SOB UM CEU ESCARLATE

  O soldado procurava seguir o comandante do batalhão disperso, embora não pudesse vê-lo nitidamente através da pesada cortina de chuva, esforçava-se para encurtar a distancia que o separava dos gritos que chegavam num tom fantasmagórico, envoltos em vento e água. O comandante falava coisas horríveis contra Deus e contra os homens, e principalmente contra os membros da Aliança.
  Aquilo tudo não podia terminar bem, sabia desde o inicio que era um mal sinal - os vales ao norte da Califórnia não eram feitos para a guerra, mas para o pasto e a contemplação. O suor misturava-se ao sangue e a água da chuva em seus lábios, cada relâmpago evocava imagens de um passado que estava agora infinitamente distante. Mas lembrava-se como se fosse ontem das primeiras noticias que chegaram pela TV sobre a estranha Aliança entre o Japão, a Alemanha e a Rússia, primeiro como um novo e bizarro bloco econômico intercontinental, depois adquirindo conotações bélicas, e tudo culminando nos primeiro testes com reações sub-nucleares.
  Afundou com uma das pernas numa poça de lama, deixou-se ofegar por um instante, olhou para o céu. Continuava estranhamente avermelhado, como havia estado pelos últimos dois meses, densas nuvens purpuras acumulando-se aqui e ali, clarões elétricos estourando constantemente. O soldado queria chorar, mas apoiou-se na pesada metralhadora cíclica e soergueu-se. Os vales da Califórnia já não eram mais verdes como deveriam ser  nessa estação - mas cinzentos, enegrecidos, maculados por lama, cinzas e sangue.
  O soldado apertou o passo, sentindo-se freado pelo fardo que levava nas costas. Seus ouvidos começavam a distinguir outros sons humanos, outras vozes, e mesmo um motor. Uma criança chorava em algum lugar. Isso significava que estavam salvos, o que quase o fez lamentar. Passou as mãos no rosto, cuspiu no chão. Conseguia ver faróis ao longe, aproximou-se e avistou uma grande barraca. A chuva ameaçava dar uma trégua, e então ele pode olhar em volta, e ver claramente as dezenas de corpos no chão, os precários cuidados médicos que eram prestados com extrema dificuldade. O comandante conversava agora com um homem sem camisa, o dorso desfigurado por grotescas cicatrizes de queimaduras. A cabeça completamente lisa, uma das orelhas transformada numa nódoa de carne.
  Ainda estavam a alguma distancia de Sacramento, ele pensou, e os rastros da bomba já se faziam odiosos mesmo aqui. Tentou imaginar como se pareceria Los Angeles, onde se dera a explosão, agora; tentou visualizar San Francisco, mas o horror do local já entorpecia suficientemente seus sentidos.
  Aproximou-se dos oficiais, bateu continência e apresentou-se. Foi-lhe ordenado que auxiliasse no socorro aos feridos, poderia deitar o equipamento no barracão. E assim o fez, sentindo um peso insustentável nas pálpebras insones.
  Olhou os injuriados evitando deixar que sua piedade e desesperança transparecessem. Viu dois homens sendo separados, o material de suas carnes havia-se fundido por estarem-se tocando, quando a onda devastadora passou pelo acampamento. A grande maioria dos homens estava marcada por queimaduras hediondas, e poucos exibiam vestígios de pelos no corpo.
  Atônito, não sabia o que fazer. A criança continuava chorando. Aproximou-se de uma fogueira ao redor da qual algumas pessoas cantavam numa ladainha monótona. Um homem vestido de negro parecia liderá-los, sentava-se sob um lona estendida precariamente,  tinha numa das mãos um livro volumoso, e na outra uma lanterna.
  O soldado escutou com atenção o trecho do “Apocalipse” que o padre recitava dramaticamente. “...então o Senhor voltará para julgar todos os pecadores, e ressuscitará os mortos de suas tumbas...” Aguardou pacientemente o fim da leitura. Quando o sacerdote por fim levantou o olhar, o soldado aproximou-se.
  - Seja bem-vindo e Deus te abençoe, filho.
  - Padre, eu tenho que me confessar. Que não sejam julgados os meus pecados de guerra, que quanto a estes nada posso fazer... - mas receio ter perdido toda a fé no Senhor.
  O padre assentiu, sem espantar-se, quase com cumplicidade.
  - Compreendo... - e deu uma espiada ao redor. - O que você precisa compreender, meu jovem, e que Deus não pode ser culpado pelas ações dos homens.
  - Mas padre, como Ele pode permitir que Sua criação degenere a tal ponto? Por que criou o homem e o dotou de consciência, se sabia que tudo ia acabar assim?
  - Foi-nos concedido o livre arbítrio. Ele sabia que tudo acabaria um dia, mas queria que o Homem fosse capaz de observar seus pecados. Não e Deus que deve ser culpado, mas a própria natureza humana.
  - E o que e a natureza humana? Não somos feitos a imagem e semelhança ?
  - Sim, mas somos presos e limitados pela Carne.
  - Não, padre. Os homens que espalharam a guerra sobre o mundo não são limitados pela carne... Nem pelas suas consciências sinistras, e talvez estes sim sejam feitos a imagem e semelhança do Senhor: elevam-se sobre todas as coisas e investem-se do direito de vida e morte. A guerra, na verdade, nunca deixou de existir, e nunca o homem experimentou tempos de paz. Continuamos nosso jogo irracional, tentando sempre superar os que estão a nossa volta, e derrubando quem estiver em nosso caminho. Somos animais, padre, animais selvagens que escaparam ao controle e tornaram-se canibais, e em sua luta desesperada destruíram tudo ao seu redor. Nem Deus escapou, padre.
  O padre hesitou. Entendia cada palavra proferida pelo soldado, não fosse ele um homem de fé, mas sim um rude guerreiro, provavelmente estaria cuspindo semelhantes besteiras.
  - Tudo isso e o purgatório, filho. Quem passar pelo teste será recebido no paraíso...
  - Paraíso, você diz! Um paraíso divino, feito de espíritos dos homens? Certo, padre... Acabaremos destruindo o paraíso de Deus também, assim como fizemos com o nosso próprio.
  - Não diga isso...
   - Pois esta na nossa natureza, padre. Nascemos da matéria e nela permaneceremos - e por termos consciência de que nosso dia de cair ao solo e apodrecer chegara, não temos respeito pelas coisas vivas. Tudo vai morrer, tudo vai apodrecer, ate o espirito do homem em seu paraíso perdido...
  - Não diga essas coisas. Peca perdão enquanto e tempo. Aprenda a relevar o sofrimento e desfrute da salvação, ou então esteja pronto para pagar pelas suas blasfêmias...
  O soldado levantou-se, ergueu as mãos para o céu, os soluços da criança pareciam ainda mais desesperados.
  - Desça ate aqui e me leve para o inferno! Vamos, eu estou pedindo. Não pode me escutar? O barulho da bomba o ensurdeceu? Pois a mim também, e não consigo ouvir você ai de cima! Desça aqui, vamos!
  Agora foi a vez do padre por-se de pe.
  - Retrate-se. Se não tem fé e insiste em culpar o Senhor... que seja, mas não envenene com tais palavras a fé desses homens que precisam dela.
  - O que? - o soldado gritava, para ser ouvido por todos em volta da fogueira - O veneno esta nas minhas palavras ou neste livro, na verdade? - disse arrancando das mãos do sacerdote a Bíblia e atirando-a ao fogo.
  Agora os olhos do padre queimavam.
  - Eu o amaldiçôo. Cumprirás pena eterna no fogo do inferno e queimarás cem vezes pior do que a Palavra queima agora. Que Deus nunca te de o descanso, nem a ti nem a ninguém que tenha teu sangue correndo nas veias. Que teus progenitores sejam punidos por tuas palavras e gestos, que qualquer um com quem sustentes qualquer laço de afeto queime contigo...
  O soldado encostou o cano da pistola semi-automática .9mm na boca do padre. Seus olhos eram entristecidos, quase que arrependidos.
  - Desculpe, eu me excedi. Desculpe. Agora, retire a maldição.
  - Não! - bradou o padre - Deus haverá de faze-lo paga em dobro...
  - Então ao menos faca essa criança calar-se!
  - Mas não ha criança alguma...
  E o soldado descarregou o pente, fazendo espirrar sangue sobre os feridos que observavam a cena, indiferentes.
  Afinal, era um soldado, a guerra estava longe de acabar, e sua mãe que o esperava no Oregon não haveria de queimar no inferno por causa das palavras de um maldito padre de campanha.