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Quando os habitantes de Céu de Estrelas acordaram naquela manhã, tiveram uma surpresa. Seu Caruso, por exemplo, juiz da comarca local, não podia imaginar que a família Etéreo aprontaria mais uma, depois daquela, a do dia da festa da Padroeira, Nossa Senhora da Luz. Pois não é que, na noite da coroação, eles anunciaram aos quatro ventos que brilhariam mais que os astros do céu, para saudar a protetora dos habitantes do lugar?!
A população já estava disposta a proibir que eles ateassem fogo ao corpo. Afinal, só com o fogo eles poderiam brilhar tanto quanto pretendiam. Porém, chegaram sem nada nas mãos a mãe, o pai, o filho e o cão, considerado da família desde pequeno. Os quatro se postaram diante do altar, à frente da imagem da santa; os que possuíam roupas, abriaram-nas na altura do peito, e Chien rasgou-se com a unha, mas não verteu uma só gota de sangue. Todos prontos para a homenagem, uma intensa luz começou a sair do coração de cada um deles e inundou toda a nave central da igreja. Os devotos caíram de joelhos. Mesmo quem não acreditava, teve que concordar que aquele era - no mínimo - um fato dos mais inusitados. Quando a festa de brilhos cessou, a explicação foi simples: tinham estrelas guardadas para Nossa Senhora, desde o dia em que haviam nascido. Como era dia de festa religiosa, ninguém discordou, muito pelo contrário, quanto mais milagre, melhor. Mas, passada uma semana, por falta de acontecimentos, começaram os comentários; querem ser melhores que o padre e que o festeiro; naturalmente, querem assegurar um lugar no céu e, para isso, nada melhor que impressionar Nossa Senhora - mãe se impressiona à toa. Resultado: nada mais de homenagens que causem estranheza, foi a ordem do juiz. Parece que eles entenderam. Chien já não era mais visto andando sobre as patas dianteiras; o pai fechou sua loja de vender idéias, mesmo contando com enorme clientela; a mãe encerrou suas atividades como catadora de histórias de crianças da praça; já o filho nunca mais pode pegar essas histórias e transformá-las nos grandes painéis que chamavam a atenção de quantos chegassem a Céu.
Mas o que acontecia hoje, passava de todos os limites !... Vê se alguém acha que está tudo certo, quando olha para o céu e está ali, VOANDO, toda uma família, inclusive o cachorro ?!...O prefeito mandou mobilizar o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil da outra cidade, onde havia plantadores de montanhas e onde, vez por outra, tinham que resgatar alguém que havia sido esquecido em algum monte ainda em muda e de onde, agora já a montanha crescida, era impossível ao esquecido - mesmo adulto - sair de lá sozinho e voltar à cidade. Enfim, essas coisas corriqueiras ...
Qual seria a justificativa desta vez ? Não importava, fosse qual fosse, não haveria desculpa ...
O juiz se assentou no banco da praça e, pacientemente, esperou que o vento parasse e o bando de etéreos cessassem o vôo. Lá para as tantas da tarde, o juiz já perdendo a paciência, pessoas se aglomerando na praça, vendedores de pipoca, de picolé, de balões infláveis fazendo algum dinheiro extra, o clã de passaredo começou a assentar. Primeiro Chien. Nem bola para o juiz que, apesar de querer intimidá-lo com o Código Penal, não conseguiu arrancar-lhe nem uma só palavra. O cachorrinho fez uma espécie de muxoxo, largou ali perto um xixizinho, cumprimentou Seu Caruso e tomou o caminho de casa, não sem antes estender bem as asas e ajeitá-las para um próximo vôo. Depois o pai. Esse não escaparia. O juiz se levantou, colocou a mão no peito do homem para impedi-lo de caminhar e foi direto:
- Que história é essa de vocês agora andarem voando por aí ?
Sua excelência meritíssima foi interrompido pela mãe que, agora, ensaiava uma aterrissagem com pose de bailarina, sob os aplausos de algumas crianças que não conseguiam ser detidas pelos pais. A mãe desceu com a perfeição de uma ave, com a mesma leveza. Fechou suas asas e começou a tomar a direção de casa, observando a cena do seu alado amor com o homem que pensava mandar na força do vento e no desejo de nuvem. Como as pessoas são insistentes, pensou, voar é uma coisa comum, todo mundo pode ... Chien tinha razão, melhor ir para casa. Ficar ali, perdendo tempo com gente fadada a se arrastar ?!... O juiz largou o pai voador e tentou interromper o caminho da mãe. O pai não permitiu que ele a tocasse. Ela esperou.
- Mas, como é que vocês explicam o abuso de hoje ? Eu já não havia proibido qualquer manifestação extraordinária na cidade ?
- Eu acho que todo mundo obedeceu. Pelo menos, não temos tido conhecimento de nada diferente em Céu de Estrelas. Ou então a gente não foi informado ... - disse o pai. Até Seu Pepeu, que anda de quatro, parou com a mania, mesmo porque isso já nem se usa mais.
A mãe assentiu. Mas, lá vinha descendo o filho, fazendo piruetas no ar. De repente, o menino começou a cair vertiginosamente. No chão,pessoas estavam receosas de que ele não tivesse tempo de descer com segurança. Afinal, o solo estava próximo. Até o juiz parou, temendo pelo pior. O pai e a mãe pareciam não enxergar ali nenhum perigo. E tinham razão.
Seu filho fez uma descida de mestre, mestre-pássaro. Desceu na pontinha de um galho da maior mangueira, que ficava no centro da praça. O pai pediu um momento de licença ao juiz, alçou um pequeno vôo e pegou , com carinho, o filho no colo; trouxe-o seguro para perto da mãe.
- Pois bem, senhor juiz, onde estávamos mesmo? Ah, sim ... o problema dos vôos. Como eu estava dizendo, não há nada de extraordinário nisso. Desde que a gente tenha vontade de voar, por que não ?! O senhor pensa que a gente voou ? É porque o meritíssimo acredita que possamos realmente voar. Nós descobrimos que voávamos, desde que a minha loja de idéias teve que ser fechada. Fiquei com muitas coisas na cabeça, tantas que elas começaram a escapar e eu tive que pular cada vez mais alto para buscá-las todas. Minha família, quando me viu aflito para recuperar as idéias, começou também a saltar. E, como algumas boas idéias ameaçavam ir para sempre pelas janelas, fomos atrás delas. Aí, estávamos voando. O que há de extraordinário em saltar para buscar idéias que fogem ? Vai dizer que alguma meritíssima idéia já não foi para o espaço. Se Vossa Excelência Meritíssima se permitisse voar, já estaria a idéia garantida. Mas faz que não sabe e que não pode ...
O juiz estava apalermado, não esboçou uma única palavra; alguém ali era louco. Será que era ele ? Afinal o homem havia falado com a convicção da forma da lei.
O pai abraçou a mãe, que abraçou o filho e foram todos encontrar Chien, na casa da família. A povo reunido estava maravilhado com a possibilidade de qualquer um voar.
O juiz foi atrás do grupo e ainda tentou uma última intervenção no ato tão banal:
- E o cachorro, por que voava ? Não vai me dizer que se preocupava com as idéias também ?...
- Não, ele sempre teve as dele mesmo e já está habituado a voar para buscar as que tentam escapar.
Meritíssimo Caruso coçou a cabeça, o nariz e as orelhas com rapidez. Parecia que estava tomado de uma coceira louca. Aí, parou e suspirou fundo; estava cansado.
O menino se curvou com respeito perante o juiz, subiu, sobrevoou a cabeça do magistrado. O pai estendeu o braço, o menino pousou. A família retomou o caminho de casa.
Maria Laura (1999)
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