Three Pair of Shoes - Vincent Van Gogh


PARA UMAS BOTAS VELHAS


Não sei o que teria levado o Homem dos Girassóis a escolher aqueles pares de botas velhas, sinal de bastante uso e sujas, para eternizar num quadro. Não seria a primeira vez que sua escolha recairia sobre um tema ligado à gente pobre, excluída como ele - um louco. Em frente à tela em branco - imagino - ele teria pensado, inicialmente, em retratar os homens donos das botas. Rostos envelhecidos por sucessivas jornadas de trabalho passaram pela sua mente; ele preferiu os calçados. Por que não os velhos homens? Talvez fosse óbvio demais mostrar a gente rude, sofrimento estampado nos olhos. Esses olhares damos com eles em cada esquina, embaixo das marquises, sob os viadutos. As botas estampam a sujeira dos homens, seus desgastes, os excessos de que eram vítimas; e a vantagem de não fazer despertar algum humanitário pesar, costumeiro quando se encara um rosto encovado e uns olhos sem brilho.

Não sei o que me fez parar, precisamente, diante daquele quadro, em detrimento de tantos outros - igualmente,lindíssimos - que a galeria apresentava. Embora se tratasse de uma réplica - não tenho muita simpatia por réplicas - aquele era especial. Van Gogh havia sido especialmente feliz daquela feita.

São os pequenos detalhes, quase invisíveis nas horas corridas do dia a dia, que me atraem mais. Penso que nem sempre o grandioso traz tanta significação como o detalhe. Tal como eu, outras pessoas pararam diante das botas, que seriam, fatalmente, ignoradas caso não fossem lembradas pelo Homem. Éramos um pequeno grupo de admiradores, deslumbrados com a genialidade do artista. Pouco a pouco, o grupo foi se afastando e fiquei eu, ali, imersa no ambiente que guardava aquelas botas. Pensei em comprar a tela.

Mas não a comprei nem naquele dia e nem nos dias subseqüentes. Não que não tivesse o que a galeria pedia por ela, mas intuí que, de alguma forma, ela seria minha; protelei a compra. Passei todos os dias, durante duas semanas, visitando a galeria e parando diante do quadro de botas; voltava encantada para casa. Quase desnecessário dizer que a recepcionista me abordou diversas vezes, fazendo diferentes propostas de venda, dividindo e redividindo o preço que me possibilitaria levar as botas e a história que elas começavam a me ditar. Estava completamente tocada pela possibilidade de ter o quadro.

À noite, voltando para casa, ao me deitar, ficava adivinhando que situação ocasionara a disposição daquelas botas no suporte onde elas descansavam.

O sol já se punha. Os lavradores daquela aldeia holandesa chegaram cansados do trabalho no campo. Traziam os sapatos sujos de terra - devia ser avermelhada, para combinar com a lembrança do marrom das botas; vinham um tanto desanimados - quantos anos, fazendo o mesmo trabalho, nunca visto por ninguém. Vinham com muita fome, tanta que nem repararam que já punham os pés calçados de toda aquela lama na soleira da porta. As mulheres dos lavradores, ao verem os maridos entrarem no galpão das refeições com as botas de terra, puseram-se à frente da entrada da grande sala, impedindo a passagem dos homens. As mulheres apontaram o aparador onde estendiam os panos de lavar chão. Que largassem ali a imundície que traziam de fora.

Vinham de muitas mágoas que lhes causavam os maridos; só a muito custo os aturavam; conselho do pastor; casamento é para sempre. Traziam para casa pouco dinheiro no final do mês, assim mesmo depois de terem deixado uma parte com as mulheres da vila. E ainda vinham vestidos com as roupas lambuzadas do sexo que a lei de Deus desconhece. Por que o Senhor não lhes dava um castigo, a mostrar-lhes que a traição era pecado? Por outro lado, como esperar de Deus alguma atitude a favor delas, se era homem ele também?...Mas elas, as esposas, estavam dispostas a por um fim na era de submissão.

Os gritos fortes das mulheres enfurecidas chegaram longe. Eram palavras de ordem, de quem detém o poder; poder de matar a fome. Eles obedeceriam.

Os gritos nem precisariam ir tão longe; Vicente ouviu. Ele, que procurava um motivo para dar vida às suas tintas que ainda repousavam nos tubos, sentiu que ali havia um tema pronto para ser tocado.

Obedientes, os maridos tiraram os sapatos e puseram-nos no suporte que elas apontaram. Bateram as botas umas nas outras, para retirar o excesso de terra. Um dos homens - parecia mais novo - contrariado pelo cansaço da lida, largou seus calçados de qualquer jeito. Um dia, não obedeço nunca mais. Sumo no campo, não volto mais para casa, nem pro trabalho, nem pros filhos eu volto mais. Um dos pés das suas botas ficou tombado e mostrou a sola gasta de vários anos do mesmo caminho de ida e vinda. Era também assim que ele se sentia, gasto e previsível.

A poucos metros do galpão, Vicente assistira à cena, e teve pena dos pobres homens tão espezinhados. Por isso, resolveu prestar-lhes uma homenagem, de vez que não tinha condições de tirá-los dos trabalhos do campo ou de arranjar-lhes mulheres mais compreensivas. Mas tinha o poder de tornar um momento mais belo, mais feliz, com mais cor. Ele era, sim, um pouco de Deus.

O suporte com as botas ficava a alguns metros do galpão de refeições. De onde estava Vicente, via-se um monturo de terra que fazia fundo para a coleção de sapatos.

Van Gogh colocou na memória da tela a imagem dos calçados. Primeiro, um esboço rápido. Na hora de representar o fundo, resolveu amenizar a paisagem e a vida dos camponeses. Um cetim, vindo de algum alto, caiu e velou o monte de terra ressequida.

Os lavradores não perceberam quando o pintor de girassóis se aproximou. Ele chegou, como sombra de flor. Tocou discretamente cada calçado. Parou ao perceber que seu toque alterava a realidade daqueles pés. Era preciso que a dureza e a dor estivessem na tela. Sem arranjo especial que amenizasse suas cores. As botas teriam a tonalidade da terra, dona de toda aquela gente, sua verdadeira senhora, que lhes pedia trabalho diário e intenso, em troca de mais aspereza. Os campos e seus girassóis não era o pagamento que esperavam do destino. O rapaz lavrador, cheio de espírito de liberdade, jamais sairia dali. Ele permaneceria; pelo pão e pelo teto, embora mal dormisse e mal comesse.

Os tons de marrom e terra foram se juntando e dando vida às botas. Enquanto o pincel deslizava pelo tecido, Van Gogh ia repassando toda a história triste dos que amassam a terra, reviram o esterco para que o mundo possa apreciar um campo amarelo de flores.

Os homens nem deram pelo pintor, ao saírem de volta para os campos. As mulheres, essas nem poderiam; seus afazeres domésticos jamais permitiriam que elas perdessem tempo com veleidades como um quadro com umas botas sujas de uns homens ímpios. Algumas crianças vieram ver e reconheceram os calçados de seus pais. Acharam-nos bonitos; os deles, um dia, seriam assim. Uma menina riu, que os cadarços bem podiam ser macarrão ou minhoca. Van Gogh também riu e deu uma pincelada, para que não restasse dúvida de que nenhuma minhoca se atreveu a invadir os sapatos do pai da menina ou que a mãe da garota ralhou com o marido, por ele ter provado do macarrão, antes que a refeição estivesse pronta.

A tardinha, já quase noite, começou a escurecer o marrom das botas, e a terra, de vermelho, ficou feito sangue pisado. Van Gogh arrumou seus pincéis na maleta e foi lavar as mãos num riacho ali de perto.

Os homens começaram a chegar do trabalho. Aquele mais jovem, das botas jogadas, se aproximou do cavalete e se emocionou pensando que outro alguém também gostaria de jogar os sapatos de qualquer maneira; bem pareciam as suas botas. Os outros homens já estavam distante, quando ele ainda reparava no quadro. Um dos cordões parecia ultrapassar a pintura; a mão do jovem lavrador tocou de leve o cadarço pintado. Seus dedos se tingiram do marrom avermelhado. Ele levou a mão aos pés e fez com os dedos sujos algumas marcas de tinta. Cerrou os olhos e continuou andando em direção à tela.

Em vão, durante toda aquela noite, procuraram pelo lavrador. Sua mulher chorou. Seus filhos juravam tê-lo visto se embrenhando pelo mato, onde prometeram também se embrenhar um dia.

Nas suas alucinações, Van Gogh, por diversas vezes, pôde ver um homem sentado ao lado da tela das botas lhe pedindo que pintasse um quadro com torres de igrejas, onde ele pudesse subir e contemplar, do alto, como é que a noite consegue escurecer um campo de girassóis.

Voltei à galeria, como todos os dias. O quadro não estava mais lá; fora vendido para um senhor bem velho, que se dizia holandês e que se encantara justo com aquela bota virada.



Maria Laura (1999)