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Lydon devassa infância do punk em biografia
No livro `No Irish, No Blacks, No Dogs', o líder dos Sex Pistols conta sua versão da história do movimento surgido na Inglaterra nos anos 70, com depoimentos de figuras-chave do período
JOTABÊ MEDEIROS - (Extraído do jornal O Estado de São Paulo)
Sentado no hall do Maksoud Plaza, paletó amassado de linho cru,
os cabelos vermelhos enfiados num chapéu sem teto, John Lydon arreganha
os dentes e aponta os incisivos podres com os dedos. "Vê, é
isso que os ingleses fazem com os irlandeses", vocifera, no estilo panfletário
que office boys de periferia do mundo todo imitam há 20 anos.
O ano é 1989 e John Lydon está em São Paulo pela
primeira vez, onde vai tocar com sua banda Public Image Limited, o PIL.
A sua sanha de irlandês desajustado filho de operários parece
que nunca termina, desde que - como líder dos Sex Pistols - inventou
o punk rock na Inglaterra, nos já distantes anos 70.
Foi da idéia de que ainda é um lúmpen irlandês
(só que agora com alguns milhõezinhos na conta bancária,
cumpre lembrar) que John Lydon partiu para escrever sua autobiografia No
Irish, No Dogs, No Blacks (Picador USA, 1993, 324 páginas),
que chega agora às importadoras brasileiras. O livro tem dois co-autores,
os escritores Keith e Kent Zimmerman. É o mais importante tratado
sobre a gênese do punk rock já publicado.
"Eu poderia ter feito mais por Sid Vicious", diz Lydon no livro. "Não
deveria ter sido mole e lavado minhas mãos como Pôncius Pilatus",
penitencia-se, num mea culpa tardio, embora continue achando - como disse
em sua entrevista no Brasil, este mês, durante o Close Up Planet
- que o colega que morreu de overdose era um "estúpido".
Lydon mostra-se implacável com sua geração no livro,
que é também um admirável trabalho de reportagem,
recheado dos depoimentos de gente como Paul Cook, Chrissie Hynde, Billy
Idol, Steve Jones e Julien Temple, entre outros.
"Muito tem sido escrito sobre os Sex Pistols", diz Lydon. "A maior parte
disso ou é sensacionalismo ou psicobaba jornalística", ataca
Lydon, o homem que diz que "o caos é a minha filosofia". E o que
é verdade?
Para Lydon, a verdade é que não foi Malcom McLaren quem
juntou a banda, bolou suas roupas e "arquitetou" a idéia do punk.
"Isso é um mito do pop", diz, acrescentando que Malcom era uma figura
negativa. Chama a estilista Vivienne Westwood, na época sócia
de McLaren, de "vaca estúpida" e afirma que ela não teve
qualquer papel na ascenção dos Pistols.
E mais: "A única coisa violenta sobre os Sex Pistols era a raiva",
diz Lydon. "Nós não éramos pessoas violentas, não
havia mortes em nossas turnês", lembra.
Aos seis anos, o irlandês John Joseph Lydon morava no bairro de
Finsbury Park, no norte de Londres, já fazendo parte de gangues
juvenis de gente com nomes como Smoothie ("pseudônimos para proteger
inocentes e culpados", avisa). Filho de gente pobre, que por sua vez provinha
de "uma família muito violenta" da Irlanda, tomava banho em tina
e cresceu nas zonas proletárias e industriais de Londres.
Lydon mistura suas memórias com citações e fragmentos
de Oscar Wilde, Shakespeare e pequenos pedaços de erudição
esquizofrênica e fina ironia. "Eu era um skinhead de verdade quando
em tinha 12 anos, em 1969", ele conta. "Se você vivia em Finsbury
Park naquela época, tinha que ter a cabeça raspada", lembra.
"Quando você tem 16 anos, você pensa que sabe tudo", lembra.
"Agora você sabe que não sabia, mas aquilo pode te tornar
tão arrogante que isso se torna parte do seu crescimento", considera
Lydon, acrescentando que os Pistols foram exatamente o contrário
da atitute arrogante do rock'n'roll daquela época. "Nós não
éramos arrogantes, nem niilistas nem assexuados, como as pessoas
diziam", defende-se.
Ele conta que realmente não tinha muito interesse em sexo quando
era mais jovem. "Você pode dizer que sou meio retardado, mas essa
é a verdade", lembra, dizendo que às vezes levava garotas
para casa apenas para fazer o pai ficar orgulhoso.
Em 1977, no entanto, conheceu Nora e casou. "Eu me apaixonei por John
porque ele me surpreendeu", conta Nora Lydon. "Ele me tinha sido pintado
como alguém muito mau, e na verdade tinha um jeito muito doce",
lembra, acrescentando que Lydon parecia mais preocupado em se divertir
com o rock do que em levar groupies para a cama, como todo o resto da trupe.
E como se divertia. "Eu nunca gostei de tocar em Amsterdã ou qualquer
lugar da Holanda", lembra John. "Os holandeses era hippies demais para
nós." Detestava - e ainda detesta - também a imprensa que,
segundo conta, bastava um deles passar mal durante uma viagem para dizerem
que barbarizaram dentro de um avião e vomitaram num aeroporto inteiro.
Como não é um livro de babação, de bajulação,
as opiniões são honestas e claras. Chrissie Hynde, por exemplo,
diz que - apesar de não ter a criatividade que John Lydon tinha
- Sid Vicious era a figura mais luminosa dos Sex Pistols. "Seu estilo era
único, era como se a coisa punk fosse sua última missão",
ela lembra.
"Antes do punk, só o reggae era original, todo o resto era reciclagem",
diz a vocalista dos Pretenders. "Por um breve período de tempo,
o punk clareou as coisas, manteve tudo num nível de honestidade
e decência."
Como Sid Vicious está morto, e Lydon é a a última
celebridade do "no future", eis aqui um grande e saboroso documento das
contradições da nossa época.
"Como Johnny Rotten, líder dos avassaladores Sex Pistols, Lydon esguichou o anárquico sêmen-punk na sebosa, auto-suficiente e multibilionária indústria do disco. O maquiavélico pirata Macolm McLaren teve o gênio de descobri-lo e forjar a cosmovisão e a embalagem sonora punk. Lydon adicionou explosões com o virtuosismo de um terrorista do IRA. Entre 20 e 21 anos, em 76 e 77, pisou na passarela do planeta como o ícone máximo da Raiva e Negação. O Satã da anarquia, com slogans e alfinetes nos lóbulos. O tótem descarnado da geração no future. O niilista ativo que detonou um renascimento - o da cultura pop internacional. A mediocridade é seu maior inimigo. A amargura, suavizada por sarcasmo, é uma companheira recorrente. O senso de humor é um amigo de peito. Lydon bebe como uma esponja e chega a se classificar de cervejaria." (Pepe Escobar - Setembro/86)
Porta-voz da incoerência, do deboche e da anarquia
Saber se Johnny Rotten ou John Lydon é pessoa ou personagem desafia público e mídia
LUIZ ANTONIO MELLO - (Extraído do jornal O Estado de São Paulo)
Johnny Rotten (Joãozinho Podre) já foi Johnny Rotten, virou
John Lydon e reencarnou Johnny Rotten de novo. É o mesmo porta-voz
da incoerência, do deboche e da anarquia, ingredientes que marcaram
o surgimento do Sex Pistols em 1976, na Inglaterra. Em dezembro daquele
ano, Rotten declarou: "Eu não preciso de um Rolls Royce. Eu não
preciso de uma casa no campo. Eu não quero viver na França.
Eu não tenho nenhum herói no rock. Stones e The Who não
significam nada, estão vendidos."
Hoje, 20 anos depois, o mesmo Johnny Rotten, aos 41 anos, dispara: "Eu
quero ganhar mais dinheiro que os Beatles. Nós inventamos o punk
e escrevemos as leis." No rastro do Pistols, vieram lendas como The Damned,
The Clash, The Stranglers, Eddie and the Hot Rods, The Jam, The Buzzcocks,
Eater, The Slits, Generation X, The Adverts, que, inegavelmente, rezaram
na cartilha de Rotten e seus companheiros de banda. Mas ele mesmo nega:
"The Clash? O que? Nunca ouvi falar", diz, hoje, com a cara de mau mais
ensaiada, mas completamente deslavada.
Críticos mais vorazes acham que a volta do Sex Pistols equivale
a uma reentrada de Che Guevara ressuscitado, fardado, em Havana, de jipe
aberto dando tiros de fuzil para cima, como se os anos 70, 80 e 90 deixassem
de existir. Não é bem assim. Se a chamada "vietnamização"
da América do Sul proposta por Guevara deu numa gigantesca frustração,
o movimento punk existe e cresce até hoje, pois é filho legítimo
do desemprego e da crise social que abate a Inglaterra (e agora o mundo
todo) há anos.
Rotten pode ter esquecido de tudo, até das cusparadas e chutes
que deu (e tomou) no rosto de seus fãs nos shows do Pistols, mas
não esquecerá que nasceu como um miserável num subúrbio
inglês. Jogado na escola, foi logo taxado de delinqüente, levou
tapa na cara, e já em 1973 começava a estruturar a vingança
(é a sua palavra predileta), o núcleo do que viria a ser
o Sex Pistols. No inverno de 1975, Rotten reuniu Steve Jones (guitarra),
Paul Coock (bateria) e Glen Matlock (baixo), mais tarde substituído
por Sid Vicius, que, como se sabe, tombou em campo de batalha. Estava formado
o Sex Pistols, que roubou a cena graças às manobras do dublê
de produtor e cafetão Malcolm McLaren.
Saber se Johnny Rotten ou John Lydon é pessoa ou personagem é
um desafio constante e complicado, para o público e para a mídia.
Nem nos tempos do P.I.L, quando essa mistura de onça com jaguatirica
parecia mais light, deu para perceber. Quando ele diz que torrou todo o
seu dinheiro com prostitutas, ou que precisa fazer uma reforma na casa
de Malibu (balneário dos artistas bilionários na Califórnia),
ninguém consegue avaliar se é sério ou se é
deboche. Só ele. Ou quando perguntaram, na entrevista coletiva que
marcou a volta da banda, qual seria o primeiro país da tour e Rotten
respondeu: "A Finlândia, porque ainda não ensaiamos direito."
Todo mundo riu. Até quando um jornalista perguntou "devemos chamá-lo
de Johnny Rotten ou John Lydon?" A resposta "vocês podem me chamar
de sir" deixou todo mundo no ar.
Polêmicas à parte, Rotten é testemunha ocular de um
momento histórico do rock. Em meados dos anos 70 todos haviam pensado
que o filho rebelde da humanidade tinha se atirado nos braços do
conformismo. Mas veio o Sex Pistols e despejou toda a sua ira, boçalmente
distorcida por um incêndio sonoro e, na base do eletrochoque, fez
o rock reviver. O rock sujo, pesado, histérico, neurótico,
que muitos chamam de autêntico e está aí até
hoje.
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