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"De cemitérios e Adrianas"

 

Eu não gosto de cemitérios brancos, Adriana.

Eu não gosto quando as almas olham para nós, de frente a cada túmulo – ou pedaço sem graça de concreto – e parecem cuspir uma mágoa branca de alguém que não viveu tudo o que deveria ou poderia. Cheiro de arrependimento tardio, misto de surpresa e desilusão.

Estão todos compactados, Adriana, fazendo fila, arranjados como plantação de eucalipto...feito marcha fúnebre, um atrás do outro, dispostos geometricamente perfeitos...esses túmulos são a essência da racionalidade. Todo cemitério branco se transforma numa equação matemática, sem raízes ou explicações, apenas um campo imenso cercado de concreto branco por todos os lados.

Não é o campo dos sonhos a definição mais aproximada da morte feita em fileiras, sem árvores gigantes, apenas arbustos pequenos e esquálidos que tentam enganar nossas mentes e olhos. Não, Adriana, o que se esconde por detrás desses túmulos brancos é a ausência da cor...como se esconder ausências fosse simples e exato.

Ainda tento afagar a mente com meus vôos em cima de cada verde que encontro pelos caminhos entre os mortos, tentando imaginar que dentro de cada rosto que não mais sorri ainda se esconde um restinho de vida colorida, vida feita de pó que alimenta a terra, que alimenta mais sonhos...e assim vai...

Não adianta, Adriana, é exercício impreciso que esbarra nas paredes amorfas, verticais e irremediavelmente brancas. Cinismo de alma que parece brincar com a cor mais sublime. Definitivamente os brancos não combinam com os túmulos arrependidos. Pouco me dizem as letras esparramadas pelas lápides, porque são humanamente incompatíveis com os restos que lá dentro ainda gotejam.

Fico imaginando o quanto de vida foi jogada fora para que os túmulos hoje sejam brancos. Em essência, talvez não tenham querido viver intensamente quando vivos estiveram, quem sabe cumpriram o papel destinado aos vivos da sociedade temperada com um molho único e obsoleto. Obsoleto porque sem desejos, mecânico e sem graça. Assim devem ter sido essas vidas agora debaixo de uma terra úmida.

Fico imaginando a inexistência de qualquer tipo de cemitério, Adriana. Porque, na verdade, se vivêssemos a plenitude seríamos eternos e não precisaríamos de lápides nem de concretos cheirando a brancos arrependidos. Seria como se atingíssemos os vôos mais inebriantes e intensos, de um jeito tão sublime que quando parássemos de respirar virássemos anjos ou árvores, ou pétalas...ou águas...

Pena, Adriana, que ainda existam cemitérios brancos. São o espelho do que não fomos enquanto infantes e guerreiros a respirar todos os dias como se nunca fôssemos acabar e, por isso mesmo, não vivemos.

Ofereço meus pensamentos a você, minha pequena Adriana, para que seus anos de vida sejam a essência da desmistificação da sociedade de massa de modelar...para que seus encontros com sua alma sejam noturnos e reflitam estrelas e brilhos incomuns, repletos de cores...para que um dia você não adormeça seu corpo num cemitério branco...sem cor.

                                                                        04/1999.