AS FLORES DE TIÃO

Tião era um menino de oito anos, destes que vivem num orfanato, fazendo fila para comer, escovar os dentes, tomar banho e fazer todas as coisas que todo mundo faz todo os dias. Simpático, inteligente, sempre disposto a colaborar , ele era um grande amigo dos outros   garotos da instituição.

Certa manhã, ao invés da sirene tê-lo acordado como era de costume, um fato novo o surpreendeu; a assistente social, dona Marly, veio com uma voz mansinha pedir que ele se arrumasse ligeiro, pois teriam que sair para um lugar bem longe.

Ansioso, Tião tomou seu café como se estivesse bebendo um copo d’água, e foi correndo até a sala da diretoria se apresentar. Lá chegando, notou que dona Marly estava com uma cara meio sem graça, um pouco preocupada. Tião pensou logo na possibilidade de ser um convite a fazer um exame de sangue ou até mesmo tomar uma vacina, mas de uma coisa ele tinha certeza, não era nada bom.

Dona Marly, como sempre, muito direta, foi logo dizendo ao menino que o bom Deus, por razões que todos nós desconhecemos, achou por bem levar dona Maria, a mãe do Tião, para o céu e que a kombi já estava no pátio esperando-os para levá-los ao enterro.

Sem , qualquer esboço de reação, Tião foi em direção ao pátio, entrou na kombi e seguiu viagem, rumo ao cemitério, sem prestar atenção a uma única palavra de consolo proferida pela assistente. No caminho, com o olhar perdido na rua, ia tentando resgatar qualquer resquício de memória que tivesse da sua chamada mãe. Infelizmente, nas suas recordações não havia doces palavras maternas pronunciadas na hora de dormir, nenhum olhar carinhoso nos tristes momentos enfermos, nenhuma sábia repreensão nos momentos de estripulia, nem um dengo, nem mesmo um cafunezinho despretensioso. Na verdade , para Tião, sua mãe era uma estranha, alguém que pouquíssimas vezes havia visto em sua vida, e quase nada sabia a seu respeito. Nas lembranças do garoto só havia momentos e coisas relativas ao orfanato.

Chegando ao cemitério, mais precisamente no local onde sua mãe seria enterrada, Tião olhou em volta e ficou maravilhado com a quantidade de flores que havia. Sem ouvir sequer uma palavra das que eram ditas pelas poucas pessoas que se dirigiam a ele, Tião varria o ambiente com os seus olhinhos, que até então, não haviam derramado uma única lágrima. A quantidade e a diversidade de flores vistas o encantavam. Em alguns momentos ele lançava olhares perdidos, em outros chegava até a rir, deixando os presentes um tanto desconcertados.

Terminado o ritual do sepultamento, regressaram ao orfanato, num silêncio que parecia infinito, até que em determinado momento, Tião, subitamente, disparou:

-Dona Marly, a senhora acha que existe alma?

-Claro que sim , Tião.

-Pois eu não acredito em alma não.... Eu nunca vi alma nenhuma, nunca peguei, nunca senti o cheiro dela ...Eu só acredito no que vejo e no que sinto. Eu nem consigo acreditar em alma.

- Então o que você acha que acontece depois que a gente morre? -- Perguntou a assistente , assustada com a afirmação do garoto.

-Pra mim, depois que a gente morre, vira flor. A senhora notou como o cemitério estava cheinho delas? Eu acho que acontece mais ou menos assim: a gente morre , os bichos comem o corpo da gente, a gente vira adubo e alimenta as plantas, que dão flores variadas de acordo com o jeito que a pessoa era quando estava viva.

Dona Marly, impressionada com o raciocínio do garoto, pediu que ele continuasse com a sua explicação.  

-A senhora reparou naquela flor rosa , grande, cheia de coisinhas amarelas? Ela parece demais com a senhora, sempre bonita e cheia de jóias. E aquela toda branquinha, linda, tão mimosa, não parece demais com a irmã Imaculada, que me deu um jogo de botão no Natal Passado? E aquelas flores grandes amarelas então, têm a mesma cara da dona Palmira, a cozinheira gordinha do refeitório, que sempre coloca um pouquinho mais de sopa quando a gente pede. Também tinha lá, umas flores sem graça, roxas, muito parecidas com seu Osvaldo da venda, que nunca ri.

E o garoto continuou a fazer comparações entre as flores vistas no cemitério e as pessoa que ele conhecia, deixando a assistente cada vez mais impressionada com a capacidade de observação de Tião.

-Para mim, Deus faz tudo na vida ter uma serventia. A gente nasce, cresce, vive e morre, para fazer alguma coisa. Pode ser para trabalhar ou para ajudar os outros, e depois que a gente morre, vira flor, que pode servir até para as abelhas fazerem mel, ou mesmo que não sirva para isso, pode com sua beleza, servir para alegrar um menino triste assim que nem eu.

E Tião voltou à sua rotina, fazendo fila para tudo, esperando um carinho daqui, outro dali, levando sua vidinha, tentando descobrir para o que ele servia, ou se havia vindo ao mundo apenas para esperar o seu dia de virar flor.

Soraya Luz   em  19/03/97

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