« Com frutos em
"Flowers and the color of paint", o álbum datado de 1995
e "Stellafly", já com carimbo deste ano, (curiosamente ambos
com o grafismo essencial azul e negro, a que não serão alheios
a sua paixão pelo mar e o seu temperamento misterioso), os Ithaka
cunharam o panorama musical português pela inovação
e particularidade do seu som, única na forma e, como veremos em
seguida e como muitos unanimemente reconhecem, também no conteúdo.
Autor de poemas ímpares incutidos em musica produzida no nosso país,
Darin Pappas encara o talento multi facetado que não confirma a
regra que diz que "quem tem sete instrumentos, não maneja bem nenhum".
Pelo menos este é por ele magistralmente manejado.
Uma conversa com Darin
Pappas nunca se pode prever, pelo caracter automaticamente renovativo e
que despreende das suas musicas e do seu percurso. E, neste caso, a tendência
confirmou-se, quanto mais não seja pela surpresa (agradável,
devo acrescentar) que o musico expressou quando lhe comuniquei que o assunto
do dialogo era, exclusivamente a componente lírica das suas canções,
por ele escritas em inglês, língua natal com que se sente
mais à vontade, mesmo para esta entrevista.
O cenário quase
edénico, por ele escolhido, situou-nos numa cavidade rochosa, entre
arvores e jardins tropicais, fontes naturais e estatuas sem cabeça,
o local onde provavelmente, despidas da pretensão ou da preocupação
estilística, os seus poemas adquirem pleno significado e se abrem
numa paleta imensa de emoções sinceras e passíveis
de provocar no simples ouvinte identificação e habituação.
Pappas é um
homem calmo, sereno e autêntico, que nutre particular afeição
pela conversa só pela troca de informação que lhe
é inerente e pela possibilidade de se abrir a quem quiser ouvir.
Visivelmente apaixonado por musica, à qual dedica grande parte do
seu tempo, e pela natureza, que preserva até ao ponto de encher
os seus bolsos com invólucros de pastilha elástica, das muitas
que ao longo da entrevista consumiu e deitou fora assim que perderam o
sabor. É nas pequenas coisas que se encontra o bom e o genial, sempre
me contaram, e foi neta entrevista que Pappas se exibiu, como é,
como pensa, como sente e como filtra tudo isso para as suas canções.
Numa canção
a componente musical e a componente lírica são indissociáveis
ou autónomas, na perspectiva de um cantor e musico?
Depende do tipo de
musica. Obviamente, enquanto escritor, considero ser o casamento das duas
coisas o mais importante, mas não acho que boa musica consiga salvar
uma letra má e não acho que uma boa letra consiga salvar
má musica, percebes? Ambas têm de ser muito boas. Mas a musica
exige experiência, boa produção e uma certa quantidade
de dinheiro, enquanto as letras não exigem nada disso. Uma pessoa
pode criar uma letra com a sua cabeça, e se não sabe escrever
pode pedira a alguém para o fazer.... Podemos desculpar má
produção, podemos desculpar falta de experiência na
área musical, mas acho que uma letra muito idiota não tem
desculpa. Não tem de ser uma obra-prima, mas tem de ser algo original
e pessoal e vindo do coração. Acho que muitas pessoas simplesmente
põem palavras numa canção porque acham que tem de
levar palavras. É fácil fazer uma coisa simples que tenha
significado e de que as pessoas percebam, por isso não acho que
exista uma desculpa para uma má letra.
Até que ponto
se complementam o surf, a escultura e a fotografia com a poesia e a sua
transfiguração na musica? Ou seja, serão manifestações
artísticas independentes?
Não posso falar
pelas outras pessoas, mas na minha própria vida parece que não
tenho escolha... Eu nem me considero um criador, considero-me mais algo
como um tradutor, porque traduzo coisas que aconteceram, como uma espécie
de jornalismo surreal.... Mas as coisas surgem na mesma onda de energia
e muitos dos meus projectos visuais têm efectivamente inspirado historias
ou canções, e canções e historias têm
inspirado fotografias de arte visual... está tudo realmente ligado.
Está ligado com a minha vida, como o surf esta ligado com a minha
vida. Às vezes as pessoas pensam que estou a tentar fazer muitas
coisas ao mesmo tempo, mas no fundo é tudo completamente a mesma
coisa, com ligeiras diferenças, utilizando diferentes suportes,
percebes? Uma canção é uma escultura, com um suporte
diferente, mas é o mesmo impulso electrónico.
Observas a tua vida
sob um prisma de optimismo, patente em algumas das tuas letras, ou sob
um prisma de extremo negativismo, com remorsos pelos tempos, passado, presente
e futuro?
Acho que tem a ver
com disposições. Tento não condicionar a minha disposição,
tento sentir os meus sentimentos e não olhar só para as coisas
de uma forma optimista, por exemplo, embora tenha havido um período
da minha vida em que realmente olhei as coisas dessa forma. Soltava as
coisas como um pregador cristão renascido, mas essa não é
a realidade as pessoas são mal-dispostas e acontecem realmente mas
coisas às pessoas. Por isso quando uma coisa negativa acontece (o
que não quer necessariamente dizer que tenha uma vida negativa),
tento escrever umas notas sobre o assunto, escrever alguma coisa antes
de perder esses sentimentos, porque a única altura em que realmente
pode gostar de uma coisa é quando se sente. Qualquer emoção,
quer se trate de extrema felicidade, extrema tristeza ou extrema fúria.
E, de facto, após uma boa noite de sono e umas cervejas, sentes-te
mesmo bem. Tento não deixar o tempo dessensiblizar-me para as coisas
que efectivamente senti, para que não aconteça que tu chegues
e me fales de uma canção minha de que gostaste e eu te responda
"ah, pois, isso foi à muito tempo". As coisas dolorosas, quando
escreves sobre algo, ou fazes arte visual sobre uma emoção
real , isso liberta-te do fardo de passares muito tempo a senti-la só
tu. Toma como exemplo o meu pai: se eu escrever sobre uma coisa dessa magnitude,
sentirme-ei um pouco melhor. Portanto, é quase pegar em alguma coisa
da minha tristeza ou fúria, ou o que quer que seja naquele dia....
Como um exorcismo?
Como um exorcismo,
sim (risos). Meu Deus, isso é assustador
Em que medida é
o teu pai uma inspiração para as tuas letras?
Acho que qualquer coisa
que ocupe um grande lugar na tua vida vai ser uma inspiração
para as tuas letras e o pai foi uma grande parte da minha vida, desde sempre.
Quando morreu, foi um importante acontecimento da minha vida e isso obviamente
reflecte-se, não só nas coisas que escrevia mas também
na arte visual que fazia na altura. Deixou um grande impacto nessas coisas
durante muito tempo. Quando comecei a escrever canções, ou
coisas que se podiam considerar canções, eram pequenos poemas.
O meu irmão e eu, que não morávamos perto do meu pai
(ele vivia no Arizona, nós na Califórnia) voltámos
poucos meses depois de ele ter morrido, ao local onde ele morreu, visitamos
a sua campa e isso trouxe á memória muitas coisas. Foi no
carro que escrevi vários poemas que anos mais tarde resultaram em
canções. Três das canções do primeiro
álbum foram escritas nessa viagem, dentro do carro, "Flowers
and the Color of Paint", "Goodcookies" e "Sleepdriver"
e há uma canção no novo disco chamada "The Plot"
que, apesar de ser uma canção feliz. uma das canções
mais felizes dos Ithaka, ironicamente é sobre quando tive de ir
escolher uma campa para o meu pai, porque era a única pessoa realmente
disponível para o fazer. E tive de ir olhar para cemitérios
e pensar sobre onde é que ele quereria dormir, percebes? E era uma
coisa do estilo "debaixo de uma arvore, longe do sol" ["under a tree,
out of the sun" é uma das frases do refrão de "The
Plot", que continua com "a place to rest in a world far gone"].
Diria que o meu pai tem sido uma grande influência na maneira como
escrevo letras.
Em "The Plot"
dizes "happiness comes to those who wait (...) diving the goods. not
like Christmas at all, more like a garage sale of th dead".
É sobre quando
as pessoas morrem, e há muitas posses físicas para dividir
pelas famílias. Quer se trate de coisas valiosas ou não,
há tanta confusão quando alguém morre porque existe
a vida toda de uma pessoa que precisa de ser dissecada pelos diferentes
membros da família. No nosso caso, não havia muito porque
lutar, era simplesmente irónico revistar os pertences privados de
toda a vida de um homem, uma vida de 60 anos. Nada disto tinha a ver com
o Natal, eu e as pessoas a recebermos presentes, mas não era uma
ocasião feliz. E tenho a certeza que, se ha coisas que queres recordar,
ha também memórias que não queres recordar.
Achas que, por ambas
serem primeiras canções dos discos e por apresentarem uma
temática similar que é desenvolvida, podemos comparar
"Street Loyalty" com "The Bum with Blue Blood"?
Acho que se podem comparar,
mas uma é mais uma abordagem cómica ao mesmo assunto. "The
Bum with Blue Blood" é mais uma cena de rir-me de mim próprio
pelas coisas a que me submeti. Porque o que quer que aconteça na
tua vida, no fim do dia foste basicamente tu que escolheste a vida que
levaste. Qualquer pessoa tem a opção - qualquer pessoa no
mudo livre, devo dizer - de escolher a sua própria vida.
Outro tema recorrente
nas tuas letras é o do contacto com seres sobrenaturais ou criaturas
da natureza personificadas, em "FishDaddy" e "Eden by the Sea".
É um tema que te agrade especialmente ou simboliza apenas o desenvolvimento
da tua fantasia ou da tua imaginação?
Ambos. "FishDaddy"
é na verdade acerca de casamentos birraciais, muitas pessoas não
parecem entender isso, mas é disso que se trata. Mas acho bom utilizar
animais porque, por vezes, a sua caracterização é
muito mais fácil de estereotipar que a de uma pessoa. É mais
fácil focarmo-nos na personalidade de um animal do que concentrarmo-nos
apenas numa vertente de uma pessoa humana. Por exemplo, um animal feroz
pode representar um lado de um ser humano. É a simplificação
das emoções humanas, porque os animais tendem para agir de
modo mais especifico, enquanto raça, ao passo que os humanos são
mesmo complexos. Não é possível contar toda a historia
de cada ser humano, e mesmo que tentes apenas ficarias louca com a complexidade.
Por isso, ás vezes, é bom utilizar as representações
simbólicas de uma personalidade humana.
Como é que
para ti, enquanto narrador sempre na primeira pessoa, é separada
a projecção autobiografica (como no tema "Stellafly")
da encarnação de personagens (que é sem duvida o estilo
encontrado em "King Tardy")?
Não estou particularmente
preocupado, no que diz respeito à musica, com o que sou eu ou com
o que é uma projecção ficional. Acho que uma das coisas
que mais gosto em muitos dos escritores que mais leio é exactamente
o facto de todos falarem na primeira pessoa, em vez de adoptarem uma posição
narrativa, o que torna tudo muito mais real. Naõ é como se
estivesse a questionar-me sobre se é ou não verdade, isso
não é sequer importante, mas traz-te para muito mais perto
do assunto. O meu escritor favorito de todos os tempos é um gajo
chamado John Fonte que poucas pessoas conhecem e que teve uma enorme influência
em alguns escritores da geração beat.Até pode soar
muito autobiografico, mas nunca sabemos se é ou não, o facto
de falar na primeira pessoa passa pelos mesmos processos mentais pelos
quais todos passamos, tão detalhadamente que nunca questionas a
veracidade do que te é dito. Para mim é real. Provavelmente
é muito mais interessante ouvir alguem que faz letras assim que
ouvir alguem que faz letras sobre alguem, algures... Existem duas abordagens
à escrita de letras, podes tentar fazer algo com que muita gente
se identifique, o que é uma coisa muito genérica, sobre um
acontecimento generico que envolve um sentimento muito generico partilhado
por todos, ou podes fazer chegar o teu microscópio pessoal e talvez
traduzir esses mesmos sentimentos mas de uma forma muito mais especifica,
que não necessitem realmente de explicação. Mas ao
longo das décadas temos visto tantos escritores de canções
a falar de temas genéricos que acho muito mais interessante quando
as coisas se tornam mais pessoais.
Suponho que quem
não tiver previo conhecimento de toda a sequência de eventos
à composição de "Sunny the Bunny" não
percebera a letra no autentico sentido que lhe pretendeste dar. Para quem
escreves, para um publico seguidor e esclarecido ou para pessoas que possam
atribuir à tua poesia outras interpretações?
Com a arte vusual e
as letras, é obvio que as pessoas vão traduzir as coisas
à sua maneira, mas eu gosto de dar informações de
fundo, só para trazer as pessoas um bocadinho para mais perto dos
sentidos que pretendo fazer. Há muitas coisas que provavelmente
não fazem sentido nenhum a ninguem, e é como ir a uma exposição
e ver 8 milhões de bolas de papel espalhadas pelo chão e
empurradas para um canto. E tu entras e não existe explicação
nenhuma e tu ficas assim e dizes "é só um bocado de papel
no chão". Mas talvez estas bolas de papel pertençam a um
escritor famoso e sejam os restos que ficaram de fora do seu livro. E isso
coloca aquelas bolas de papel no chão sob uma perspectiva complectamente
diferente. Gosto de fornecer informação quando as pessoas
perguntam... e na verdade não posso, é a primeira vez que
alguem me pergunta algo de concreto sobre canções especificas
e estou realmente muito feliz por alguem ter decidido fazer isto.
"Spiritual Graveyard"
suge-me como uma incursão à mente, uma redescoberta do proprio
e uma auto-analise de vida, esperanças e frustrações.
Podemos retirar esta interpretação tão intima e pessoal
do teu poema?
É de uma perspectiva
pessoal, é basicamente sobre quando as pessoas permitem estar aprisonadas
pelas circunstancias. É importante, quando o teu paraíso
foi por àgua abaixo, abrir mais janelas.
E exactamente onde
é este teu "Spiritual Graveyard"?
É na tua propria
cabeça, na de toda a gente, há um cemiterio de experiencias.
E a pessoa é geralmente o seu proprio coveiro. Existem opções.
Em letras nas quais
descreves uma realidade tão simples como "Goodcookies", o
leitor/ouvinte deverá compreender a mensagem como ela é apresentada
ou, pelo contrario, interpreta-la encontrando sentidos metaforicos?
É a pessoa que
decide quão fundo quer ir. Muitas das vezes é como um icebergue,
há algo à superficie e há geralmente muito mais sob
a superficie. Às vezes é só um restinho de gelo, outras
vezes há montes de gelo sob a superficie também.»