Eu descia a rua cinzenta que a madrugada começava a tornar
lívida. As enormes casas sussurrantes espreitavam, avançavam
sobre mim enquanto fora do meu campo de visão e retraiam-se covardemente,
quando eu lhes dirigia o olhar. Talvez nem fossem assim tão grandes,
as casas - minha melancolia naquele deserto urbano lhes emprestava algum
tamanho.
Os fantasmas seguiam as minhas pegadas, faziam eco aos meus
passos com suas risadas loucas e perdidas no tempo, vomitando suas nostalgias
e envenenando a fresca brisa matinal. E eu odiava-os por isso, mas continuava
andando, sozinho, pela rua abaixo...
Ao longe vejo um uma silhueta indistinta - pretendo ignora-la
- mas percebo que o vulto disforme esta, na verdade, se movendo em minha
direção. Um menino envolto em trapos, mancando de uma perna,
com um aspecto grave no pequeno rosto, que passa por mim e diz: “...e então?”
Na certa percebeu a alteração que se processou
em meu cenho enquanto eu o avaliava melhor: olhei seus olhos castanhas,
seu rosto deformado pelas chagas das pestilencias, os cabelos crespos e
imundos, os dentes podres na boca descorada que parecia esboçar
um sorriso de deboche - repugnado eu disse “some daqui, menino!”.
E apressei o passo, para logo depois estancar. “E se for o meu
filho?” pensei, subitamente arrebatado pela idéia. Uma pequena criatura
abandonada por um progenitor cruel nesse mundo artificial; como devia ser
doloroso existir, como haveria de ser odiosa a memória daquele que
o havia colocado no mundo. Era claro que eu devia tudo a ele, dar-lhe-ia
o amor que não tivera na tenra infância, revelar-lhe-ia os
segredos do pássaro dos ovos de ouro, o que lhe era de direito e
que ele não ousava reclamar senão com a vaga pergunta soprada
pelos pulmoezinhos flagelados (pergunta que me eu remoía com dor
dentro de mim): “E então?”. Lagrimas queriam precipitar-se as minhas
pálpebras - contive um soluço e virei-me, sussurrando “filho...?”
O rosto que virava agora em minha direção pertencia,
contudo, a um homem que nada tinha de criança e caminhava muito
encurvado, não havia duvida, a julgar pela barba mal-feita. Do menino
tinha os olhos; o sorriso de deboche havia-se acentuado e tornado-se escárnio.
Sem dizer uma palavra, a figura continuou seu caminhar lento e arrastado.
Então meu maxilar pendeu e eu senti um estremecimento
- meu corpo reagia a súbita certeza que assomava agora. Via o homem
distanciar-se como um velho conhecido, sentindo no fundo da alma a angustia
de quem perdeu alguma coisa querida, para sempre, a angustia que precede
a morte, a angustia que as pessoas experimentam ao perceberem o significado
do irreversível. Só agora, um inicio de luz filtrando-se
do céu e espalhando-se pelas Coisas de Cimento, só agora
eu percebia o que nunca deveria ter deixado de saber, com aquela figura
sofrida, torta e feia; mas corajosa, persistente e triste afastando-se:
aquele menino era, na verdade, eu mesmo.
Olhei minhas mãos, pareciam luvas de borracha, mortas.
Meus olhos ardiam de vontade de chorar, os fantasmas haviam-se calado.
E fiquei parado no meio da rua, assistindo avançar contra
a linha de claridade no horizonte um velho de longas barbas brancas e olhos
amendoados de menino que cantava uma musica em inglês, sobre piratas.
E dele não despreguei os olhos ate que sumiu na distancia, para
nunca mais voltar.