto tirado da Mala de Histórias)

 

(mistério)

 

  

             Joel é pescador na ilha de Itamaracá na costa norte de Pernambuco. Casado, cinco filhos, podia ter vida melhor se possuísse um barco a motor, com que pescaria muito mais. Mas falta dinheiro para tanto. Tem de se conformar com a jangada de vela branca que ele mesmo fez. Leva, pois, sua vida de trabalhador do mar com os próprios recursos como acontece com seus colegas de profissão. Sobre essas coisas está ele a palestrar com Paulo, colega de profissão, ambos sentados em banco da Praça do Pilar, em frente à igreja, numa noite de janeiro de 1990:

                -- Sabe, Paulo, tenho vinte anos de pescaria e não vejo melhoria nenhuma mesmo. Só essa história de aposentadoria. Aposentar a pobreza. Só isso.

                -- Eu, também, Joel levo a mesma vidinha faz quinze anos.

               -- Mas, antigamente, parece que tinha mais peixe.

               -- Ah! Isso tinha mesmo. Era muito difícil a gente ter um dia sem peixe. Hoje é um dia ou outro. O que vale é que um pescador ajuda outro. Quem pega peixe, come. Quem não pega, come também porque ganha. Ninguém passa fome. É Nossa Senhora do Pilar que protege os pescadores.

               -- Por que essa falta de peixe?

               -- Dizem é que porque o mar fica cada vez mais sujo de porcaria que jogam nele. É a tal de poluição.

               -- Tem mais o lixo da praia que o mar carrega todo dia. O veranista suja a praia, e o mar limpa. É assim quase todo dia. Desse jeito, o mar só pode ficar sujo.

               -- Mas isso é mais no mar-de-dentro.

               -- Mas o mar-de-fora já está ficando sujo também. A gente está vendo isso todo dia. Se a sujeira aumenta, vai morrer muito peixe.

               -- A culpa dever ser dos veranistas que sujam tudo.

               -- Mas veranista tem que ter. Ele é quem traz dinheiro pra melhorar isso aqui.

               -- E de quem é mais a culpa?

               -- Da prefeitura que nunca limpou a praia. Deixa a limpeza com o mar. Parece até que ele é funcionário do governo.

               -- Essa prefeitura daqui é pobre. Não tem dinheiro pra isso. Só pode sustentar uma cidade de nativo. Não agüenta um mundão de cidade dessa quando começa o verão, dez ou quinze vezes maior.

              -- É mesmo! E o imposto das casas dos veranistas? Tem casa pra peste.

              -- Tem, mas nem a metade paga.  Se Itamaracá tivesse comércio e fábrica grande como Itapissuma tem, a prefeitura tinha dinheiro que dava pra limpar tudo. Foi o que me disse um rapaz que trabalha na prefeitura.

              -- Desse jeito está ruim.

              -- Está mesmo.

              -- A pescaria está se acabando. Hoje não se vê aqui muito pescador independente como tinha antes. Tem um ou outro. Quase todo mundo trabalha pra empresa na pesca de lagosta.

              -- Isso porque o cabra ganha mais assim, que tem barco a motor e tudo mais. E o pão todo dia é certo. Se o sujeito ficar só com sua jangadinha, vai comer de esmola também.

              -- É isso mesmo! O governo devia dar condição pra o pescador ter seu barco a motor e viver da pescaria.

            -- Agora, o peixe está se acabando. A lagosta, também, com essa sujeira do mar. Do jeito que vai, daqui a uns anos não tem mais nada.  Hoje o cabra, se quiser peixe de primeira aqui, tem que trazer de fora.

              -- Quando eu era pequeno, meu pai todo dia trazia peixe grande que dava gosto ver. Tinha muito peixe bom aqui. Hoje é essa pindaíba.

              -- A conversa está boa, mas é quase nove horas. Eu tenho que ir pra casa tirar um ronco, que duas da madrugada vou aventurar com minha jangada no mar-de-fora. Boa-noite!

              -- Boa-noite! Fiz isso hoje. Nessa noite vou descansar, que estou com um sono danado.

              Joel vai dormir. A uma e meia levanta-se. Toma o rotineiro café com pão, posto por sua mulher Rita, vinte anos de casada,  quebrada pelo tempo e trabalho duro em casa e à noite na venda de tapioca aos veranistas. Mas é o que se pode chamar de uma parceira ideal. Está sempre ao lado dele, sofrendo com ele em todos os momentos, sem uma queixa sequer. E olhe que, de certa forma, ela abraçou uma cruz quando casou, pois Joel muito pouco lhe pôde dar, a não ser amor, uma tapera e cinco filhos. Como quem tem amor tem tudo, é feliz junto com o marido. Este ainda se lembra bem do que disse o padre no dia distante de seu casamento:

               “Muitos casais brigam a todo instante e acabam por separar-se porque falta a um dos dois ou aos dois esse tipo de aceitação do outro tal como é: com virtudes e defeitos. As pessoas se separam porque não mais se aceitam como são. É falta de amor verdadeiro. Os casamentos devem começar, pois, com muito amor. Só com paixão não adianta porque esta  acaba com o tempo, vindo em seu lugar a indiferença ou a inimizade, quando não o ódio. Gostem-se, cultivem sempre o amor e sejam felizes".

              É bem o caso de Joel e Rita. São amigos e amantes de verdade, felizes numa palavra. Nem de longe pensam em separação. Acham-se feitos um para o outro. Completam-se como a panela e o testo.

            Antes das duas da madrugada, está Joel na praia do Pilar, a empurrar sua jangada para o alto-mar. Acompanha-o, além de víveres (café, água, pão, bolacha etc.), o veranista Marcelo que vive a conversar com ele sobre coisas da vida de pescador. O rapaz do Recife pediu a ele que o levasse a uma pescaria. Queria viver a experiência tantas vezes narrada, embora o pescador o tenha prevenido acerca dos medos que o mar pode causar a quem não é habituado a ele. Mas Marcelo está mesmo decidido a participar do evento. Em pouco tempo, os dois iniciam a pescaria no mar-de-fora. Regular quantidade de peixes pescados. O oceano está tranqüilo. Ventos fracos, ondas leves. Com mais alguns minutos, o vento aumenta e as ondas sobem, o que faz Marcelo dizer:

            -- Essas ondas estão muito fortes! A jangada sobe a onda e depois desce ligeiro como um carro de ladeira abaixo, sem freio. A gente tem a impressão que a jangada vai arrebentar-se lá em baixo. Estou começando a ter medo.

            -- É assim mesmo, Marcelo. Depois, passa. Pode ficar calmo!

            -- E se a jangada virar?

            -- Ela não vira. Muda de feição como eu já lhe expliquei. Se ela mudar de feição, a gente cai na água, nada e desvira a bicha. Depois, continua. Não tenha medo!    

            A violência das águas não passa como previra o pescador. Ao contrário, as coisas vão se agravam cada vez mais. Ondas cada vez maiores, ventos mais violentos, a ira do mar chega a limites nunca vistos por Joel em seus vinte anos de pescador. O pânico toma conta dos dois. Joel jamais imaginou que uma simples pescaria pudesse lhe reservar espetáculo tão apavorador. Marcelo está arrasado. Num dado momento, vem uma onda muito alta, atirando a jangada e os dois para longe. De imediato, Joel nota que está jogado na água em meio a muita violência. Não avista mais a jangada. Procura o amigo e teme pela sua sorte. Vê apenas um braço levantado a uns cem metros.  Com bastante dificuldade, nada até o lugar onde avistara o braço dele. Nada vê, senão água.  Sente muita piedade do amigo. Continua na luta contra o mar. Tempos depois, sossegam as águas. Só ele sobrevive, sabe Deus como. Cansado da luta feroz, põe-se a boiar, levado para lugar incerto. Depois de cerca de uma hora, já perto do raiar do sol, um hidroavião dele se aproxima para salvá-lo:

             -- Pronto, é o milagre de Nossa Senhora do Pilar! Ela atendeu minha promessa! Estou salvo, graças a Deus! -- diz para si, com muita alegria.

            -- De onde você é? -- indaga o piloto, logo depois do resgate do náufrago.

            -- Sou pescador e moro em Itamaracá, moço. Meu nome é Joel.

            -- O que foi que houve com você?

            -- Tava pescando faz pouco tempo com um amigo. O mar ficou brabo demais. Virou a jangada e deixou a gente dentro d’água. Aí, eu lutei muito pra me salvar. Cansado, estava boiando. Bebi muita água.

            -- E seu amigo?

            -- Foi comido pelas ondas.

            -- Lamentável a perda de seu amigo! De fato, o balançado do mar nesta madrugada foi, talvez, o maior dos últimos vinte anos. Em meia hora, a zanga do mar apavorou muita gente.

            -- O moço vai pra onde?

            -- Vou pra o Recife. Agora a gente só pode pousar no Pina. De lá você pode pegar um ônibus para Itamaracá. Tudo bem? Tem algum dinheiro?

            -- Tudo bem! Dinheiro até que tinha, mas a brabeza do mar levou tudo.

            -- Tome dez reais.

            -- Deus lhe pague, moço!

            -- No hospital onde a gente vai deixar você não vai faltar nada. De lá, você telefona para Itamaracá, avisando.

            Joel é bem atendido no hospital. Fica numa enfermaria com mais cinco pessoas. Tenta ligar para Prefeitura de Itamaracá para dar notícia, mas encontra sempre o telefone ocupado. Arrisca o número de um telefone de um conhecido, porém o resultado é o mesmo.     

            Logo lhe aplicam soro, ficando preso a uma cama por vários dias. Fazem-lhe tratamento para poder voltar para casa. Perde a paciência e a noção do tempo. Passa muitas noites insones. Depois, vem uma pneumonia com outras complicações, a deixá-lo meio inconsciente.

            Afinal, numa tarde sente-se forte outra vez e tem alta. Alegre, pega logo um ônibus para Itamaracá na Praça 17, em frente ao prédio do Grande Hotel. Por sorte, ainda está com os dez reais ganhos do homem do avião. Em menos de duas horas hora está na Ilha. Salta na Praça do Pilar no começo da noite, e avista logo, Paulo, a quem se dirige, com este a dizer-lhe em voz alta, muito assustado:

            -- Que é isso, Joel? É assombração? Tu não morresse na tempestade do mar?

            -- Não, Paulo! Nada disso! Morri não! Estou vivo, graças a Nossa Senhora do Pilar!

            -- Essa história está furada! Isso é uma visagem! Tu já morresse e não sabe! Os peixes do mar comeram teu corpo. Manezinho pescador, na mesma semana que tu te afogasse, achou boiando um pedaço daquela calça azul e da camisa amarela que tu tava na noite da tempestade. Achou também o resto da roupa do finado Marcelo, o veranista que foi com tu. Vai pra teu lugar, Joel! Isso não é tu! É teu espírito!

             -- Continuo dizendo: estou vivo! Pega aqui na minha mão!

            -- Está doido! Eu pego lá em mão de defunto! Não tenho medo de aparição, mas não gosto de falar com alma do outro mundo! Sei que tu vai sumir de uma hora pra outra. Vou dar o fora daqui – diz Paulo, enquanto sai às pressas.

            -- Antes de sair, me responde só isso, Paulo! Como vai Rita, minha mulher?

            -- Tomou casa nova! Amigou-se com Chico Ventão, seis meses depois de tua morte! – grita Paulo, já bem afastado.

            -- Traidora, descarada, sem-vergonha, quenga! – grita 

             O traído sente uma pontada no coração, a vir do ombro esquerdo como se alguém houvesse lhe enfiado pontiagudo punhal a partir de cima. Começa a crer que, de fato, deve estar morto. Nesse exato momento, ouve sua mulher dizer em voz alta:

            -- Joel, Joel, uma da madrugada! Vai, vai logo, acorda, levanta pra tomar teu café! Seu Marcelo já está te esperando na calçada, faz bom tempo! -- insiste ela a empurrar o ombro do marido, a despertá-lo para a realidade.  

 

FIM  

Recife, maio/2002


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Atualizada em 16/04/2004

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Página editada em 08/09/02