Não Amarás

Título Original Krotki Film O Milosci / A Short Film About Love
Direção: Krzysztof Kieslowski
Produção: Eiseigekiyo Co., Imamura Productions Co. / KKS
Elenco: Grazyna Szapowska, Olaf Lubaszenko, Stefania Iwinska
  Polônia, 1988
Genêro: Drama 
Duração: Cor, 35 mm, 97 min
Sinopse:
(Resumida)
Funcionário do correio, obcecado por mulher mais velha que mora em apartamento próximo ao seu, tenta uma aproximação. Adaptação para o cinema de um episódio da excelente série de TV Decálogo, visão contemporânea dos Dez Mandamentos realiza­da pelo diretor Kieslowski e pelo roteirista Krzysztof Piesiewicz. Surpreende pela simplicidade com que mergulha nos mecanismos da paixão e pelo sopro de vida que faz brotar dos personagens. Prêmio do público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 89


Em "Não Amarás", Kieslowski trata o amor com uma sensível e poderosa representação. Uma visão extraordinariamente delicada, além de polêmica. A expressão de sutilezas constitui a essência do filme: o que não é dito, o que não é expresso, deixa sua marca permanente.

Tomek, um jovem funcionário do serviço de correios, é obcecado por Magda, uma mulher sexy que vive no bloco de apartamentos em frente. Ele a espia incansavelmente por um telescópio até, afinal, declarar seu amor.




Sua inocência e fragilidade, assim como o próprio filme, são um convite à intimidade que nós, audiência, progressivamente adquirimos. Assistimos interessados e expostos, como o próprio personagem e também, em sentido mais amplo, seu objeto de observação o fazem. Seu telescópio torna-se a alusão direta - distância, separação, aumento de tamanho. Assim, emocionalmente, intelectualmente e cinematograficamente, o filme explora seus temas: observação e amor.

A negociação resultante entre homem e mulher, sujeito observado e observador, audiência e diretor, é uma relação, um caso de amor. É o impacto emocional do filme que nos resta quando nosso breve "voyerismo", nossa visita ao cinema, termina.

Kieslowski: Uma Pequena História Sobre o Amor

- O que você quer de mim? Você quer me beijar na boca, é isso?
- Não.
- Você quer me comer, então? - Não.
-... hhmmmm... você quer me levar para passear, andar de mãos dadas no Lago Masurian?
- Não.
- Não? Então, o que você quer de mim?
- Não sei.... nada.

Há um determinado tipo de pessoa que, por um motivo ou por outro, se esquiva da vida. Talvez por medo, ou simplesmente por desconfiança. Ela então acaba, sem querer, encontrando um refúgio: a tela negra do cinema. Como, então, definir a importância de uma frase, de um gesto, de um olhar, da presença da vida, ainda que distante e num mundo de apenas duas dimensões, num simples pedaço de acetato?

É naquele curto momento em que a magia do cinema se faz sentir sem nenhum aviso prévio. Como diria Rilke (embora a frase não tivesse sido construída com o cinema em mente),

"Sou aquele intervalo entre duas notas
que dificilmente se harmonizam
e é quando o tom da morte vai mais alto

Mas no escuro intervalo as duas soam,
trêmulas ambas,

e é bonito o canto."

Olek, o desengonçado garotinho de Não amarás, apenas pode sentir a vida através da lente de sua luneta roubada. Do outro lado, lá fora, longe de seu quartinho claustrofóbico e mofado, está a vida que pulsa quase sem ser notada.

Por isso, é comovente a epopéia de Olek para efetivar um simples contato. Quando Olek finalmente consegue convidá-la para sair, é mais que um sonho que se realiza. Pela primeira vez, Olek sente que existe afinal uma possibilidade.

É comovente a felicidade de Olek quando chegam os instaladores de gás e quebram o clima entre ela e outro cara.
É comovente como Olek enlaça o telefone quando ela o desliga porque ele não consegue responder.
É comovente o golpe seco no roto armário do quarto quando sua estratégia funciona.
É comovente a humilhação do soco e as palavras de moral do amante dela.
É comovente a expressão de Olek quando ela vai ao correio pela primeira vez.
É comovente quando ele a acaricia no bar, olhando como os casais em torno o fazem.
É comovente quando Olek e ela correm de mãos dadas para pegar o ônibus.

E é especialmente comovente a reação de Olek quando finalmente ela concorda em sair com ele "para tomar um sorvete". Ele passeia em círculos com o carrinho de leite em torno do jardim, embaixo do prédio, como se fosse uma criança. Ele quase esbarra em um morador, que, ao invés de ficar irritado, parece compreender - como o espectador - a alegria do menino.

E como é curioso que exatamente a língua que Olek esteja empenhado em aprender seja o português! "Desenhamos, desenhais, desenham..." Um sinal, talvez?

No mundo dos filmes do mestre Kieslowski, há sempre uma tentativa de uma pessoa em conhecer-se melhor. Por isso, este talvez seja seu filme mais pessoal. Este desejo de se conhecer necessariamente envolve conhecer o outro. É nessa generosidade em que se baseia toda a filmografia da fase francesa de Kieslowski. Conhecer-se a si mesmo não mais basta; faz-se necessária a existência de um outro. O mundo antes solitário passa a envolver um diálogo com o outro como uma forma de promover um diálogo consigo mesmo.

Quando ela lhe oferece uma toalha, logo após sua ejaculação precoce, a frase ríspida, a humilhação, reforçam a idéia de que na verdade o contato é impossível. Mas é a partir desse ponto, do fundo do poço, que o carrancudo diretor polonês, pela primeira vez, se permite uma transformação romântica e apaixonada.

Ao final do filme, ela vai a seu quarto, e olha pela luneta dele. Seus mundos se complementam, porque na verdade são um só. Antes, ela toca a bandagem que esconde a cicatriz nos pulsos do menino.

Surpreendentemente, nesse instante, ela fecha os olhos. Olhos fechados, como os do menino, ainda desacordado. É mais intenso do que se eles fizessem amor. É um contato íntimo com o espiritual.

Não Amarás é a esdrúxula tradução de Uma Pequena História sobre o Amor. É um filme tão pequeno, tão menor, que pode transformar uma vida.