HISTÓRIAS
DE TAIÚVA
Dito Capelão
O Dito era um negro forte e muito alegre, que vivia
de cavar poços, limpar quintais e sítios e outros serviços evitados pela
maioria das pessoas. Era trabalhador, mas gostava de uma boa cachaça no final
do dia e nos finais de semana. Muito confiado, chegava falando alto, puxando
conversa com qualquer pessoa, mesmo interrompendo conversas que já iam longe
quando ele por ali chegava. Seus assuntos não tinham muito pé nem cabeça, e não
era raro o dono do boteco dar-lhe a pinga de graça e manda-lo embora. E ele ia
feliz da vida: tinha rido, conversado e tomado uma pinga de graça.
Nos dias de festa, Dito Capelão não trabalhava.
Aparecia logo cedo, sol quente, metido num terno branco, impecavelmente branco,
com uma ostensiva gravata cor de rosa. Parecia saído de uma revista, arrematado
por um par de sapatos bem engraxados, de número bem menor do que ele deveria
usar. Deveria, porque na execução de seu trabalho diário, usava mesmo era os
pés descalços.
Mas a história que merece registro sobre o Dito,
além de sua figura impar, era o jeito pelo qual ele tomava sua pinga. Eu estava
no bar do Natalino, o Dito entrou, pediu uma pinga, recebeu-a e passou a agitar
o copo fazendo o líquido girar dentro, enquanto assoprava a superfície fortemente.
Fez isso durante uns dois minutos e de repente, virou tudo de um gole só.
Perguntei-lhe o por que e ouvi o seguinte:
-“quando você põe fogo no álcool, ele pega fogo
drento ou em riba?”?
Pensei, visualizei e respondi: “em cima!”
-“pois é”, disse o Dito. “O que faz mal não é o
álcool, não é a pinga, mas o vapor que sai dela. Por isso, eu chacoalho,
assopro e bebo o quanto eu quiser que não faz mal!”
No Poço do Júlio Preto ou A Vingança do Nardinho
O Júlio Preto, dono do tal poço, não era de Taiúva,
era de Taiaçu, mas era famoso na região como sinônimo de mentira. Quando alguém
soltava uma daquelas mentiras bem cabeludas, ouvia sempre um longo Júuuulliiioo!!!
Mas estes fatos não dizem respeito ao Júlio, apenas
se passaram em seu poço. O tal poço na verdade é uma curva de rio que o Júlio
cevava para facilitar suas pescarias de domingo. O local era público na
verdade. Certa feita lá estava uma turma para passar uma noite acampada, fazer
um “pouso” como se costuma dizer. Reúne-se uma turma boa, um ou outro pescador,
para tentar uma fritada, um bom cozinheiro, carne para churrasco e muita pinga
e cerveja.
Presentes entre outros, Nardinho e Nelson Negri.
Manhã do dia seguinte, várias horas e alguns pileques já passados, todos ainda
nas redes, bem cedinho o Nardinho tem uma forte e rara ereção. Entre surpreso e
orgulhoso, com o circo armado, grita para o Nelson Negri:
-
Nelson!!!
Oh! Dá uma olhada nisso aqui!!!
O Nelson olha, pisca várias vezes até entender o que
estava vendo e ataca:
-
Ah
Nardinho, vai mijar porra!!!!
Algumas horas mais tarde, muita cerveja já
consumida, as forças do além tramam a favor da vingança do Nardinho. Do fundo
do castigado intestino, uma cólica impiedosa ataca o Nelson Negri.
-
Acho
que preciso dar uma daquelas, anuncia ele.
Ao que todos respondem:
-
Sai
daqui de perto, vai lá no pasto!
E o Nelson começa uma caminhada fatídica. Não
sabemos até hoje se ventava muito ou se o mundo oscilava naquela manhã, mas o
certo é que o Nelson parecia meio desequilibrado! Caminhou um tanto trôpego em
direção ao pasto, mas topou com uma cerca de arame farpado entre ele e o local
destinado ao seu alívio. Inclinou-se para varar a cerca, mas o inevitável
aconteceu. Enroscou-se feio na cerca!
-
Socorro
estou enroscado!
-
(sem
resposta)
-
Gente
me ajuda! Estou enroscado!!
Mais um longo silencio e ninguém se abalou em tirar
o Nelson do enrosco, ou do sufoco, se preferirem. Ninguém ouviu, mas lá no
fundo o Nardinho, humilhado que fora horas antes deve ter pensado: Ah Nelson,
vai cagar, porra!!!
-
Porra,
ninguém vai me ajudar?! Grita o Nelson de novo.
-
(novo
silêncio, tenso...)
Por fim, seu genro se levanta e avança lentamente em
direção ao Nelson, mas este não pede mais ajuda. Olha para todos com uma
expressão mista de alívio e de desprezo e diz:
-
Agora
não precisa mais! Já caguei enroscado mesmo!
O Nardinho e sua ereção desprezada estavam vingados!
Celso Preto
O Celso é um crioulo muito simpático, um típico “
gente boa” como dizemos lá pelos lados de Taiúva. Quando conheci o Celso, ou
“Cerso” para ser mais fiel ‘a pronúncia local, ele trabalhava como lavador de
carros no posto do Nego Lolato. Um dia, enquanto ele estava lavando meu carro,
comigo ali assistindo, chegou o Nego para apresentar ao Celso o seu novo colega
de trabalho, um garoto (naquela época!) com o apelido de Xerife. O que se
passou vocês já devem ter ouvido como piada, mas eu assisti como cena real.
O Xerife era gago, bastante gago, aliás, como o
Celso também era. Diz o Nego:
“Celso, este aqui é o Xerife, seu novo colega de
trabalho”.
Responde o Celso:
“Muuu muu mmuuiii to to to pra pra prazer!”
Educadamente, o Xerife manda:
“ Mais qui o o o pra pra pra zzzzzzeeer é, mais qui é mmmmmeeee uuuu!”
E o Celso arremata:
“Vaaa vaa vvaai pra pu pu puta qui qui, mas qui
ttiiiii o pa pa pa riu! Va va va vai go go zar da cara do outro mo mo mo leeee
que ssssssssem vergo, nhá!
Até que os dois se convencessem de que ambos eram
realmente gagos, foi um custo!
Mas a melhor do Celso Preto é sobre um período em
que ele foi capataz em uma fazenda lá pelos confins do interior. Um fazendeiro
da região, precisando de alguém de confiança para tomar conta de uma fazenda
recém aberta, contrata o Celso para ir trabalhar lá.
Instala o Celso em uma casa da fazenda, mete-lhe um
38 na cinta, e espalha na cidade, a título de prevenção, que tinha contratado
um negão bravo pra mais de metro, com várias mortes nas costas e muitas outras
malvadezas incontáveis!!
E lá vai vivendo o Celso, cultivando a confortável
fama de mau. Quando ia até o vilarejo, sujo e fazendo cara de bravo, montado
num trator barulhento, era um rebuliço! No boteco, os homens se afastavam, as
mulheres fechavam as portas das casas, não sem antes recolher a molecada da rua. Pinga, era de graça, oferta da casa,
com a dona do boteco rezando para ele ir logo embora e para que ninguém
cruzasse o olhar com o dele, por que aí era morte na certa!
Vocês sabem como são estas coisas: lançado o boato,
como ninguém o desmente, ganha foros de verdade, e mais, a fama aumenta, novos
feitos são inventados e acrescentados ao longo rol de crimes “cometidos” pelo
famoso bandoleiro Cerso Preto...
Como tudo que é bom dura pouco, um dia aparece no
vilarejo uma turma de Taiúva, capitaneada pelo Ione Batista, que nunca foi cara
de ter muito medo na vida. Entram no boteco, pedem de beber e percebem que a
dona estava muito nervosa.
“Dona, algum problema? Parece que a senhora está com
medo de algo!”, pergunta o Ione.
A dona responde: “ ai seu Doto, é que ta na hora do
Cerso chega, e se ele vê oceis aqui, na certa vai sair morte!”
“Mas que tal de Cerso é este?” E a dona do boteco
explica que é o Celso, sua malvadeza, seu sangue frio para matar, as centenas
de mortes nas costas, as marcas no cabo do revolver, o fato dele comer carne de
cobra venenosa crua e outros detalhes da vida pregressa do cruel “bandoleiro”.
No meio da narrativa, a mulher embranquece, gagueja,
treme e aponta para fora do boteco: “credo, é só falar no Capeta e ele aparece!
Olha ele chegando de trator ali!
O Ione olha, focaliza bem a vista e vê nada mais
nada menos que o Celso Preto. “Dona, a senhora tem certeza que é aquele crioulo
safado ali o camarada que a senhora estava descrevendo?” “Mas lógico, o senhor
acha que eu vou confundir esta cara que me causa pesadelo?”, responde ela.
A esta altura, o cheiro de sangue já havia se
espalhado pelo vilarejo. Todo mundo espiando por uma fresta, atrás de uma
árvore, protegidos, mas curiosos.
O Celso chega no boteco, desce do trator e entra.
Passos largos, decididos, afinal ele era “el matador” !!!
De repente, vê o Ione e a turma de Taiúva. Só não
fica branco de susto porque é muito preto para isto. Sente que seu mundo começa
a ruir. “Nego sem vergonha, filho da puta!” Diz o Ione, “então você que é o tal
matador, você, um bunda mole que não mata nem galinha!”, e dá-lhe porrada na
cabeça, tapa na bunda, passada de mão, puxão de cabelo, enfim, a humilhação
total!
O Celso chora copiosamente: “ ai, caralho! O senhor
acabou com a minha vida, arruinou a minha fama, me fez perder o emprego! Como é
que eu vou encarar esta gente, eles vão me matar! Eu tenho que ir embora com
vocês, não posso nunca mais voltar aqui!”
E assim, entre lágrimas do Celso, risadas da turma e
raiva dos moradores do vilarejo, acabou a história do mais terrível bandido que
já andou por aquelas redondezas, mesmo que nunca tenha matado nem uma galinha.
O grande, o enoooorme Zé Bigode!
Mentirosos existem no mundo inteiro, mas no interior eles assumem uma personalidade maior, são pontos de referência, são formadores de opinião. Na região de Taiúva o mentiroso de referência não é de Taiúva, é de Taiaçú. Quando por aqui alguém diz uma daquelas cabeludas, não é chamado de mentiroso, é chamado de Júlio, um "júuuuulio com o "u" bem comprido, fazendo referência ao Júlio Preto, lá da cidade vizinha.
Pois bem, entre os mentirosos famosos às vezes aparece algum desconhecido porém cheio de talento, um Júlio maiúsculo, pra ninguém botar defeito.
Foi assim que descobri um grande, um enorme talento oculto na arte do pouco respeito à verdade, um sujeito daqueles que realmente acredita na mentira que está dizendo. Depois de criada a história, ela passa a ter vida própria e o próprio mentiroso acaba se recordando de algum detalhe esquecido ou é lembrado deste detalhe por seu auxiliar na arte da "mentirologia".
É verdade, todo mentiroso de talento tem um auxiliar. Pode ser um amigo sempre presente, pode ser alguém que esteja de passagem ou alguma entidade distante.
- "... está aí o Fulano que não me deixa mentir..."
- "...quero que Deus me mate se for mentira..."
O nosso herói Zé Bigode tinha sua fiel Dora: "... não é mesmo Dora?" , e ela imediatamente, coberta até a alma de certeza: "Claro Zé, nossa, foi assim mesmo!!"
Pois bem, o Zé Bigode veio trabalhar na minha chácara. Fizemos um processo seletivo cuidadoso, tiramos referências, visitamos o casal, exigimos um contrato de experiência. Tudo em vão, besteira, nenhuma utilidade prática. O Zé era uma enciclopédia viva. Carpinteiro, pedreiro, agricultor, ou melhor, agrônomo, veterinário, corredor de moto, piloto de avião, inventor voltado à ecologia, em fim, um tudo!
Um dia, já de saco cheio de tanto conhecimento, perguntei ao Zé o que ele não sabia fazer, no que ele não tinha experiência. Ele pensou um pouco, matutou e cascou direto: "NADA!"
O colega de trabalho do Zé aqui na chácara, o Ercílio, que na sua aparente candura tem uma língua muito afiada, fez algumas contas (com o auxílio do polivalente Cido) e chegou à conclusão que o Zé, para ter aprendido tudo que sabia e para ter trabalhado em todos os lugares em que disse que trabalhou deveria ter, de trabalho registrado, uns 234 anos de experiência.
Para ilustrar o que estamos comentando, selecionei três causos do Zé Bigode: o da tartaruga de estimação, o do avião agrícola e o duelo da moto com o caminhão.
A Tartaruga de estimação.
Este o Zé contou para a minha mulher, que não me deixará mentir sobre o caso, não é Tata?
Bem, o Zé tinha uma enorme tartaruga de estimação e quando ele saia para trabalhar na roça, a pobrezinha entrava em profunda depressão. Para evitar isto, o Zé tinha que levar a tartaruga para a roça com ele, mas havia um problema, como fazer para que uma tartaruga tão ativa como a dele ficasse quietinha olhando o Zé trabalhar?
Fácil, o Zé pegou uma furadeira, fez quatro furos no casco da tartaruga e colocou quatro correntes que se uniam em um único elo, assim como fazemos com os vasos de samambaia.
O Zé saía para trabalhar e leva a tartaruga com ele. Chegando na roça, pendurava a tartaruga em uma sombra e lá ficava ela "pedalando" no ar enquanto o Zé, por assim dizer, trabalhava.
De tempos em tempos, o Zé baixava a tartaruga, ela dava uma voltinha em terra firme e retornava para seu privilegiado ponto de observação.
Não sei se o Zé patenteou o seu porta-tartaruga, mas que isto é a pura verdade lá isto é, não é Dora?
-É Zé, sem dúvida!
O avião de pulverização agrícola.
Estávamos juntos, eu e o Zé, matutando sobre a necessidade de passar enxofre no limão quando o Zé teve aquela coceirinha que todo mentiroso tem, ficou "desinquieto" e resmungou:
- De avião ficava mais fácil!
- Mas Zé, você também sabe pilotar avião?
- Dos grande não, mas destes pititicos de fazer porvorização eu sei! É qui nem trator, avoa baixinho e devagar!
Aí eu não agüentei e forcei a barra, dizendo:
- Conta Zé, como é que funciona a coisa?
E ele muito prestativo me explicou que era fácil. Subia no avião, decolava, baixinho, mas decolava e saía voando em direção à roça que ia pulverizar. Enquanto isto, o ajudante já se posicionava com o bambu lá na ponta da roça.
É aí que eu acho que está o detalhe genial do mentiroso profissional. Quem iria, em sã consciência, incluir em uma mentira destas um ajudante com uma vara de bambu e uma bandeirinha na ponta? Só um profissional, é lógico!
- Mas Zé, por que o ajudante com uma vara de bambu e uma bandeira na ponta?
- Uái, claro!! Como o avião é dos pequeno, não tem aquela relogiaiada toda dos grande, e por isso precisa do ajudante.
E seguia explicando que ele fazia a volta sobre a roça, soltava uma faixa de produto químico sobre a plantação e, enquanto ele voava de novo para a cabeceira da roça, o ajudante se postava com o bambu e a bandeirinha marcando até onde ele já tinha pulverizado.
- Dispois que eu fazia a vorta, amirava a ponta da asa na ponta do bambu e carcava o pé na porvorização. Num ficava um centímetro sem porvorizá! Num é Dora....????
O duelo da moto e do caminhão.
Tarde de sábado, calor danado, eu lavando minha moto para dar uma volta na cidade. O Zé chega perto dela, uma Shadow 600cc, dá uma olhada no velocímetro, que marca até 140 km/h e solta:
- Grandona assim e lerda!
- Lerda Zé? Você sabe o que é estar a 140 em cima de uma coisa destas?
No que eu falei, me arrependi, sabia que ia levar chumbo! E ele veio grosso!
- Faz uns ano, eu tinha uma CG 125, daquelas meio vermeia. Tava vindo de Jaboticabal pra Taiúva quando, na descida da Girondinha, uma Scania banguelada deu de buziná atrás de mim. Quando eu percebi, carquei o pé na cegezinha e puxei até uns 150, 160 por hora. Aí olhei pra traz e fiz ansim com a mão: vem negão, passa por cima, sê num é o bão?
- E ele te passou Zé?
- Qual! Sê acha? Afinô!!! Num é Dora?
- Num sei Zé, num alembro desta!
Olhei assustado para o Zé! A Dora não confirmou!!!! Mas ele me sossegou em seguida:
- Ela num gosta que eu ando de moto, acha que eu corro muito!
Agora chega, acho que três cabeludas como estas já são suficientes.
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