Focus pertence a uma raça diferente,
contemporânea,de músicos. Para início de conversa, são
europeus do continente, um povo mais inclinado a consumir (e com
certa parcimônia) do que a fazer rock. Um grupo de rock europeu
- holandês, mais especificamente - há alguns anos atrás, seria
considerado uma curiosidade, ave rara. Nunca um candidato sério
às listas de "melhores" ou às paradas de "mais
vendidos". No entanto, o Focus ocupa os
dois lugares com assiduidade e naturalidade.
A raça nova de rockers como o Focus costuma ter
uma forja comum temperando seus espíritos: o conservatório de
música. E é lá, justamente, que vamos encontrar nosso primeiro
personagem, Thijs Van Leer, 19 anos em 1969,
colando grau com distinção em piano, arranjo e teoria. Thijs
era um músico aplicado e com interesses múltiplos: além do
curso no Conservatório Real de Amsterdam ele
estudou História de Arte na Universidade de Amsterdam,
órgão e música renascentista com o maestro Anthony Van
Der Horst, dirigiu uma banda de jazz com colegas de
colégio. E, além de tudo isso, era um fã exaltado do Traffic,
especialmente de Stevie Winwood.
Foi com a idéia vaga de fazer "um Traffic
holandês" que Thijs se uniu aos amigos Martin
Dresden, baixista, e Hans Cleuver,
baterista. Seu primeiro emprego não teve muito a ver com o Traffic:
foram chamados a integrar a banda do musical Hair,
versão holandesa. Mas isso lhes trouxe bons contatos, um convite
para um teste e, afinal, a gravação de um LP: a Europa estava
ansiosa por produzir rock próprio, autônomo, que pudesse fazer
frente ao heavy-metal inglês, a grande onda do momento.
Durante a gravação deste primeiro disco - In And Out of
Focus - houve dois fatos interessantes, Primeiro, Thijs
descobriu que não só sabia cantar como conseguia fazer o yodel,
vocalização ondulante e complicada, típica da música dos
Alpes. Segundo, seu amigo Jan Akkerman, 24 anos,
guitarrista, violonista e tocador de alaúde formado pelo Liceu
Musical de Amsterdam, uniu-se ao grupo.
Como costuma acontecer, o sucesso não veio. Não na escala que o
recém-batizado Focus ("era um nome
internacional, sintético") e sua gravadora esperavam. Os
curtidores holandeses garantiram as boas vendas do avulso "House
fo The King" - bem uma amostra do futuro som-Focus
- mas a invasão de Londres e Nova York não se consumou.
Um tanto desiludido, Akkerman abandonou o grupo
e foi se unir ao seu antigo colega de conjuntinho de baile, o
baterista Pierre Van Der Linden, para formarem
um novo grupo junto corn o baixista Cyril Havermans.
E então o improvável aconteceu: Thijs Van Leer
decidiu que esse grupo era melhor do que o seu. E se mudou para a
companhia de Akkerman & Cia., levando
consigo o nome Focus.
O lançamento de Moving Waves, álbum do novo Focus,
comprovou o acerto de sua escolha. Com o terreno
consideravelmente preparado por grupos como o Yes,
o Emerson Lake & Palmer e o King
Crimson, o som do Focus, intrincado,
melódico, quase erudito, se tornou a sensação de Londres. Os
críticos acolheram Eruption, a suite-rock sobre
o mito de Orfeu que ocupa todo um lado de Waves,
como "uma obra-prima fundamental do rock
contemporâneo". Os elementos estavam todos no lugar, e o
catalizador tinha sido Van Der Linden, músico
90% erudito, ex-integrante da Orquestra de Ópera de
Amsterdam.
1972 é o ano da grande virada para o Focus.
Excursionam pela Grã-Bretanha, colecionando elogios e casas
lotadas: "Eles nem deviam gravar em estúdios, pois são
absolutamente perfeitos num palco", diz o jornal Melody
Maker. O avulso Sylvia, tirado do
álbum duplo Focus 3, chega ao 1º lugar
na parada inglesa e, surpresa das surpresas, na América também.
Foi um ano de mudanças: o contido Cyril Havermans
deixa o grupo por uma carreira individual. Em seu lugar vem outro
agente de transformações, o gorducho Bert Ruiter,
26 anos, autodidata, nenhuma base clássica mas muito rock e pop,
música de dança.
O conflito inevitável começa a roer o grupo lentamente, durante
a primeira excursão americana. "Bert tem
uma energia muito grande, um estilo parecido com o de Jack
Bruce, que é sua maior influência", diz Thijs.
"Ele foi levando a gente pouco a pouco por um caminho mais
simples, mais aberto, mais rítmico, mais 2 por 4." O
primeiro a se deixar contaminar foi Thijs.
Depois, Akkerman. "Acho que foi no Texas,
uma noite, que Jan veio me perguntar se ele
podia se soltar, tocar coisas mais simples, mais... terra a
terra... alegres. Eu fiquei contente porque vi que não era só
eu que estava achando o Focus complicado
demais."
Quem não gostou foi Pierre. "O clima ficou
péssimo entre Pierre e Bert. Bert
queria solar, balançar, Pierre não deixava. Pierre
queria fugas, flautas, não se conformava com o que ele chamava
'a nossa vulgaridade", diz Jan. Um álbum
ao vivo, gravado durante uma espetacular temporada no Rainbow
de Londres deixa os fãs em compasso de espera, esconde um pouco
a briga. "Lá pelo fim de 73 eu estava convicto que o grupo
ia acabar", diz Jan. "E, para dizer a
verdade, não me importava muito, não. Eu já estava cheio da
máquina rock de fazer sucessos."
De fato não deve ser fácil, A geração européia de onde veio
o Focus repete, numa outra escala,
evidentemente, o esquema brasileiro de rock. São músicos muito
puros, que tocam por brincadeira ou prazer, que quase nunca têm
contato com uma estrutura ferozmente empresarial de música. A
indústria de música, na Europa continental, está voltada
basicamente para a canção, o pop, o easy music. Rock era, até
os anos 70, brincadeira de garotos, festas de dança. Nenhum
esquema profissional - pubs, clubes, Cavern Clubs, Ealing Clubs -
para absorver essa geração e acostumá-la com o lado mais duro
da música. Para completar tudo, fechando o esquema de
desenraizamento, são músicos nutridos a clássicos e
conservatórios, com uma visão límpida e quase inocente da
criação musical. Arte pela arte. Showbiz é coisa de americano.
Daí o choque, inevitável. O desencanto. Mike Vernon,
que acolheu e produziu o grupo em Londres desde 1972, conta que
"eles eram muito desconfiados, viviam dizendo que não
fariam concessões, que não iam se vender. Estavam apavorados.
Especialmente Jan."
Foi Vernon quem salvou o Focus
da extinção por desânimo. "Ele chegou com uma lista de
bateristas: Aynsley Dunbar,- Mitch
Mitchell, Collin Allen", diz Thijs.
"Os dois primeiros tinham compromissos, mas Colin
estava totalmente desempregado. Ele veio, tocou, ficamos com
ele."
Colin, ex-músico de John Mayall, ex-integrante
do grupo Stone The Crows, era o sangue novo que
o Focus precisava. "Eu admiro James
Brown, seu senso de ritmo, toda a música negra. Música
negra faz você se mexer, dançar... Adoro música brasileira,
também." Tocando com ele num velho castelo holandês
alugado, o Focus produziu seu primeiro disco da
nova fase "Hamburguer Concerto": mais
ritmado, pesado, com bom humor.
E o ciclo se completa: o Focus se firma como um
nome do primeiro time, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Mais
uma longa viagem do rock, como sempre, retomando ao ponto de
origem, à velha América. "Eu confesso que tinha medo desse
papo todo de música clássica", diz Colin.
"Mas agora eu vejo que era bobagem e preconceito. É
possível fazer uma música muito ampla misturando tudo. Eles
tocam blues muito bem. E, no fundo, é a música que importa,
não é?"
Ana Maria Bahiana - Revista
"Rock" - 1975 - Brasil
Matéria gentilmente enviada por José do Carmo Lopes