RITA LEE - Bossa que dá água na boca
O violão, voz suave, a figura luminosa que recria com intimismo suas belas canções. Assim é o CD Bossa N'Roll, no qual Rita reinventa sua carreira e cujas 45 mil unidades vendidas em apenas um semestre atestam sua capacidade de produzir água na boca
Márcio Gaspar
Em 1975, ao conhecer Eric Clapton numa festa no Rio de Janeiro - ele estava incógnito no Brasil gozando férias no eixo Rio-Bahia -, Rita Lee ouviu do célebre guitarrista inglês a curiosa tese de que os instrumentos acústicos tinham necessidades próximas dos seres vivos, para reagir favoravelmente às solicitações que lhes são feitas. Por isso recomendou, no sentido de se obter melhor musicalidade, embrulhar o violão no lençol imediatamente após o despertar, de modo que o instrumento fosse aconchegado para receber o calor do corpo ali acumulado, que, provavelmente, equivaleria a uma espécie de carinho. Naturalmente Rita não obedeceu ao exótico conselho. Mas, decorridos 16 anos daquele episódio, é evidente que ela está tratando seu violão com desvelados chamegos, a julgar pela sua performance no festejado show "Bossa N'Roll", apresentado desde 1991 e do qual originou-se o CD do mesmo nome. Nele, depois de quatro anos afastada dos palcos, ela faz uma reaproximação intensa e intimista com o violão, transformando-o em companheiro constante. "Vai comigo até no banheiro", ela exagera. Até fazer o show, eu não pegava há algum tempo no violão. Na verdade, saí para a estrada com a cara e a coragem, sem nenhuma expectativa em relação ao show. E é interessante: quando nada se espera, tudo que vier é lucro."
E, de fato, os lucros foram gordos. Além do sucesso de crítica e de público do show, o CD (leia quadro) vendeu 45 mil unidades em apenas um semestre (números fechados em dezembro), o que o coloca como um dos mais vendidos do ano. Tal êxito deve ser debitado exclusivamente ao seu talento, uma vez que trabalha sem outra arma que não sua voz e violão - mais um segundo, tocado pelo músico Alexandre Fontanetti. E uma Rita solitária que reinventa o próprio repertório. O marido Roberto Carvalho não está presente; continuam casados, mas separados na música, embora Bossa N'Roll reedite músicas da antiga parceria. "Há muito tempo vínhamos buscando uma bifurcação profissional", ela conta, "adiada por comodismo e por força de contrato com a gravadora Emi Odeon. Agora chegamos ao fim da parceria."
A reinvenção do repertório é temperada pela opção acústica -o violão ao natural e a abdicação de parafernálias eletrônicas que dá ao CD um sabor de bossa nova. Na verdade, o namoro entre as duas é antigo: começou por volta de 1980, quando João Gilberto a convidou para participar de um especial, "Jou Jou Balangandãs" (de Lamartine Babo), da TV Globo, algo que chccou os puristas por se tratar de notória roqueira; dois anos depois, seria a vez de João participar do seu disco, Flagra, cantando Brazil com S. A experiência com João Gilberto deitou raízes que se materializam em Bossa N'Roll. "Depois dos encontros com João vi-nha dentro de mim a vontade de fazer um trabalho acústico. No meu último disco na Odeon, em 1990, eu já cantava La Javanaise, de Serge Gainsbourg, com arranjos totalmente bossa. Era a vontade de tornar rock a bossa nova e em bossa nova o rock."
"Deixei-me levar pelo sentimento interior de busca, de experimentação"
Nesse tom se desenvolve todo o CD. Boa parte do repertório se apóia na profícua e rica parceria entre ela e o marido, que produziram uma constelação de hits. Ali estão, por exemplo, Doce Vampiro, Vírus do Amor, Corre-Corre, Desculpe o Auê, Baila Comigo e Lança Perfume. "Por muito tempo Roberto foi criticado como se se tivesse aproveitado do meu sucesso", esclarece Rita. "E completo absurdo, pois ele tem musicalidade espontânea para compor melodias deliciosas. Foi só com nossa parceria que eu passei a vender discos bem."
A relação é longa e nos bons índices de vendas certamente pesaram a vitalidade e a alegria exuberantes que Rita conseguia imprimir às letras eróticas (leia quadro), transmitindo um saudável convite ao prazer, como ocorre na famosíssima Mania de Você.
O CD Bossa N'Roll recupera, igualmente, seus primeiros tempos de carreira, com Os Mutantes, através da canção Ando Meio Desligado, de 1970. (O conjunto iria se desfazer em 1972.) E passa pelo período em que ela comandou a banda Tutti-Frutti, ao apresentar a célebre Ovelha Negra, de 1975, que ela própria considera como o seu primeiro grande sucesso popular, além de outras gravações do grupo, como Jardins da Babilônia e Miss Brasil 2000 - ambas de 1978, do LP Babilônia. "Só posso atribuir o sucesso de Bossa N'Roli, tanto o show como o disco, ao fato de ter me deixado levar pelo sentimento interior de busca, de experimentação", ela tenta compreender.
Na realidade, emoção parece ser a principal característica do trabalho. Ela lembra que, na apresentação do show, tem vivivo emoções fortes. Uma delas é a de reencontrar seu público, então jovem como ela nos anos 60, e construir outro. 'Notei que as pessoas que gostavam de mim há 10 ou 20 anos estão indo me ver e levando seus filhos. Na platéia há de tudo: crianças, quarentões, velhos, adolescentes. Por isso fiz questão de manter esse clima no disco, manter essa coisa de ao vivo mesmo, sem recursos de cobertura ou truques de aperfeiçoamento", ela descreve.
"A garotada está querendo demais esse catálogo do passado recente do Brasil"
Sobretudo, desse público, impressionou-a a presença de adolescentes, tal vez por ser mãe de três meninos (Deto, 14; João, 12; e Antônio, 10 anos) que estão bordejando essa faixa de idade. "Deu para sentir que a garotada está querendo demais ter acesso a esse catálogo do país recente. E por isso que acho legal essa onda de relançamentos que está ocorrendo em CD. Dá oportunidade para a meninada conhecer essas experiências. Inclusive eu própria vou fazer álgo que não faço há muito tempo: eu vou ouvir os discos dos Mutantes."
Eis outro traço do perfil musical de Rita: a inquietude permanente -ver o passado, estar no futuro. Por isso é natural que se refira a Paul Hom e sua new age; ao jazz de Ghet Baker; à música de Julie London; e a audições judiciosas de cantos gregorianos, que andou ouvindo por muito tempo nesses quatro anos de afastamento do público, como ingredientes que engrossaram e enriqueceram a receita de Bossa N'Roli. "Por isso, independentemente do CD que já está aí, vou continuar fazendo o show, porque é um show aberto, quase modifica a cada apresentação. E totalmente diferente de quando começou (há um ano num ginásio de Santos- SP e talvez já não tenha nada a ver com o disco. Fomos acrescentando, burilando. Agora vou colocar uma auloharp, um baixo de pau semi-acústico e uma gaita. Tocados por mim e pelo Alexandre."
Dessa forma Rita reencontra seu estilo e seu público, redefine seu espaço na música brasileira e vai em frente.
"Senhora do pop/rock"
Para Gilberto Gil, Rita
chega à maturidade do seu talento
"Ouvi o disco, li entrevistas recentes de Rita e vi alguma coisa dela na MTV. Acho que essa coisa de som acústico, mais simples e suave. sempre esteve presente no universo de Rita. Foi algo que se acentuou a partir dos seus encontros com João Gilberto. Mas eu me lembro que, desde os Mutantes, ela já possuía esse interesse pela sonoridade acústica; lá no tempo de TuttiFrutti ela trazia aquela flautinha, as baladas com violão. Depois, ao lado de Roberto, isso ficQu mais evidente. Para mim, o trabalho deles sempre foi marcado pela elegância e interesse no repertório do cancioneiro brasileiro, colocando aqui e ali uma pitada de Carmen Miranda; a música caipira do interior paulista; ritmoa latinos do Caribe. Por isso acho natural que, com a maturidade e pelo tempo de carreira, tudo isso tenha aparecido de forma tão clara e assumida em Bossa N'Roil. Acredito que ela tenha passado por um processo de maturação que resultou na manifestação total e natural dessa característica acústica. Quanto ao sucesso do disco, é justo e óbvio: sempre achei (e continuo achando) que Rita é a senhora absoluta do pop-rock brasileiro." (Gilberto Gil)
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