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Consultou a agenda e viu que havia já dez anos que iniciara a terapia.
Fizera bastante progresso. Havia conseguido o que desejara. Disse adeus às angústias antigas, às frustrações adolescentes, aos medos infantis. Também não faziam mais sentido as reações eufóricas a pequenos sucessos. Esperaria pelas grandes vitórias para, então, se manifestar com pompa e circunstância.
O terapeuta não pensava da mesma forma. As homeopáticas vitórias diárias deveriam ser comemoradas, sim. E chorados os fracassos - os grandes - esses contavam.
Ela é que não via o porquê desse desgaste.
Vinha se mantendo equilibrada. Um exercício diário construir o equilíbrio.
Por diversas vezes enfrentara situações consideradas angustiantes pela maioria das pessoas, com heroísmo, sem verter uma lágrima, uma gota de suor.
O que era a vida, afinal ? Uma série de situações mais ou menos problemáticas, quase sempre previsíveis, que se sucediam em quadros. Se um fato era ruim, logo se seguiria um bom e depois outro ruim, e depois ... Pra que tanta paixão ao lidar com os fatos ?... Isso. Somente fatos. Não envolviam sentimentos. Os sentimentos pertenciam às pessoas que viviam os fatos. Logo, eram perfeitamente contornáveis.
Seus amigos de outros tempos comentavam que a preferiam como ela era antes. Um pouco maluca, é bem verdade, mas íntegra.
Íntegra, como?!... De jeito nenhum. Íntegra ela era agora. Completamente equilibrada.
Diante da morte, mesmo de pessoas mais chegadas, não gastava seu pranto. Era o ciclo da vida, caminho natural. Só obediência, nenhum drama. A vida era assim mesmo. Questão de preparo tão-somente.
Não convinham tampouco as efusões de alegria. Assim como a tristeza, a alegria estava prevista sempre. Só não se sabia a hora exata em que uma e outra aconteceriam.
Com a nova forma de pensar (nova? dez anos?), nada lhe escapava que pudesse manchar o estado de total tranqüilidade.
Por que, então, despertava agora, no meio da madrugada, insone ?
Após o remédio das dez horas, pegara no sono quase que instantaneamente. Despertara depois do sonho em que se via criança, no meio da praça, entre outras tantas. Não se lembrava qual o motivo que fazia aquela turma rir tanto. Chegavam a se dobrar. Uma se descontrolou, soltou um peido alto; a risadaria foi geral, ameaçava não parar mais. Caíram pelo chão, exaustos, mãos na barriga doída de tanta alegria.
Despertou com uma lágrima escorrendo pelo canto dos olhos e com um sorriso repuxando o rosto. Enquanto voltava ao normal, pensou que fazia muito tempo que não ria daquele jeito.
Levantou-se. Quase instintivamente se dirigiu para o fundo do quarto, onde ficava o armário antigo, com as lembranças do que fora sua família.
Puxou de uma gaveta a caixa de madrepérola rosa. Sentou-se na banqueta de veludo, mas rapidamente foi cobrir o espelho que a espreitava. Tampou sua imagem com uma colcha de cetim marrom, mas parte da cobertura começou a escorrer sobre a superfície do reflexo. Voltou à banqueta. Abriu a caixa com cuidado. Como se não soubesse o que ela guardava ... Há anos não mexia ali.
Eram vários embrulhinhos cor de ouro e cor de prata dobrados. Breve hesitação, pegou um de ouro. À medida que ia desfazendo as dobraduras, seu corpo foi sendo tomado por um calor intenso. O rosto queimava, enquanto começava uma canção romântica que ela queria que nunca houvesse terminado, para que os braços dele jamais se desapegassem de seu corpo. O rosto com uma ponta de barba arranhava de leve a pele da moça bem jovem. Ele a beijou pela primeira vez. A música deveria ter durado mil anos e o mundo poderia ter acabado ali, porque ela era completamente feliz. Sem sentir, havia se levantado e dançava abraçada a si mesma, papel dourado colado no rosto. A música parou, ela abriu os olhos, fechou com rapidez a lembrança de ouro que foi novamente para o estojo de risos e lamentos.
E esse outro ...
Prata. Não tinha mais ninguém. A morte era injusta tirando tudo o que fora seu sonho. Apanhou o retrato do homem que lhe falava de eternidade de sentir e deixou que sua grande saudade se derramasse sobre aquele rosto, maneira de ver se contagiava o espírito de seu amor e ele a viesse buscar pra sempre. Delicadamente ia fechando o papel de prata.
Não viria. A vida era assim mesmo. Um dia de ganho, outro de perda.
Melhor guardar tudo.
Só mais um. Prateado ou dourado?... Seu olhar encontrou-se com os da mulher há muito desaparecida. Como o tempo havia passado tão rápido. Continuava elegante e ainda era bonita, mas onde o viço? Procure num dos papéis dourados, falou a moça do espelho.
Esse, esse. A outra quase saía do espelho.
E ela gargalhou todo o riso de nunca mais e quis ser muito feliz. Abriu bem as janelas para a luz da lua entrar com toda força que os luares têm. Mas era preciso a presença do sol. Abriu o armário.
Envolvida na estola dourada de sonhos de toda a vida, ela ganhou as ruas.
Urna de madrepérola numa das mãos, com a outra começou a semear o rio com flores douradas e prateadas que, pela manhã, alegrariam e fariam chorar muita gente.
Maria Laura - 1999
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