Leave a love (*)

Lívia, love: todas as manhãs eu deixo um amor.        




Eu estou sentado sob uma barraca, no meio da sala, que construí para nós dois fugirmos do frio que faz lá fora. Há uma caixa colorida com uma infinidade de livrinhos também coloridos, espalhados pelo chão. Meu nome é Chiquinho, sou seu filho (e chamo você de mamãe o tempo todo) e tenho na boca uma chupeta. No colo, tenho uma boneca, enrolada em roupas que em outras épocas foram suas. A boneca é minha irmã. Você é minha mãe. Fico pensando na cara dos sujeitos que me olham feio, de vez em quando, nesses tribunais e audiências pelo mundo afora. O que diriam eles se me vissem assim? Meu sentimento às vezes, ao te olhar, ainda hoje é de incredulidade. Na primeira vez em que te vi, não senti nada, absolutamente nada, só incompreensão. Acho que foi recíproco, pois teu olhar cinza e embaçado, me olhava sem entender quem eu era ou o que eu estava fazendo ali. Nem você mesma sabia o que estava fazendo ali. Lembro de, na primeira vez, esticar meu dedo indicador e passar suavemente sobre as costas da sua mão. Um carinho, um contato, um "sou eu, você entende que eu sou eu?" Era uma manhã de outubro, daquelas em que se passa a noite com frio e lá pelas dez da manhã, já não se pode mais suportar o calor. Depois te colocaram naquele quarto do hospital. Não era quarto, era um aquário, e as pessoas encostavam o nariz no vidro para tentarem enxergar vocês todos lá dentro, cada qual na sua cama, cada qual com sua identificação no pulso, uma fita impessoal. Uma noite daquelas dormi com você em cima de mim, e não quis levantar, dormi sentado, você caída por cima de mim. Tinha medo de que você não conseguisse dormir. Para falar a verdade, depois que você chegou, nunca mais dormi muito. Nunca além de cinco ou seis horas por noite. Às vezes quatro ou três. Não foram poucas as vezes em que cheguei, extenuado, do trabalho, e no escuro vi seu vulto deitado na cama, seus cabelos escuros despontando na roupa, na roupa de cama. Então eu subia na cama de quatro, feito um cachorro, e sem você dar por mim, eu aspirava o perfume de todo o seu corpo, como um sabujo, só pelo prazer de saber que você, dormindo, estava próxima de mim. Beijava suas mãos, o seu rosto. Até hoje eu faço isso. E você também faz, comigo. Eu me apago ao seu lado assistindo ao Mickey Aprendiz de Feiticeiro e sonho que sou ele, lutando contra uma infinidade de vassouras e seus baldes d´água. Acordo com sua mão pequena em meu cabelo, seus beijinhos molhados no meu rosto e na minha boca. Você cuida de mim. Chego muito tarde. Saio cedo. Seguro suas mãos dentro das minhas, em concha, você dormindo, e digo baixinho em seu ouvido: "estou aqui". Seus olhinhos fechados, seus cílios de mulherzinha pequenina. Você pressente a minha chegada e os meus beijos. Dormindo, você suspira. Vejo em você, alguns dos meus sinais. O seu braço direito carrega um sinal que eu também trago, de nascença. Vejo minha fronte na sua, suas sobrancelhas nas minhas. Vejo nos seus olhos o desconhecimento do Mundo, tão grande e tão inexplicável. Por você, me assusta a crueldade desse Mundo. Hoje me comove até o seu par de tênis branquinhos, pequenos, que nem brancos são mais de tão esfolados, dormindo quietinhos ao lado dos meus sapatos, na área de serviço. Dormir abraçado a você numa tarde fria de sábado é estar próximo ao que convencionaram chamar de Céu. Você é tão sensível, mas sua alegria e suas lágrimas também me atingem a sensibilidade com a mesma consciência de que não posso me dar ao luxo de deixar de existir só para estar aqui, no Mundo, com você. Para impedir que o bandido alcance você, mesmo eu sendo um mocinho tão vulnerável quanto fraco. A umidade da sua boquinha inocente que beija a minha, ao invés de me esfriar, só imprime em meu peito a abrasadora e incessante chama, que só pode queimar na fornalha de amor, alimentada em quem ajudou, pela mão de Deus, a te dar a vida. É assim, com beijinhos e aspirando o perfume do teu cabelo, enquanto suspiras dormindo, que eu implodo e re-implodo as ruínas desse meu coração destruído por alguma ausência que também é sua e que você nem dá por ela. É com amor que subo nesses escombros e grito com força, as veias saltando rubras do pescoço, a voz rouca disparando trovoadas e relâmpagos, tempestade que no princípio assusta para aguardar, em seguida, que a água caia vigorosa sobre a terra. Sobre a minha terra. De onde tudo recomeça a brotar, verde. Chuva na qual me abandono e me deixo encharcar, com os braços abertos, esperando paciente que você precise de um livro de histórinhas ou de um copo de água. Que você precise de alguém que se sente no chão do seu quarto e prove da comida de mentirinha que você fará, para mim e para a sua infinita legião de bonecas e bichos, alguns cujo padrinho de batismo sou eu mesmo, alguns batizados antes mesmo de você nascer. Que você precise alguém para participar de suas fantasias e histórias inventadas, como tantas das que eu aprendi a inventar, às vezes só para mim mesmo, desde que comecei a pensar na vida. Que você precise de alguém que te ame em silêncio, estando você acordada ou dormindo. E exercendo sua maneira de ser gente e de amar, esquecendo-se da hierarquia boba que há nas relações familiares, me chame desaforadamente pelo meu primeiro nome ou - como todo o mundo na sua idade faz - simplesmente me chame de pai.



Cuervo^¤^     (05/99 - r. 10/06/99)




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