Bicho do Cidrão
“[...]
A servir de contraforte ao Arieiro e às Torres,
montanhas bem conhecidas de quantos tem transitado pelas serras do
Poiso e Ribeiro Frio, existe uma outra montanha, mais baixa, de
grossura colossal, com a base, pelo lado Norte, Sul e Oeste, na
freguesia do Curral das Freiras, chamado o Montado do Cidrão.
Este montado
era sempre cedido de arrendamento pelos seus proprietários com 110
cabras e um cabrito, que faziam parte integrante da propriedade, e os
arrendatários eram obrigados a entregar o pasto, com aquele número de
cabeças de gado, quando findava o contrato.
Tem tido
muitos donos o montado do Cidrão. Em 1904 pertencia a herdeiros de D.
Sofia de Vasconcelos e era arrendatário o Sr. Carlos Ernesto Rodrigues
Leitão pela renda anual de 40 escudos.
Em 1911 era
já proprietário deste montado o Dr. Leandro Menezes Camacho que deu de
arrendamento a João Gomes, António de Caires e Manuel Fernandes
Carreira, pastores da freguesia de S. António, pela renda anual de 180
escudos, e três carneiros, um em Maio, outro em Junho e outro em
Agosto.
Em 1926, o
dito Dr. Leandro vendeu o gado aos referidos arrendatários por
250.000$00, ficando desde então o montado, já vendido à Junta Geral,
sem direito de propriedade sob as 111 cabeças de gado.
[...]
É voz corrente, entre todos os pastores de Santo António e do Curral
das Freiras, que vive naquela montanha uma alma penada a que chamam o
bicho do Cidrão. Em tempos muito remotos, um pastor tinha um cão muito
fiel e estimado. Um dia, o cão caiu pela rocha e o dono, cheio de
mágoa, exclamou: "mais queria perder a minha alma".
Algum tempo
depois, o pastor resvalou por um despenhadeiro e nunca mais apareceu,
ouvindo-se desde essa época até hoje, em certos dias, o bicho do
Cidrão berrar, o que é sempre presságio de chuva ou tempestade.
São
numerosas as pessoas, ainda vivas, que dizem ter ouvido esses berros
e descrevem, com cores vivas, o terror que se sente.
Entre as
narrações, há algumas muito interessantes:
Quando os
pastores pernoitam no montado, dentro de uma cabana, acontece, algumas
vezes, que o bicho berra. Os cães que dormem fora da cabana,
esforçam-se por abrir a porta ou rompem a vedação feita de giesta, ou
de urze, e a ganir, a tremer de medo, procuram esconder-se por detrás
dos donos. O terror dos mastins comunica-se aos pastores; o pavor
domina, a respiração quase se não faz, e horas depois o tempo está
mudado e algumas vezes tempestuoso.
Há no
montado do Cidrão uma furna estreita e profunda. Ninguém jamais
conseguiu ver-lhe o fim. Quando alguma pessoa mais ou sadia se atreve
a entrar, atiram-lhe de dentro mãos cheias de poeira e o atrevido
retrocede sem vontade de repetir a experiência.
Esta furna é
a casa do bicho Cidrão.
Algumas
vezes é o bicho Cidrão quem conduz o rebanho aonde os pastores querem,
sem que se veja ou se oiça coisa alguma.
Uma vez
andavam dois irmãos no Montado. Tinham-se separado para se encontrarem
num ponto combinado. Um deles chegou a esse ponto e deitou-se a
descansar e a esperar pelo outro.
Eis senão
quando, ouve uma voz que lhe diz: estais ai bem descansado e teu
irmão está morto. De facto tinha caído e morrera.
Não há
testemunhas actuais destes últimos factos. Há porém muitas, pessoas
sérias, que têm ouvido os berros e têm assistido ao terror dos cães e
dos donos e observado o fenómeno dos matins invadirem a choupana num
ganir aflitivo, de medo e de fuga dum perigo que ninguém vê.
A origem do
bicho do Cidrão, o fenómeno da furna onde ele mora, a voz que preveniu
o irmão da morte do outro, a reunião dos rebanhos feita por mão
invisível, tudo isso é pura lenda.
Tudo se
baseia num diz-se.
Quanto aos
berros e ao terror dos cães, são afirmados por testemunhas que
merecem crédito. Os berros, julgamos nós que não passem de vibrações
do ar através de algum orifício natural da rocha ou de alguma
garganta apertada.
E o terror
dos cãs?
Ai fica um
tema para algum curioso que queira subir ao Montado do Cidrão e
investigar a causa desse fenómeno
[...]”
.
Após a
publicação, no dia 8 ou 9 de Setembro de 1934, no Jornal de uma
notícia sobre a lenda do Cidrão, a curiosidade despertada pela sua
descrição fez com que um grupo de amigos decidissem ir até ao montado
do Cidrão tentar investigar a causa do fenómeno, pernoitando lá.
Contudo, nada aconteceu. Um dos aventureiros, que partiram em busca da
verdade sobre o Bicho Cidrão, num artigo publicado no Jornal de 23 de
Setembro de 1934 afirma: “[...] a opinião
ouvida de muitos curraleiros é que o bicho já está muito velho, pois
que berra muito fracamente. De vinte ou trinta pessoas que
interrogamos nenhum afirma ter ouvido essa voz sinistra mas sim o meu
tio, o meu sogro, o meu avô ouviram o terrível berro do diabo; Entre
eles, um de cabelo já grisalho e expressão sincera no olhar diz-nos:
senhores, há tempos fui para esses lados do Cidrão em busca de uma
rezinha, e de repente ouvi uns berros medonhos que me arrepiaram,
pondo-se-me os cabelos em pé, logo pensei ser o bicho, mas dando mais
alguns passos, avistei entre o silvado um gato bravo, que logo me
tirou a freima.
Outros dizem
que o berro se parece com o balido de um cordeiro. Nada de positivo
apuramos, lenda e só lenda.
E a furna? Não é
possível lá ir sem cordas e mais homens, e tal ascensão deve ser feita
em tempo bem seco para que tenhamos um pouco mais de confiança nos
lugares por onde estamos a passar”
[2].
A propósito da
lenda do bicho do Cidrão, o padre Alfredo Vieira de Freitas no seu
livro Era Uma Vez na Madeira, conta-nos esta lenda com mais
alguns pormenores enriquecendo-a com a sua forma peculiar de contador
de histórias:
“[...]
Um pastor deixara a sua namorada que, embora
choupana humilde, sempre lhe era querida e dirigiu-se pela ribeira
acima, quando o Sol a brilhar lá nas alturas, a custo e vagarosamente,
descia a encosta rochosa e altaneira, de que é soberbo e maravilhoso
mirante a Boca dos Namorados.
O dia,
naquela estância, tinha a beleza de uma bucólica de Vergílio, com a
música sinfónica da mais linda pastoral.
O homem
vagueava no vale profundo, à busca de uma ovelha que desde há muito
andava tresmalhada, por lugares esconsos.
Levava
consigo um formoso cão, alma e vida do seu dono, que estimava, como
às meninas dos seus olhos, pelos bons serviços que lhe vinha
prestando, no seu quotidiano trabalho de pastor.
Já andara
talvez uma légua e meia pela ribeira adentro que, numa margem, se cose
ao sopé de montanhas altíssimas que parecem cair lá do céu, em abismos
aprumados e alucinantes.
E por
ali seguia, ora cantarolando, ora assobiando, ora parando e firmando o
queixo na ponta do bordão, observando e varrendo com os olhos de lince
as abruptas encostas, os extensos precipícios e apertados
desfiladeiros, para deitar sentido aos seus animais que por ali
pastavam livremente.
0 cão,
se percebia o mais fino balir duma ovelha ou um grave berrar caprino,
arreganhava a dentuça, abanava o rabo, afitava as orelhas e quedava‑se
a olhar para o dono a ver se este lhe dava sinal de ataque, para
correr, sem receio, atrás da ovelha, cabra ou chibarro que breve
estaria nos seus queixos, ou então pela rocha abaixo, se o animal não
se entregasse de outra maneira.
Sempre a
rondar as montanhas, um enorme farrapo de nevoeiro descera tão baixo
que, por algum tempo, todo o panorama se fechara ao redor, tornando
difícil descobrir a tal ovelha desgarrada e vagabunda.
Entretanto, aqui e além, o zagal ia rebuscando, desde o fundo da
ribeira, até ao lado dianteiro e sobranceiro, em toda a extensão da
encosta ‑ sempre procura que procura ‑entrando no recôncavo das
cavernas ou penetrando nos densos arvoredos, de sombras amplas, sadias
e deleitosas, numa pesquisa que já lhe ia parecendo inútil, até que
por fim, quando o Sol ia‑se aproximando da velha capela de Santo
António, erguida pela devoção das antigas freiras de Santa Clara,
mesmo perto da margem da ribeira, o homem enfim encontrara a sua rês,
ali perto de um precipício que formava vertente para o lado da mesma
ribeira, cuja altura era de algumas dezenas de metros.
‑ Aqui
mesmo será fácil de liquidar‑te ‑ disse o pastor, falando só, como
costumam os pastores da serra.
Deu um
assobio e fez um leve aceno ao «Funchal» ‑ assim se chamava o seu fiei
rafeiro ‑ que ia à frente e que lá correu pressuroso sobre a teimosa
ovelha, esbaforido, arquejante, com língua de meio palmo pela boca
fora, enquanto o pastor, dando mais força à voz, lhe gritava:
‑ Pega,
«Funchal», pega! ‑ continuando a tirar dos gorgomilos uns apupos que,
misturados com os latidos do cão, formavam um só eco, que se
repercutia por todo o vale e recôncavos da montanha.
Os
animais silvestres costumam prezar muito a sua liberdade e os
rebanhos, que então escutavam aqueles clamores, pulavam, saltavam,
corriam apressados a esconder‑se, contendo a voz instintivamente e
desviando‑se para os lugares, onde se poderiam julgar mais seguros.
Acontecera, porém, que a tal ovelha arisca e manhosa, como se fora
mesmo uma tentação diabólica, fingira dar uma volta, descendo o
precipício, donde se tinha abeirado.
0 mastim,
com um admirável instinto, aproximou‑se e cortara‑lhe a passagem pelo
sítio mais próximo, mas fizera‑o com tanta infelicidade que, não
recuidando no abismo, indo naquela guinada, despenhara‑se, rolara pelo
despenhadeiro e fora bater e cair lá no fundo, ficando‑se em
contorsões de papo para o ar.
E assim
aquela diabólica ovelha, sempre esquiva e vagabunda, mais uma vez se
escapara das garras do cão e do báculo do seu dono.
0 pastor
aflito coçou na cabeça, o coração parou‑lhe por instantes, olhou lá
para baixo e constatou que o pobre rafeiro mal dava cópia de si.
Perder
um guarda tão fiel foi um caso alarmante e melhor teria sido a perda
da ovelha que satanicamente sempre teimava em esgueirar‑se do rebanho.
0 homem,
apoiado no alto bordão, ferrado de conto, foi pulando e saltando a
ribanceira e desceu ao fundo para ver o estado lamentável, em que se
encontrava o guarda do seu rebanho.
Ali não
pôde conter a mágoa e o desespero, sem uma esperança que a ele lhe
refizesse o desalento e ao cão restituísse a vida.
0
«Funchal» lá estava, no seu último estertor, de ossos quebrados,
esmigalhado, de língua traçada nos dentes, donde saía um pequeno fio
de sangue.
Então,
diz‑se que o referido pastor, com tanta cegueira de espírito, ali
mesmo, a contemplar o cadáver do cão, de queixo firmado no bordão,
abismado em satânico alucinamento, rogou para si mesmo esta horrível
praga, à qual o Diabo não foi surdo:
Mais
valia perder a minha alma! ...
Muito
melhor teria sido resignar‑se o pastor, aceitar o acontecimento, como
permitido pela Providência, erguendo os olhos para o céu azul que
brilhava lá no alto das montanhas.
Muito
melhor teria sido oferecer ao Senhor o sacrifício da sua mágoa, na
esperança de que Ele bem lhe poderia outorgar um outro mastim, mais
esperto, mais fiei e mais zeloso do seu rebanho.
Mas,
desgraçadamente, muitas vezes, o homem materializa‑se, endurece o
coração, cega a inteligência, afrouxa a vontade e perde‑se por causa
dos bens do mundo que no mundo ficam.
Muito
melhor fora para aquele triste zagal pensar no valor da sua alma,
meditar na parábola do Bom Pastor e da ovelha desgarrada, e reflectir
na frase do Evangelho, em que Cristo diz de nada servir ao homem
ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma.
Diz a
lenda que ali mesmo no fundo do abismo surgiu um espírito maligno,
disfarçado e revestido na figura de Satã com o fim de lhe comprar a
alma, que parece já trazia perdida, mediante a troca do animal
restituído à sua integridade física.
E aquele
homem, cego à luz de Deus e talvez endurecido pelas trevas dos seus
crimes, consentiu no contrato diabólico e não se sabe por que artes do
Demónio, que Deus bem lhe pode permitir, um cão surge ali mesmo, mais
lépido e mais rijo de juntas, para continuar na vigília do seu
rebanho.
E o
pastor pensou que a felicidade lhe voltava...
Mas
coisa horrível e muito de estranhar! ...
Em breve
a fugaz satisfação, o riso, o contentamento mudou‑se em amargas
lágrimas, em lamúrias extravagantes e em desesperos descomedidos que
amedrontavam toda a gente daquela freguesia serrana.
Parece,
ao que se conta, que dali para o futuro, o zagal ficara ‑ e não admira
‑ tão possesso do Demónio que todos passaram a ver nele, não um homem,
mas um bicho horrível, repelente, cheio da mais requintada astúcia.
A figura
era de um homem degradado, «despersonalizado», debruçado sobre si
mesmo numa tal introspecção que os olhos do espírito só contemplavam a
fealdade interior, onde, como num espelho, só via a figura de um génio
mau que exteriormente se reflectia num semblante medonho, em esgares
diabólicos.
E
conta‑se que a sua vida passou a ser um susto permanente para toda a
freguesia, nesses tempos antigos, tanto mais radicado nos ânimos,
quanto mais perto viviam os moradores que lhe observavam as astúcias e
tropelias e lhe ouviam os urros e lamentos que diziam ser para chorar
a sua perpétua desgraça.
E
argumentava‑se entre o povo que não podia haver força humana capaz de
fazer o que ele só fazia e acreditava‑se, então, que tais
manifestações não podiam ser naturais, nem por Deus, mas pelo Diabo.
As suas
proezas eram reprovadas pelos homens mais destemidos, soltando urros
tão pronunciados que davam eco por todo o Curral das Freiras,
acordando em arrepios, de dia e de noite, os seus moradores.
0 pavor,
contam, era tão grande que ninguém ousava transitar pelas paragens que
se diziam ser possuídas pelo espírito infernal.
Parece
que por si mesmo aquele possesso se retirou para um lugar deserto e,
segundo a lenda, que entre o povo passa por ser coisa histórica, para
sempre ficou assinalado o sítio, aonde foi acoitar‑se, aonde vivia e
aonde se recolhia.
É urna
caverna espaçosa, conhecida por Furna do Cidrão, cujos limites estão
traçados pela montanha ou serra do mesmo nome que lhe faz muralha à
volta.
Era ali,
segundo a tradição, nas ombreiras daquela caverna, sustentada por
colossos de basalto que o inditoso pastor passava o tempo, pensando
quão grande era Deus e quão vil e mesquinho fora um dia, dando ao
Diabo a sua alma, a quem até na presente vida eram devidos tormentos e
infortúnios.
E o
Bicho do Cidrão ‑ assim passou a chamar‑se o antigo e desgraçado
pastor ‑ ali vivia num tormento e desespero que deixava transparecer
em uivos e gritos aflitivos, num quebranto e embaraço de alma que o
cegava mais, cogitando que uma vez, por dar ouvidos ao Demónio,
perdera a herança do Céu.
Quem
hoje ali passa e conhece a lenda, tem a impressão de que a própria
montanha quis esconder esse monstro, aberração da natureza, entre os
seus lajedos frios e húmidos, pois nunca se diz, nem se sabe como
acabara a sua vida, se vida se poderia chamar ao tormento, em que
vivia constantemente.
Até ali
mesmo, longe do povoado, com os seus medonhos e descomunais clamores,
atormentava a população e desencadeava sobre todo o Curral das Freiras
um tão horrível pavor que de noite ninguém ousava sair à rua, para não
ouvir os berros que faziam arrepiar os cabelos, como os espinhos de um
ouriço.
0 povo
andava tão alarmado que, em cada encruzilhada de caminho, desde que se
encontrassem duas pessoas, as conversas, os pensamentos, os olhares
derivavam para aquele fenómeno, lamentável acontecimento que dava que
falar a toda a gente.
E até se
diz que, de dia e de noite e a toda a hora, havia uma vigília
constante sobre aquele infeliz que era o terror das criaturas humanas
e até dos animais que também se atemorizavam e sentiam na sua voz algo
de extraordinário e fora do natural.
E, se
por acidente imprevisto, alguém se encontrasse a altas horas da noite,
nas vizinhanças da Furna do Cidrão e ouvisse os berros do energúmeno,
que eram como raios a atravessar aquelas ciclópicas montanhas, sentia
mais angústia e inquietação do que sobre ele caísse o rochedo mais
próximo ou desabasse o próprio mundo.
E diz‑se
ainda que a mesma perturbação atingia os viajantes que adregavam
passar por ali perto, caindo no caminho desmaiados e sem sentidos.
Tal é o teor
da lenda do Bicho do Cidrão que ficou a perdurar, não se sabe desde
quando, até aos nossos dias, na freguesia do Curral das Freiras e que
ainda hoje é relembrada, mais com mágoa do que pavor, porque os seus
habitantes a têm à conta de facto histórico e lamentam que um pastor
das suas serras, um dia, tivesse vendido a alma a Satanás, em troca de
um ordinário rafeiro.
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