MARCIO ALFREDO
 

  Márcio Alfredo, 17 anos. Cabelos compridos e desgrenhados, rosto redondo, olhos grandes e assustados. Corpo grande e gordo, desengonçado, andar hesitante como que preocupado em evitar cruzar os caminhos dos outros adolescentes que atravessavam velozes em ambas as direções os corredores do pátio interno do colégio.
  Márcio Alfredo, 17 anos, nunca tivera uma namorada. As garotas preferiam os rapazes bonitos, fortes e atletas, ou então os tipos esquisitões, atraentes. Ele, na verdade, não se sentia a vontade conversando com mulheres. Só com uma delas. Mas a Carla Augusta nem parecia uma menina, de tão legal que tinha sido com o Márcio Alfredo. Haviam se conhecido no primeiro dia de Márcio no colégio, ele chegou atrasado na sala de aula, sentou-se no primeiro lugar vago que avistou. Uns caras sacanas que sentavam em volta , liderados pelo camisa nove do time do colégio Gustavo Frederico, começaram a fazer perguntas para deixa-lo constrangido. Toda a turma ria da sua falta de jeito, foi então que a Carla Augusta apareceu do nada e chamou o Márcio Alfredo para sentar perto dela. Podiam ser amigos. Mas o Márcio colocou a Carla Augusta num altar, e pensava nela todos os dias na hora do almoço, quando engolia sua comida de pé, por não encontrar lugar em nenhuma das mesas no refeitório. Ela sim, ela era especial. Não era só bonita: era inteligente, tirava as melhores notas e ensinava as matérias pro Márcio Alfredo, que nunca foi brilhante. E quando ele dizia que era burro demais, ela sorria e falava “que e isso, bobo, você acaba aprendendo. Só não adianta ficar emburrado, dizendo que e burro...” Seu sorriso era tudo que ele precisava para continuar, seguir em frente.
  Teve o dia que o Márcio Alfredo apareceu na escola com aparelho nos dentes. Não deu uma palavra, não abriu a boca, os meninos iam gozar. Quando a Carla Augusta disse oi pra ele  e ele teve que responder, ela disse, para surpresa do rapaz, que ele estava bacana de aparelho, dava um ar de moleque, de safado, mas uma safadeza boa. Ele sorriu, o Gustavo Frederico viu. Mas a Carla Augusta não deixou ninguém falar mal dele. Naquela época eles já estavam juntos, a Carla Augusta e o Gustavo Frederico, relação que o Márcio condenava com todas as suas forcas, mas nao ousava dizer nada que pudesse magoar a menina.
  Tinha tantas lembranças boas... como na vez em que ela o convidou para a festa badaladissima que ia dar, e Márcio sem querer fazer desfeita acabou indo, mas encostado pelas paredes aonde permaneceria ate que sua velha mãe viuva viesse busca-lo, não tivesse sido tirado pela anfitriã para dançar. E naqueles quatro minutos eternos, evitando pisar o delicado pezinho, o Márcio absorvendo com adoração o calor e o odor que exalava da nuca da garota, prestando atenção a historia triste do namoro terminado que ela contava ao seu ouvido. Ele achava um absurdo, era incapaz de compreender: como alguém que tinha a Carla Augusta podia assim, desfazer-se dela? Se ele tivesse a Carla Augusta... não, melhor não pensar nisso. Tinha de ser o Gustavo Frederico. Não deixou de sentir um certo prazer ao saber da separação, mas seu ódio por ele só fez aumentar.
  Márcio Alfredo, 17 anos completos em maio, nunca ia se esquecer do dia em que a menina não apareceu na sala. O professor disse que tinha uma noticia triste: a colega havia deixado esta vida para a melhor... E quem não faltou no dia se lembra: o Márcio Alfredo ficou sentado estático em sua cadeira ate o final da aula, pálido, não se levantou para ir ao banheiro, não se moveu, e mesmo quando o sinal tocou, o professor teve que pedir para que ele se retirasse, três vezes. Ele não acreditou, se recusava a acreditar. Ate mesmo porque, ele nunca tivera sombra de duvida, a Carla Augusta era imortal.
  Foi ate a casa da falecida, de cujos pais era conhecido, saber detalhes, ter a confirmação. A empregada recebeu-o com lagrimas nos olhos, disse que a família não estava em condições de recebe-lo, mas o Márcio não quis saber; forcou entrada ate encontrar a mãe que chorava aos prantos sobre um porta-retratos que emoldurava o rosto da filha. A mãe olhou o intruso e viu que ele examinava o objeto, ela era tão linda ali, eternizada em duas dimensões, com seu sorriso congelado para sempre...
  “Ela deixou um bilhete pra você, Marcinho, antes de cortar os pulsos, me desculpa mas eu tive que ler,  e...”, soluçou a matriarca desesperada  “não tem problema” foi só o que ele disse. Não ofereceu palavra de consolo. Guardava-as para si mesmo.
  Dobrou o bilhete cuidadosamente após terminar a leitura, sua consciência contorcia-se numa mistura de ódio e angustia, e tristeza e ternura. Sabia que tinha sido culpa do Gustavo Frederico. Ele nunca a escutava. Mas isso não ficaria assim. Haveria de vingar, qual cavaleiro armado, sua donzela roubada: o vilão sempre perde, no final.
  Assim, arquitetou cuidadosamente cada passo do seu plano, nada podia falhar. Tinha-o pronto de longa data, e aquele era o dia perfeito para a sua execução - Gustavo Frederico estaria sozinho em casa.
  Trazia a bomba dentro da mochila, seguiria o pulha ate seu covil e mandaria tudo para o inferno, de onde alias ele nunca deveria ter saído. Veria explodir toda a sua fúria acumulada por anos; por anos de exclusão, por anos de risadas, por anos de hipocrisia polida, ele ia pagar, ele ia ver.
  Terminou a aula, os dois foram a pé, um, na frente, despreocupadamente assobiando, o outro a certa distancia, acompanhando com um sorriso que um observador atento classificaria na melhor das hipóteses como mal-intensionado. O condenado aproximou-se de sua casa, “melhor rezar, verme”, tirou o chaveiro, procurou a chave correta, Márcio Alfredo pegou a pesada carga e visou a janela do quarto do rapaz, ele entrou, Márcio Alfredo acendeu o pavio, viu Gustavo Frederico percorrendo os cômodos e entrando no quarto, preparou-se para lançar, viu-o beijando outra garota, outra garota que esperava-o em seu quarto e não era Carla Augusta, quis chorar de raiva, “como pode, não sabe o que você fez, como você pode...” e ouviu o estrondo. Foi a ultima coisa que Márcio Alfredo ouviu.
  Quando o Gustavo Frederico (que ouvindo a explosão saiu correndo de casa para ver o que se passara) encontrou o braço do Márcio Alfredo enroscado na cerca de arame farpado, viu que ainda mantinha a mão cerrada envolvendo uma fotografia amaçada - a justiça poética que não separou o rapaz de sua amada no momento de sua morte.
  Mais uma vitima do sistema.