CURSO DE FILOSOFIA PARA NÃO FILÓSOFOS

Aula 2

Paulo Ghiraldelli Jr

(Fonte: http://www.ghiraldelli.pro.br/aula_2.htm)

 

 

 

Sócrates e os sofistas

Os chamados "filósofos pré-socráticos" fizeram questões de ordem cosmológica (teoria do cosmos) e ontológica (teoria do ser). Sócrates e os sofistas ampliaram a discussão da filosofia para o campo da ética, da moral e da política, uma vez que propuseram questões novas — perguntas a respeito do homem. Os "pré-socráticos" cosmólogos falaram sobre a phýsis, que grosseiramente traduzimos por natureza, o princípio criador responsável pela geração de todas as coisas. Os pré-socráticos que fundaram a ontologia falaram sobre o "ser", na medida em que deslocaram a discussão para o campo da linguagem e da lógica. Os sofistas, diferentemente, podiam discorrer sobre tais assuntos, mas em geral alertaram os gregos para a arte de bem viver, ou do saber viver, o que incluía a arte de argumentar, ou de saber argumentar, a retórica.

Quanto à arte de saber viver, Trasímaco, por exemplo, falando do campo social, insistiu que as disputas morais não eram relevantes exceto quando pudessem ser vistas como lutas pelo poder. Quanto à retórica, Górgias, por exemplo, escreveu que "nada há", "que se houvesse algo, ninguém poderia sabê-lo", e que "se alguém soubesse, não poderia comunicá-lo". Esse tipo de filosofia incomodou Sócrates e Platão. Eles a tomaram mais como frases que buscavam fugir da busca da verdade do que um trabalho em favor do objeto da filosofia, como este havia se instaurado na investigação dos pré-socráticos. Daí que a história da filosofia consagrou para nós o termos "sofisma", o verbo "sofismar", com o que está relacionado com o trabalho da argumentação vazia.

Todavia, é engano tomar os sofistas como simplesmente "professores ambulantes" e falsos filósofos. Protágoras (490 – 422 A.C.) criou uma situação que até hoje é um problema sério em filosofia ao dizer que "o homem é a medida de todas as coisas". Esta frase simples passou a incomodar toda a filosofia e, talvez hoje mais do que em todos os 25 séculos passados, ela seja a pedra no sapato de todos os que se imaginam alinhados junto à Filosofia, com "F", que é o problema do subjetivismo e do relativismo. Se as coisas são mensuradas através de uma régua que é o homem, então elas não tem uma medida própria, mas a medida do homem. Sócrates e Platão, cada um ao seu modo, tentaram lutar contra esse tipo de relativismo.

Sócrates, em especial, criou um modo particular de investigação que, se por um lado era o da conversação, como o dos sofistas, por outro era, não raro, decepcionante, uma vez que não trazia ao final uma resposta definitiva. Sócrates, por si mesmo, não discutiu se tal forma de agir consistia em um método de filosofia. Todavia, mais tarde, alguns historiadores da filosofia o chamaram de elenchus — um modo de argumentar que implicava na possibilidade da refutação, levando o inquirido a tomar ciência de que ele não sabia o que pensava saber. O próprio Sócrates definiu-se como aquele nada sabia.

O trabalho socrático

Sócrates não escreveu nenhum livro ou aforismos. O que se sabe dele foi escrito pelos seus discípulos e, em especial, por Platão. Sua vida era andar por Atenas, junto com seus discípulos ou sozinho, interrogando as pessoas. Como Sócrates filosofou através de perguntas fortes, do tipo "o que é a coragem?", "o que é a amizade?", "o que é o amor?" etc., muitos historiadores da filosofia disseram que seu método era a "maiêutica", um modo de, ao questionar os outros, tirar deles a resposta correta — uma forma de "parir" as idéias.

Sendo que a mãe de Sócrates foi parteira, a "maiêutica" apareceu em vários manuais de filosofia definida em analogia ao trabalho do parto; ou seja, Sócrates fazia vir à luz a verdade dos conceitos. Por conta disso, outros manuais de história da filosofia disseram que Sócrates praticou a "análise conceitual". Mas o correto é que Sócrates não arrancou nada de muito concreto de ninguém, muito menos trouxe à luz uma definição qualquer para explicitar um conceito. Ao contrário, ele mais deixava as pessoas em dúvida sobre possuir ou não um conhecimento em matéria de moral, certamente próximo ao estado em que ele próprio se encontrava, do que qualquer outra coisa.

Não se quer dizer com isso que Sócrates não tinha uma moral para si mesmo, ou que ele não acreditava no que ele acreditava. Não, ele tinha suas crenças e era sincero para com elas. Mas ter crenças sólidas não necessariamente leva alguém a poder dizer que possui um conhecimento sobre a moral, isto é, conceitos e, então, definições positivas e generalizáveis.

O método de Sócrates foi o que em grego é chamado elenkhos, em geral escrito elenchus, que quer dizer "refutação". Sócrates o utilizou da seguinte forma. Ele perguntava, por exemplo, o que era uma determinada qualidade moral, a virtude ou a justiça etc. Incitava seu interlocutor a dar uma definição da qualidade moral em questão. Em geral, lhe eram fornecidos uma série de exemplos. Ou seja, o interlocutor mais dizia do corajoso ou do justo do que da coragem ou da justiça. Sócrates, então, rejeitava os exemplos, mostrando que eles não eram definições, mas casos singulares.

Quando o interlocutor conseguia chegar a algo que se aproximava de uma definição, então Sócrates aplicava um teste sobre a definição, mostrando ao interlocutor que tal definição contrastava com uma série de outros enunciados que o próprio interlocutor havia dito, e que lhe eram caros. Ou se ficava com os primeiros ou se ficava com a segunda. Em qual, de fato, o interlocutor acreditava? Qual poderia se sustentar? No fundo, o que o elenchus revelava era que os atenienses caiam em contradições. Sócrates também não tinha uma resposta para o que perguntou, e então ambos, Sócrates e o interlocutor deveriam admitir que o que sabiam sobre o perguntado era só uma coisa: nada sabiam. Isso levava a uma situação que, em grego, tinha o nome de aporia, ou seja, uma situação difícil, que parece que não pode ser ultrapassada ou resolvida, um problema sem solução — o que correspondia a um estado de perplexidade.

A morte de Sócrates

A maneira de filosofar de Sócrates nem sempre agradou os poderosos. Os que possuem poder político, mesmo em uma democracia, muito raramente gostam de uma argumentação que os leva, no final, a admitir que estão em contradições. Assim, aproveitando-se das diferenças de valores entre a cidade de Esparta e a cidade de Atenas, alguns atenienses tramaram contra Sócrates, acusando-o de, em última instância, defender valores de Esparta, falsas doutrinas, ofensa aos deuses, corrupção da juventude e coisas do gênero.

Sócrates foi a julgamento, e sua condenação se deu por votação, 280 a 220. O julgamento não soou bem na opinião pública, uma vez que Sócrates era um cidadão iminente, e então as autoridades atenienses relaxaram a prisão de Sócrates de modo que ele pudesse fugir. Mas Sócrates insistiu com seus discípulos que se ele fugisse, ele não estaria contestando os juizes, mas sim as leis da cidade (a ligação umbilical que os gregos tinham com a polis). Assim, ele cumpriu sua pena, a de tomar veneno e esperar a morte, o que se deu em meio aos seus discípulos, sendo que Sócrates permaneceu conversando e ensinando até os últimos momentos.

Exercício 1 - Pesquisar nos quadros abaixo, as diferentes representações do artistas a respeito da morte de Sócrates. Identifique os autores, o estilo e dê as razões pelas quais a figura de Sócrates se diferencia segundo o estilo.

 

 

 

 

 

Exercício 2 - Leia o texto de aprofundamento de Donald Davidson, The Socratic Concept of Truth e explique o Elenchus segundo Davidson. A partir do texto do exercício, caminhe por links que levam a explicações sobre Donald Davidson. Ver da também da Editora DPA - www.filosofia.pro.br o livro Contra contra chefes e contra oligarquias, de Rorty - neste livro fiz uma introdução ao pensamento de Davidson. Encomende pela DPA um brilhante texto sobre Davidson, que traduzimos está para ser publicado: A filosofia da linguagem de Donald Davidson, de Bjorn Ramberg.




A concepção socrática da verdade

Donald Davidson

The University of California at Berkeley (Trad. Paulo Ghiraldelli Jr)

Davidson: a Elegância no Labirinto da Verdade

Paulo Ghiraldelli Jr*

1. P. M. S. Hacker, um dos mais conceituados historiadores da filosofia analítica, tem o hábito de dizer que o século XVIII foi o século da razão, o XIX o da história e o XX o da lógica e da linguagem (cf. HACKER, 1996, p. 243). De fato, por caminhos diferentes, grandes filósofos do século XX (e alguns que marcarão também o século XXI) se preocuparam com a linguagem. Só para lembrar os tais caminhos diferentes podemos citar Derrida, Heidegger, Wittgenstein e Habermas. Nas últimas décadas, o predomínio do tema da linguagem entre nós é de tal ordem e importância que o filósofo norte-americano Arthur Danto ensina, a despeito dos diferentes modos de filosofar, que a filosofia emerge no espaço entre linguagem e mundo (cf. DANTO, 1968, p. 15).

Por conta desta definição de filosofia, Danto elabora um tríplice elenco de problemas filosóficos: os problemas a respeito da linguagem, os problemas a respeito do mundo e, enfim, os da própria relação entre linguagem e mundo. Em outras palavras: considerando a relação linguagem-mundo e tomando a linguagem como o lugar que devemos iluminar, há os problemas sobre entendimento e significado; tomando o mundo como o polo a ser observado, temos de saber como o mundo deve ser para que a linguagem possa alcançá-lo e descrevê-lo inteligivelmente ¾ há aí os problemas de metafísica; por fim, levando os holofotes para a conexão entre a linguagem e o mundo, emergem os problemas sobre o conhecimento e a verdade (cf. DANTO, 1968, p. 16).

Tal divisão é clássica em filosofia. Ela delimita áreas do que até pouco tempo chamávamos "ciências filosóficas". Não deixa de ser, também, uma separação didática, que traz a esperança de que podemos trabalhar em um campo sem nos confundirmos com todo o arsenal de questões que pertencem a outro campo. Mas tal esperança é, em parte, ilusão. Os campos filosóficos se interpenetram e, não raro, quando falamos de um campo determinado já estamos andando nos trilhos do outro. Se é assim, por que insistimos em tal divisão? Talvez por conta disto: ainda que sempre estejamos cruzando áreas, podemos tentar estabelecer alguma hierarquia mínima para não nos confundirmos em um número sem fim de problemas.

O leitor verá que cada artigo do professor Donald Davidson posto neste volume, se levarmos em consideração os seus títulos, deveriam nos encaminhar para o terceiro campo, o da verdade, e efetivamente eles estarão falando deste campo, mas também de todos os outros campos.

2. Donald Herbert Davidson nasceu em 1917 em Springfield, Massachusetts, nos Estados Unidos da América. Cursou a Universidade de Harvard e trabalhou em várias universidades. Em 1981 tornou-se professor da Universidade de Berkeley. Inovou no campo da filosofia da mente e da linguagem, tanto como discípulo de Quine quanto como interlocutor deste. Seus textos estão, já há mais de quarenta anos, sendo objeto de estudos e debates na comunidade filosófica internacional.

No início, como Quine, Davidson era lido apenas por filósofos e, dentre estes, em alguns países, somente pelos "filósofos da ciência" ou, é claro, por quem tinha passado por uma formação em filosofia analítica. Agora, Davidson ganhou popularidade internacional e passou a ser notado por leitores de Heidegger, Derrida, Nietzsche e outros. Em parte por causa da utilização que Richard Rorty (um filósofo que tem acesso à mídia por conta de agir como John Dewey, isto é, como professor de filosofia que discorre sobre vários temas) fez de seus textos, aplicando-os a diversas áreas, Donald Davidson vem sendo consumido pelos departamentos de letras, antropologia e "humanidades" em geral. Sua teoria da "interpretação radical" em filosofia da linguagem privilegia a comunicação e uma determinada noção de racionalidade nos estudos sobre significado, dando uma nova visão para a semântica. Justamente por invocar o processo comunicacional, sua teoria começa a disputar espaço com as teorias de origem habermasians, menos empiricas, no seio dos debates entre os schollars das ciências humanas atualmente.

O volume que o leitor tem em mãos é uma coletânea de artigos, gentilmente cedidos ao nosso Grupo de Estudos e Pesquisas em Pragmatism e Filosofia Americana (GEP-PFA) pelo professor Davidson que, com a dedicação democrática e humilde que caracteriza os grandes sábios, fez questão de nos brindar com um belo prefácio, especial para o Brasil. Este volume não trata dos vários temas abordados por Davidson ao longo de sua carreira acadêmica. Nosso livro focaliza o tema da verdade, exatamente um dos temas mais controversos e de difícil entendimento na obra de Davidson. O livro não contém todos os artigos de Davidson sobre a verdade mas, sem dúvida, os que estão aqui são bem significativos, e a escolha dos artigos foi aprovada pelo professor Davidson.

Nesta introdução, tentarei expor de um modo breve o percurso de Davidson sobre o tema da verdade. E o farei, como é meu estilo, em uma formulação que se pretende didática.

3. Há na literatura filosófica atual uma série de classificações explicando tipos de concepções de verdade. Mas aqui, prefiro seguir as pegadas do próprio Davidson. Assim agindo, penso estar levando vantagem, pois desde de um primeiro momento posso trazer o leitor para um espaço davidsoniano, de modo a fazer o leitor ir se acostumando com a terminologia usada neste livro.

Donald Davidson diz que em filosofia contemporânea há três categorias amplas para as concepções de verdade: a deflacionista, a epistêmica e a realista. De um certo modo, ele rejeita todas elas. Ele quer expor uma quarta noção que extrapolaria os limites dessas categorias. Isto é o que ele faz em 1989, nas Dewey Lectures. Todavia, dez nos depois, debatendo com Rorty em um artigo chamado "Truth Rehabilitated", ele não insiste em se opor a tais perspectivas pontuadas nas Dewey Lectures com a mesma ênfase de 1989. Mantém a sua visão de 1989, mas, diante de Rorty, que vinha dizendo que o tema da verdade se esgotou, Davidson nos conta que ele acredita que cada uma das concepções tem alguma coisa a nos dizer a respeito da verdade (cf. DAVIDSON, 2000, pp. 65-74).

Falarei do modo geral sobre as três concepções citadas por Davidson nas Dewey Lectures e que, de certo modo, reaparecem no artigo "Truth Rehabilitated". Assim, no tópico (4) trato das concepções realista e epistêmica, e no tópico (5) trato da concepção deflacionista, no sentido específico em que esta concepção aparece nos escritos de Paul Horwich.

4. Para o que segue, tomarei a sentença Brutus assassinou César como sendo p, de modo a clarear minha explicação com exemplos.

Segundo Davidson, as teorias realistas dizem que não há, de modo algum, conexão conceptual entre o que acreditamos e o que é verdadeiro (cf. DAVIDSON, 1990, p. 299). Assim, "eu creio que p" não tem conexão conceptual com "é verdade que p". A frase (1) "Eu creio que Brutus assassinou César" não tem conexão conceptual com (2) "é verdade que Brutus assassinou César". A frase (1) diz respeito à posição de alguém em relação a uma parte da frase (2), a parte que chamamos de p. A frase (2) diz respeito a uma qualificação de p dada por "é verdade que", que não pode depender da minha posição ou de qualquer outra pessoa.

À primeira vista isto pode parecer estranho, mas se olharmos quais das noções de verdade que caem sob a rubrica do realismo, veremos que é exatamente a noção que nos é mais familiar: a noção correspondentista da verdade. O que diz tal noção?

Tomando S como um enunciado, e sse como "se e somente se", podemos colocar a noção de verdade como correspondência na seguinte formulação:

S é verdadeiro sse S corresponde a um fato.

Tal teoria vem de algumas modificações que podemos fazer da clássica definição de Aristóteles: "dizer do que é que ele é, ou dizer do que não é que ele não é, é a verdade". De um modo moderno, a definição de Aristóteles alimenta (entre outras teorias) a teoria da correspondência. E esta, à primeira vista, parece inabalável. Ela diz que "S é verdadeiro sse S corresponde a um fato", então, com fatos positivos, a teoria parece funcionar. Por exemplo, se digo: "há um urso dentro desta sala", temos um fato a ser buscado. O fato é: há um urso dentro desta sala. Ao aplicarmos a fórmula da teoria da correspondência, temos:

" ‘há um urso dentro desta sala’ sse há um urso dentro desta sala ".

O enunciado S, ‘há um urso dentro desta sala’, corresponde ao fato: há um urso dentro desta sala. Mas vejamos se a teoria da correspondência funciona com fatos negativos. Por exemplo, eu digo: "não há um urso dentro desta sala". Nosso enunciado, nos termos da teoria, é o seguinte:

" ‘não há um urso dentro desta sala’ é verdadeiro sse não há um urso dentro dessa sala ".

Aparentemente estamos diante da mesma situação. Porém, sendo mais atentos, percebemos a diferença. O enunciado "há um urso dentro desta sala" me informa diretamente alguma coisa - o que legitimaria cognitivamente a correspondência entre fato e enunciado; isto é, a correspondência teria, talvez, algum uso cognitivo. Mas o enunciado "não há um urso dentro desta sala" não me informa alguma coisa. Qual é o fato a respeito do qual o enunciado me diz algo? Quem enuncia a frase estaria querendo dizer que há cadeiras na sala e não um urso? Estaria informando que só há cadeiras na sala cheia de elefantes? Estaria admitindo que há gente e não urso? Estaria dizendo que tenho uma sala sem móveis, sem gente e sem urso? Ou simplesmente estaria comunicando que a sala é uma Arca de Noé e esqueceram do urso? Em outras palavras, quando tenho algo que seria um fato negativo, de que forma dizer, segundo a teoria correspondentista, que S corresponde a um fato? A que fato a expressão lingüística "não há um urso dentro desta sala" corresponde? Não sabemos. O mesmo acontece se falarmos em fatos gerais, ou em fatos hipotéticos, etc.

Isso nos leva a questionar a nossa própria noção de "fato". Afinal, o que é um fato? Quando definimos o termo, dizemos: fato é o que realmente acontece, ou, fato é o que é verdadeiro, ou o que corresponde à verdade etc. Caímos e um círculo: para definirmos a verdade como correspondência a fatos temos de omitir que acabamos de definir fato por meio da idéia da verdade como correspondência a fatos (cf. GHIRALDELLI JR., 2001, p. 21).

Por causa de tais conseqüências que, como podem ver, nos levam a impasses, alguns filósofos resolveram optar por teorias coerentistas da verdade ou teorias pragmatistas. Na terminologia de Davidson, tais teorias caem sob a rubrica das concepções epistêmicas de verdade.

Ora, a noção epistêmica de verdade é a daqueles que, tendo escutado "é verdade que p", insistem em falar que o predicado "verdade" não é compreendido sem que se dê o passo a mais que os realistas acreditam descabido. Os que defendem a noção epistêmica, dizem o seguinte: se me deparo com "é verdade que Brutus assassinou César", me deparo, sim, com uma dada "realidade", todavia, para se compreender o papel do predicado "verdade", posso e devo perguntar de que maneira o elo entre a "linguagem" e a "realidade" que ela expressa se estabelece como elo, qual é o seu caráter e, afinal, como é que viemos a confiar neste elo (no fundo, não se está satisfeito com a noção de correspondência, sem mais nem menos).

Para os defensores da noção epistêmica de verdade, como também para os realistas, "é verdade que Brutus assassinou Cesar" pode ser colocada em duas partes: "é verdade que" e "Brutus assassinou César" (sendo que Brutus assassinou Cesar = p). Fazendo assim, a segunda frase ganha explicitamente um valor (verdadeiro ou falso) a partir da sua junção com a primeira. Todavia, para os realistas esta junção não tem de ser investigada. Investigá-la significaria deixar de querer uma definição da verdade.

Ora, para os que defendem a posição epistêmica, o trato com a verdade está justamente na investigação deste elo entre as frases enquanto algo que se forma de uma maneira e não de outra, dependendo de circunstâncias variadas, o que, ao final, estabelece o valor da frase. Ou seja, caberia, sim, uma pergunta a mais: por que p ganhou o valor "verdadeiro" e não o valor "falso"? O que levaria a uma outra: como um s qualquer ganha um valor do tipo "verdadeiro" e um valor do tipo "falso"? Independentemente de responder a tais perguntas, quando as faço, já estou no âmbito epistêmico, pois estou querendo saber a respeito do caminho pelo qual uma informação, uma dada "realidade" conduzida pela "linguagem" se conectou à "linguagem".

O que o defensor da noção epistêmica de verdade faz é, afinal, colocar perguntas tipicamente do campo epistêmico: por onde se forma o elo entre a "realidade" expressa por p e o qualificativo "é verdade que"? De que tipo ele é?

Davidson diz que as teorias pragmatistas e coerentistas são epistêmicas (cf. DAVIDSON, 1990, p. 298). No que Davidson está pensando quando afirma isto? Bem, creio que ele está pensando nas formulações padrões dessas posições. Eu, habitualmente (cf. GHIRALDELLI JR; 2001a, 2001b), as exponho como segue.

Em traços amplos, sem detalhes, a teoria coerentista, a teoria pragmaticista (Peirce, mutatis mutandis Dewey, Putnam e Habermas) e a teoria pragmatista (William James) dizem, respectivamente:

S é verdadeiro sse S é um membro de um conjunto de crenças coerente internamente;

S é verdadeiro sse S é provável, ou verificável em condições ideais, o que poderíamos alcançar, ainda que idealmente, no final da investigação;

S é verdadeiro sse S é útil de se acreditar.

A teoria da coerência é uma das saídas para os problemas do correspondentismo. Um dos erros da teoria da correspondência seria o de comparar coisas heterogêneas. Isto é, de um lado, temos o que é lingüístico e, de outro, coisas não-lingüísticas. S é algo lingüístico, e o que chamamos de "fato" é algo não-lingüístico. A entidade não-lingüística se torna um elemento complicador, dado que sua definição implica o círculo. A teoria da coerência diz que devemos comparar coisas da ordem de enunciados com coisas da ordem de enunciados, crenças com crenças. Todavia, pelo menos desde a influência de Quine sobre os coerentistas, não se trata de fazermos isso caso a caso, frase por frase. A teoria se aplica, dizem os coerentistas, de um modo holístico, levando em conta sistemas de enunciados ou sistemas de crenças; ou seja, temos de considerar, antes de qualquer coisa, um conjunto de sentenças, frases, uma teoria (um "vocabulário", como diz Rorty, ou um "campo de força", conforme Quine).

A verdade, na teoria coerentista, não é um predicado que se aplica a frases ou crenças isoladas; ela se aplica a conjuntos de frases, conjuntos de crenças em um todo, um sistema. Assim, um sistema de crenças é dito coerente quando seus elementos são consistentes uns com os outros em uma rede de crenças; quando esses elementos estão dispostos de tal maneira que o todo e as partes mantêm um tipo específico de simplicidade capaz de provocar a intelecção racional normal. Dessa forma, o sistema todo e cada um de seus elementos são verdadeiros; a verdade é a propriedade de se pertencer a um sistema de crenças e/ou enunciados harmonioso, em uma palavra - coerente.

O que é esse sistema? Um sistema de crenças pode ser um campo de crenças harmonioso, uma teoria (científica), uma narrativa (científica ou histórica) ou, até mesmo, toda uma linguagem. Se os coerentistas procuram em Quine frases para os ajudarem, vão encontrar coisas do tipo: nós não entendemos algo dito pela ciência ou pela história de modo isolado e por isso nem poderíamos falar em verdade e falsidade em relação a enunciados isolados; leis físicas ou descrições históricas são aprendidas e compreendidas e fazem parte de um largo corpo de conhecimentos que tem sua própria trama (cf. QUINE, 1995).

Mas o que conta contra a teoria coerentista da verdade é que ela parece nos conduzir ao relativismo. Susan Haack, por exemplo, tenta levar para o campo do relativismo as teses coerentistas (cf. HAACK, 1998, pp. 150-153). Resumindo ao máximo: o que se faz contra o coerentismo é dizer que conhecemos vários conjuntos harmoniosos de crenças bem estruturados, mas que não estaríamos dispostos a gastar uma gota de saliva em favor deles em uma discussão. São coerentes, mas não temos a coragem de chamá-los de verdadeiros, porque em nada eles nos convencem de estar falando de alguma realidade. Conjuntos coerentes de crenças, no limite, seriam apenas comparados entre si e, sendo assim, relativos uns aos outros. Se o coerentismo, então, abre a guarda para o relativismo, ele não seria uma solução para as falhas do correspondentismo, pois no limite tece o tapete para a entrada do cético. Ora, o ceticismo é exatamente a figura contra a qual a filosofia mantém guerra permanente. Afinal, os manuais de história da filosofia nos ensinam que o cético é o que fala sobre a impossibilidade do conhecimento verdadeiro e a filosofia é, por sua vez, a busca da verdade.

É para escapar dessa fragilidade da teoria da coerência diante do relativismo e do ceticismo que Peirce, James e Dewey filosofam. Nos três casos, há a chamada de atenção para a experiência.

Peirce pensa sobre a verdade a partir de uma posição que é amadurecida na prática científica, de laboratório, trata-se da teoria pragmaticista da verdade. Ele vê a experiência como experimento. Quando fala em experiência controlada ele se refere, na maioria das vezes, a experimento sob domínio laboratorial (ainda que esse laboratório possa ser... ideal). Então, são enunciados verdadeiros, para Peirce, aqueles que, se referindo a certas observações, podem receber o consenso de uma comunidade de experts, que estão lidando com a experiência e comparando seus resultados com o que se pode chamar de fim ideal da investigação, fixado a partir do julgamento de uma comunidade ideal de experts (cf. MURPHY, 1990, pp. 7-12, 21-31).

James e Dewey forjam uma noção modificada dessa compreensão de Peirce a respeito da verdade. O que dizem James e Dewey?

Eles endossam o seguinte: as teorias da verdade que temos não são ruins, o que falta é falarmos sob que condições dizemos que uma sentença diz a verdade. Assim, a teoria pragmatista nasce menos com o intuito de ser uma teoria propriamente dita e mais com o objetivo de falar sobre as regras de conduta de quem procura o verdadeiro. James, em alguns momentos, chama todo o pragmatismo de uma teoria da verdade; mas, não raro, ele prefere identificar o pragmatismo com um tipo de método para a verdade (cf. JAMES, 1989, p. 25). Os pragmatistas pioneiros falam menos em correspondência ou coerência e mais sobre a idéia de que qualquer teoria da verdade, para ser válida, deve levar em conta a noção de experiência. Esta noção é que deve estar sendo visada por quem está a fim de julgar se uma crença é verdadeira ou falsa.

Então, para o pragmatista, cada homem ou mulher que quer saber da verdade deve olhar para a experiência, ou seja, deve estar atento(a) em relação à conduta dos bípedes sem penas. Anotar o que eles dizem de suas vidas e notar suas atividades. E perceber, por fim, que é bem mais útil acreditar em um enunciado sobre o qual temos consenso do que em um enunciado que não possui defensores, que está longe do consenso daqueles que julgamos pessoas razoáveis em nossa comunidade. Em nossa investigação, a verdade está mais próxima, segundo James, quando as experiências conduzem a um maior consenso (cf. JAMES, 1989, pp. 71-85). Uma frase que está mais próxima do consenso nos leva a apostar nossas fichas nela; mas uma frase mais distante do consenso faz com que (de modo a seguir o que é mais útil) nos afastemos ou, pelo menos, não coloquemos em seu favor todo o nosso salário mensal! É nesse sentido específico que a verdade é o útil.

Dewey, seguindo a idéia de James de procurar como rastro da verdade o consenso, propõe a noção de assertibilidade garantida (warranty assertibility). A verdade seria o predicado de enunciados ou frases que podem ser de alguma forma asseguradas; frases que foram frutos de ações controladas. Após controle e experiência, é possível emitir frases consensuais sobre a experiência realizada. Ou seja, pode-se confirmar ou não hipóteses levantadas, pode-se aplaudir ou não caminhos heurísticos que se revelaram mais produtivos. O controle sobre tais ações produz o consenso sobre algumas frases, e estas, então, recebem uma espécie de certificado de garantia, à semelhança dos produtos que compramos. No documento de garantia consta sob que condições um produto avariado pode ser reparado ou trocado, levando-se em conta o período de vigência dessa garantia e o atendimento a outras especificações exigidas.

O que é essencial para o que quero dizer de Dewey aqui, e o que vai ser importante para o que segue, é a idéia de que a verdade não é o meramente útil, mas o útil em um sentido específico: útil como algo que não ocorre sem os humanos no seu processo social, intersubjetivo, em uma palavra - comunicacional.

É exatamente esta ligação entre a verdade e o humano, a atenção para com o elo entre verdade e experiência ou o elo entre verdade e coerência que faz Davidson colocar tais noções de verdade sob a rubrica de concepções epistêmicas.

5. Davidson se filia ao filósofo polônes Alfred Tarski, e ele tece uma longa polêmica contra os deflacionistas, de modo a retirar Tarski do uso que os deflacionistas fazem dele. Não vou aqui entrar nestes detalhes. Vou direto ao que é o deflacionismo.

O deflacionismo, como Davidson o compreende, é representado por Paul Horwich, professor de filosofia da University College London. Há autores que já chamaram Davidson de deflacionista, então, aqui, exponho o que o próprio Horwich acha de Davidson. Ele diz: "Donald Davidson não endossa nenhuma dessas teses abaixo, que dizem respeito à posição deflacionista sobre a verdade":

Que a utilidade e a razão de ser do predicado verdade se exprime em capacitar a formulação explícita de generalizações esquemáticas (por exemplo, "pv-p" torna-se "Toda proposição da forma ‘pv-p’ é verdadeira).

Que o significado deste predicado - isto é, nosso entendimento da palavra "verdadeiro", como o temos - consiste no fato de que nosso uso abrangente de tal predicado deriva de nossa inclinação em aceitar instâncias do "esquema de equivalência": a proposição u (que p) é verdadeira se e somente se p.

Que os fatos básicos explicativos concernente à verdade são aqueles expressos por instâncias de tal esquema; portanto, a verdade não tem nenhuma natureza subjacente - a verdade de uma proposição não consiste na posse, por ela mesma, de alguma propriedade mais fundamental (HORWICH, 1999, p. 20).

E Horwich continua: Davidson está distante já do primeiro item, pois ele pensa que "a verdade é muito mais que um mero dispositivo de generalização; ele a considera como um tijolo básico de construção conceitual - tão fundamental que não podemos, absolutamente, não ter algum conceito de verdade" (cf. HORWICH, 1999, p. 20).

De certo modo, se tomarmos cuidado com a palavra fundamental - que, eu creio, não deve nos levar a achar que Davidson está em busca da verdade como fundamento, seja metafísico e/ou epistemológico - usada por Horwich acima, ele está correto. Davidson, ele próprio, não se acha um deflacionista de maneira alguma. Davidson diz que Frank Ramsey - o pai da concepções minimalistas e/ou deflacionistas -, ao falar que quando pronunciamos "É verdade que Brutus assassinou César" estamos apenas querendo afirmar que "Brutus assassinou Cesar", não estava indo além disso. Ramsey não teria dado o passo seguinte tão facilmente quanto Horwich, que implica em dizer que a palavra "verdade" é apenas um dispositivo para montar esquemas de generalização. Ou seja, para Davidson, Ramsey teria descoberto uma das funções do predicado verdade, mas não teria dito que toda a sua função se resumiria a ser uma peça em um mecanismo de generalização.

Davidson acredita, junto com os deflacionistas, que quando se diz "Brutus assassinou César" estamos simplesmente afirmando que "p", de modo que toda vez que afirmamos que "p" podemos, então, dizer também "é verdadeiro que "p"". Assim, a frase "é verdadeiro que "p"" se torna um mecanismo generalizador: sempre que colocamos a sentença "é verdadeiro que" associada a um p qualquer, estamos afirmando este p. Já que é assim, podemos dispensar o mecanismo generalizador para entender p e, assim fazendo, estaremos dizendo que o predicado verdade e/ou verdadeiro não tem função cognitiva alguma. Não inflaciona nada; ou seja, não infla nosso discurso com algo substantivo, cognitivamente robusto. Podemos trabalhar deflacionariamente, sem cultivá-lo como um predicado que porventura venha dizer algo sobre a natureza do que é afirmar p. Ou seja, podemos trabalhar sem se acrescente ao nosso trabalho um elemento metafísico ou epistemológico pelo qual ficaríamos sabendo o que vem a ser a natureza da verdade.

Davidson aplaude isto, mas não acredita que em todas as sentenças o "é verdadeiro que" tem o único e exclusivo papel generalizador. Nem sempre podemos deflacionar um enunciado, diz Davidson. E ele acrescenta: Ramsey não tentou fazê-lo (cf. DAVIDSON, P. 1990, P. 283).

6. Bem, se é assim, se as três grandes concepções de verdade não servem, o que Davidson pensa a respeito da verdade?

Ao longo de sua carreira, Davidson mudou algumas vezes de posição a respeito disso. No entanto, nos anos noventa, ele começou a estabelecer uma compreensão mais ou menos sem arestas. Não é uma posição comum e de fácil aceitação. Às vezes ela parece misteriosa. Todavia, se o leitor sentir algum mistério, creia, está indo na direção contrária das intenções de Davidson.

O que Davidson diz é simples: é tolice querer definir a verdade. E isto, é um sentido bem determinado, a saber: nenhuma das noções acima conseguiu capturar a verdade em uma definição simples satisfatória, capaz de caber em um sentença, em uma fórmula. Nem isto poderá ocorrer. O que sabemos a respeito do predicado verdade é que sem ele não há comunicação, não há conversação - isto é o suficiente. A maneira como Davidson chega a isto é de uma elegância ímpar, em especial nos artigos "The Folly of Trying to Define Truth" e "Truth Rehabilitated".

Em "The Folly of Trying to Define Truth", Davidson diz que podemos fazer uma analogia entre a verdade e entre o que Ramsey pensava sobre a "probabilidade subjetiva", ou, melhor dizendo, de grau de crença. Ou seja: como pode fazer sentido o conceito de grau de crença? Grau de crença ou probabilidade subjetiva não é observável. O que fez Ramsey? Ora, segundo Davidson ele axiomatizou o padrão de preferências de um agente idealizado. Tal agente, como todo nós, "ajusta suas preferências para a verdade de proposições (...) de acordo com sua crenças e valores". Assim, diz Davidson, Ramsey "manteve as condições nas quais um padrão de tais preferências seriam "racionais", de modo que se essas condições fossem satisfeitas poder-se-ia reconstruir a partir da preferência do agente o fio dos desejos e probabilidades subjetivas do agente" (DAVIDSON, 1999, p. 322).

Davidson acredita que tal atitude de Ramsey foi uma "estratégia brilhante". E ele continua:

Deveríamos pensar de uma teoria da verdade para um falante do mesmo modo que pensamos de uma teoria da decisão racional: ambas descrevem estruturas que podemos encontrar, como um permissível grau de adequação e non sense, no comportamento de criaturas mais ou menos racionais com o dom da fala. É na adequação e no non sense que damos conteúdo aos conceitos indefiníveis de probabilidade e valores subjetivos - crença e desejo, tanto quanto podemos chamá-los, de modo breve; e, por meio de uma teoria como a de Tarski, ao conceito indefinido de verdade.

Uma bservação final. Tenho deliberadamente feito do problema de dar conteúdo empírico ao conceito de verdade parecer mais simples do que ele é. Ele deveria ser relativamente simples se pudéssemos observar diretamente - tomar como evidência básica - o que as pessoas querem dizer por meio do que elas dizem. Mas o significado não somente é mais um mais obscuro conceito do que o conceito de verdade; ele claramente envolve: quando se sabe o que um enunciado quer dizer, sabe-se suas condições de verdade. O problema é dar a qualquer atitude proposicional um conteúdo proposicional: crença, desejo, intenção, significado. (DAVIDSON, 1999, p. 322).

Para Davidson, "nosso entendimento das condições de verdade é central para nosso entendimento de toda e qualquer sentença". É claro, diz ele, que na nossa conversação comum, isto nos escapa, pois na nossa conversação comum usamos metáforas, elipses, hipérboles etc., e é raro quando dizemos literalmente o que acreditamos como verdadeiro. Mas entendemos uma metáfora, continua ele, "somente porque sabemos do significado usual das palavras, e sabemos sob que condições a sentença que contém a metáfora seria verdadeira". Assim, ele diz, "a verdade é importante", "não porque ela é especialmente disponível ou útil, embora, é claro, possa ser o caso em certas situações, mas porque sem a idéia de verdade não seríamos capazes de sermos criaturas pensantes, nem entenderíamos o que é que é um elemento qualquer ser uma criatura pensante".

Para Davidson, uma coisa é tentar definir o conceito de verdade, capturar sua essência em frase sumariamente concentrada (pithy), outra coisa completamente diferente é traçar suas conexões com outros conceitos. Ele diz: "se pensamos das várias caracterizações tentadas, nenhuma como sendo mais que uma tentativa do que a última, seus méritos tornam-se evidentes". Por exemplo, a teoria da correspondência, "enquanto uma tentativa que é uma definição, captura o pensamento de que a verdade depende de como o mundo é, e deveria ser suficiente para desacreditar a maioria da teorias pragmatistas e epistêmicas". No entanto, as teorias epistêmicas e teorias pragmatistas, por outro lado, "tem o mérito de relacionar o conceito de verdade aos interesses humanos, como linguagem, crença, pensamento e ação intencional, e essas conexões é que tornam a verdade a chave de como a mente apreende o mundo" (DAVIDSON, 2000, p. 72).

O leitor pode perceber aqui que, no final, Davidson concede méritos para coisas que há dez anos ele não concedia. As divergências dele para com os deflacionistas, como já disse acima, é que, para ele, a noção de verdade não se esgota como mero dispositivo de generalização. E a divergência dele para com realistas e epistêmicos, em 1989, era a de que ambas posições nos convidam para sentar à mesa do ceticismo. "Teorias epistêmicas", diz ele, "são céticas não porque tornam a realidade impossível de se conhecer, mas porque reduzem a realidade a muito menos do que nós acreditamos que ela é"; "teorias realistas, por outro lado, me parecem lançar dúvidas não somente sobre nosso conhecimento do que é "transcendência de evidência", mas sobre todo o resto do que achamos que sabemos, pois tais teorias negam que o que é verdadeiro é conectado conceitualmente de algum modo ao que nós acreditamos" (cf. DAVIDSON, 1990, pp. 298-99).

A postura de Davidson, dez anos depois, parece senão conciliatória pelo menos mais abrangente. Ela, agora, acolhe o que cada uma das concepções de verdade lembram. A verdade, para Davidson, continua sendo uma noção indefinível, "primitiva", mas isso não quer dizer que, para a entendermos, não tenhamos tido a ajuda das velhas teorias. Da minha parte, prefiro chamar a teoria de Davidson da verdade menos de uma theoria da verdade do que o que Rorty chama de "teoria do comportamento complexo". Durante todo o tempo de suas pesquisas, Davidson, mudndo de opinião, Davidson se manteve sempre com uma marca característica: a elegância - ou seja, economia -, o que tornam seus textos, talvez, os textos mais belos da filosofia da transição do século XX para o XIX. Espero que com esta introdução o leitor que aprecia filosofia se sinta motivado para acompanhar o percurso de Davidson que, nem de longe pode ser tomado como um percurso encerrado.

Oklahoma State University, Stillwater, 18 de fevereiro de 2002

Referências

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