Varela Cid, Sérgio
Sérgio Varela Cid, também
conhecido por Sérgio Varella-Cid foi um importante pianista. Era
natural de Lisboa, onde nasceu a 5 de Outubro de 1935, tendo
falecido no Brasil, constando o 31 de Outubro de 1981, como data de
morte presumida, uma vez que terá desaparecido e falecido em
circunstâncias pouco claras. Era filho de Lourenço Varela Cid,
pianista e professor do Conservatório e de Dora Soares de Varela Cid,
violinista. Era neto materno do camara-lobense
Dr. Luís Soares de
Sousa Henriques Júnior.
Casou por
duas vezes, a primeira com Luísa Bravo, de quem houve três filhos e
de quem posteriormente se haveria de divorciar. Casaria depois, em
Londres, pela segunda vez, havendo desta união um filho.
Apesar da importância e do
prestígio que gozou como pianista, não é sem alguma dificuldade que
podemos encontrar referências relativamente à sua vida e actividade
musical.
Herdou de seu pai a técnica pianística e de sua mãe, - Dora Soares Varela Cid (Séc. XX),
tomou o gosto pelo violino; a estremada perícia de Sérgio tem
sido galardoada com variados e valiosos prémios, que honram tão
distinta e renomada família
(in
MARTINS DOS SANTOS, A MÚSICA
EM PORTUGAL,
BRAGA - 1999).
Um texto escrito por Pedro
Dordio e publicado em Outubro de 2005, na revista Atlântico
permiti-nos não só conhecer alguns dados biográficos de Sérgio
Varela Cid, como as circunstâncias do seu desaparecimento.
Pela sua importância, não
resistimos à tentação de fazer transpor até aos entusiastas da
história e cultura camara-lobense o texto integral de Pedro Dordio (http://www.revista-atlantico.com.pt/05_Reportagem/Rep_09_2005.htm).
O PIANISTA QUE QUIS SER "GANGSTER", A HISTÓRIA DE
UM PRODÍGIO PORTUGUÊS QUE NÃO DEU CERTO
Foi considerado um génio. Arthur Rubinstein viu nele
o seu substituto. Mas Sérgio Varella Cid não viveu o suficiente para
comemorar neste mês de Outubro setenta anos de vida e quase outros
tantos de pianista. Uma estranha atracção pelo crime levou-o a
desaparecer em circunstâncias misteriosas no Brasil.
Sérgio Varella Cid nasceu no número 78 da Rua do
Salitre, resto de uma via antiga, sinuosa e oblíqua em relação às
artérias circundantes com que o romantismo lisboeta procurou
arremedar os
boulevards
parisienses. Os pais de Sérgio eram Lourenço Varela Cid, também
nascido em Lisboa, pianista e professor do Conservatório, e Dora
Soares de Varela Cid, violinista, natural do Pará, no Brasil. O
acontecimento dá-se a 5 de Outubro de 1935, quando se comemorava
outro nascimento, o de uma República de desfecho trágico. Nesse
mesmo dia era sepultado Reinaldo Ferreira, o “Repórter X”,
romancista, realizador de cinema mas sobretudo repórter de com
especial vocação para histórias de crime e mistério.
Um espírito minucioso poderia ter encontrado aqui
elementos premonitórios do destino de Sérgio. Mas as premonições só
valem posteriormente e porque seleccionamos factos dotados de
indícios claros em detrimento doutros. Poderia por isso escolher-se
outro enquadramento desprovido de quaisquer presságios, destacando
por exemplo a vizinhança festiva do Parque Mayer em cujo Teatro
Variedades se representava a revista “Sardinha Assada”, e onde
decorriam também as meias-finais do “Campeonato Inter-Bairros de
Box”, além de festas com “Automóveis em pista – Carrossel vivo e
Campeonato equestre, etc.”.
Em que medida é que a chinfrineira resultante de tudo
isto afectava a concentração necessária ao trabalho do casal Varela
Cid, é hoje difícil de saber. Acumulámos quilómetros de imagens ao
longo de séculos mas ficámos surdos para o passado.
Em todo o caso o ambiente deve ter sido propício para
o desenvolvimento das aptidões naturais do pequeno Sérgio que aos
oito anos dá o seu primeiro concerto de piano, em Lisboa, no ginásio
do Liceu Camões, executando Mozart, e aos dez o primeiro recital
público, no Tivoli. O sucesso destas primeiras apresentações está na
origem de um contrato para tocar no Cambridge Theatre of London, aos
doze anos, e, antes ainda, de um documentário sobre o jovem prodígio
realizado pela Paramount. Seguem-se concertos em Paris, Madrid e na
Escandinávia.
Em 1955 Lourenço Varela Cid, até aí professor do
filho, decide que o jovem deverá aperfeiçoar a sua técnica em
Londres, sob a direcção de um célebre pianista. Benno Moiseiwitsch.
Talvez o pai se apercebesse já daquele que era o principal problema
de Sérgio. O pianista Sequeira Costa, praticamente seu
contemporâneo, apenas alguns anos mais velho, recorda-o como “um
rapaz de possibilidades artísticas evidentes mas que pouco ou quase
nada estudava, não tinha paciência, e, por isso, as coisas nem
sempre corriam como esperava”. O balanço feito pelo musicólogo Rui
Vieira Nery vai no mesmo sentido: “Nunca teve uma formação técnica
verdadeiramente profissional. Possuía um talento instintivo muito
forte e grande capacidade de comunicação com o público, o que tinha
como resultado que tanto podia ter dias muito inspirados como outros
menos bons.”
Nos anos 50 e 60, Sequeira Costa e Sérgio Varela Cid
preenchiam quase na totalidade o acanhado espaço do pianismo
nacional. Naturalmente formaram-se fãs de um lado e do outro que
rivalizavam na veneração dos dois músicos, numa espécie de variante
erudita da rivalidade Madalena Iglésias – Simone de Oliveira. Os
admiradores de Costa acusavam Cid de diletante, os incondicionais
deste denunciavam a frieza de Costa. “As pessoas dizem por vezes que
ele [Sequeira Costa] é frio mas não, simplesmente é mais
introvertido” – explica o maestro Vitorino de Almeida. – “O Sérgio
era mais expansivo, usava cores mais berrantes.”
O período
de estudo em Londres apenas é interrompido para uma deslocação à
África do Sul e ao Oriente com passagem no regresso pelas Canárias.
Casa novo, com 22 anos (virá a ter três filhos deste casamento), e
instala-se depois em Londres onde faz uma boa carreira. Dá outros
concertos: na Grécia, Áustria, URSS, Brasil. Os críticos musicais
auguram-lhe “dentro de
muy poco tiempo el
reinado absoluto entre los grandes del teclado”,
“un grand
avenir”
ou “may be one of the world’s foremost pianist”. Ao mesmo tempo vai
acumulando prémios: 1º Prémio do Conservatório de Lisboa (1955), 1º
Prémio Concurso Internacional Magda Tagliaferro (1957), 4º Prémio do
Concurso Internacional de Música Vianna da Motta (1957). Mas o
galardão que iria perdurar seria o presságio de Arthur Rubinstein, à
época o mais famoso pianista. Após ouvir Varela Cid em Londres, com
apenas 16 anos, comenta numa entrevista que aquele poderia vir a ser
o seu substituto.
Tornou-se por isso surpreendente a decisão tomada em
1972. Após uma série de concertos de sucesso no Carnegie Hall de
Nova Iorque (dois anos antes tinha ganho o prémio da
Casa da Imprensa pela gravação da integral dos concertos de piano
de Beethoven) abandona subitamente a carreira. “Em 1972 não havia
nenhuma decadência musical na carreira de Varela Cid” – diz Rui
Vieira Nery. – “Os problemas que então teria como executante já os
tinha no passado. Pelo contrário, tinha adquirido uma maior
segurança e capacidade de os resolver.”
Vitorino de Almeida, cinco anos mais novo,
reconhece-lhe uma tendência estranha para ser aventureiro: “Oscilava
entre o conceito romântico do grande concertista e uma grande
atracção por figuras como Arsène Lupin – um modelo de aventureiro
simpático.” E exemplifica o seu gosto por gestos provocatórios: um
dia parou um concerto dizendo que a Orquestra da Emissora Nacional
estava a desafinar. “Penso que a orquestra estava mesmo a desafinar,
mas há limites, e as coisas podem ser feitas de outra forma.” Em
Portugal começam a surgir notícias vindas de Londres e da Suíça
sobre o seu comportamento estranho. O que contrastava com aquele
aspecto simples, ar tímido e até triste que o cronista de um jornal
brasileiro vê em Varela Cid durante a digressão de 1955.
Em Março
de 1976 divorcia-se, mas casa-se de novo a 16 de Novembro de 1977,
em Londres. Três dias depois, um Boeing 727 da TAP despenha-se ao
aterrar no Aeroporto de Santa Catarina, próximo do Funchal. Morrem
132 dos 164 passageiros e tripulantes embarcados. Entre as vítimas
contava-se a irmã de Sérgio, Gilda Varela Cid, assistente de bordo
da TAP. Dos oito tripulantes apenas sobreviveram o comissário
Marques da Silveira e a hospedeira Neiva Vieira. O corpo de Gilda
nunca foi encontrado. Os jornais recordam-se então da funesta
profecia feita no início desse ano por Zandinga. O então pouco
conhecido “pedagogo, parapsicólogo e astrólogo” previra que a TAP
teria nesse ano o seu primeiro acidente grave.
Em 1979 o pianista português emigra para o Brasil. O
único filho do seu segundo casamento nasce um ano depois, em
Setembro de 1980. Sérgio Varella-Cid (algures no passado decidiu-se
pela duplicação do “l” e mais tarde pela introdução do hífen) fixa
então residência na Rua Cuba, uma artéria do Bairro Jardim América,
na zona sul de São Paulo. Aí, na manhã de 26 de Junho de 1981, será
visto pela última vez, na companhia de dois homens, um dos quais
sempre se suspeitou que fosse o cirurgião plástico Hosmany Ramos.
Não estão absolutamente definidos os motivos que
terão levado Sérgio Varella-Cid a cruzar o seu destino com o de
Hosmany Ramos. Nascido Osmane (também ele resolveu burilar o nome
com um ‘h’ e um ‘y’) num lugarejo do Vale de Jequitinhonha, Minas
Gerais, foi jornaleiro e, perseverante, conseguiu formar-se em
Medicina. Em 1976 é já assistente do famoso cirurgião plástico
brasileiro Ivo Pitanguy. “Tinha orgulho de mim e eu dele. Certa vez,
me apresentou a um renomado médico americano e disse – esse é o meu
melhor aluno”, recordará mais tarde Hosmany Ramos. Rico, excêntrico,
com apartamento na Avenida Atlântica, em Copacabana, move-se com
facilidade entre artistas e socialites cariocas.
Nos primeiros meses de 1981, Hosmany conheceu Marisa.
Ou, mais exactamente, Marisa Raja Gabaglia conheceu Hosmany, porque
também em matéria de paixões há um autor, há sempre alguém que
começa e só por comodidade romanesca se apresenta o fenómeno como
recíproco e simultâneo. Por outro lado, talvez Marisa ficasse melhor
no lugar do complemento directo, porque a partir daquele ano tudo
mudou na vida dela (na de Hosmany também mas por outros motivos).
Marisa
Raja Gabaglia era, por essa altura – preparava-se para fazer 40 anos
–, figura de prestígio da TV Globo, repórter especial e
apresentadora do telejornal “Hoje”. Tinha sido actriz na telenovela
Pigmaleão 70 e a nação guardava dela a imagem de “mulher-liberada”,
que expressava a sua opinião como jurada em programas de auditório.
Para a posteridade, para melhor compor uma trama de amor-bandido,
trocaram-se datas e propalou-se que tudo começou numa visita à
cadeia, onde Marisa teria ido entrevistar Hosmany. Mas não foi
verdade. Nesses idos de Março ou Abril de 1981, o objecto da paixão
de Marisa era ainda um promissor cirurgião plástico, com a sala de
espera da clínica bem servida de dondocas, e assíduo frequentador
das colunas sociais. Hosmany continuaria aliás a marcar presença nos
jornais. Mas preparava-se agora para mudar de secção. No final de
1981 a polícia brasileira já reúne dados suficientes para apontar
Hosmany como suspeito de tráfico de drogas – era considerado um dos
principais traficantes de cocaína, com ligações no Rio, São Paulo,
Bolívia, Paraguai e Estados Unidos – furto de aviões, assaltos (à
casa do coleccionador de armas Augusto Corsino e do embaixador
Aloísio Bittencourt), receptação de uma moto roubada, emissão de
cheques sem fundo, contrabando de material cirúrgico, dólares
falsos.
Porém, o que mais engrossava o processo em que
Hosmany acabará por ser julgado é a lista de homicídios de que é
suspeito. Os nomes e as profissões dos assassinados parecem saídas
do melhor enredo policial. São eles o piloto Joel Avon, que se
envolvera com Hosmany no tráfico de drogas e que apareceu morto num
quarto de hotel em Itapecerica da Serra; o ladrão Firmiano Rangel,
autor de assaltos planeados pelo médico, encontrado morto ao lado de
um Mercedes Benz roubado; e o comerciante Reginaldo Lourenço
assassinado com três tiros e fechado na mala de um Passat que
pretendera vender a Hosmany. Estes, contudo, são apenas aqueles
cujos cadáveres foram recuperados. O corpo do piloto Carlos Alves
Lobo, o Lobinho – avistado pela última vez a 17 de Setembro, em
Dourados, pilotando um bimotor que o médico queria comprar –, nunca
foi encontrado.
O destino
de David Linch foi semelhante. O inglês comprava carros de luxo em
Inglaterra e trazia-os para o Brasil através de Montevideu, sendo
recolhidos pelo cirurgião em Porto Alegre. Libertado através de
habeas corpus, Linch foi visto em Agosto de 1981, com uma carrinha
Mercedes Benz 81, e, desde então, a única coisa que dele apareceu
foi a agenda pessoal e o passaporte, apreendidos a Hosmany. Na posse
do médico, juntamente com os documentos de Linch, estava também o
cartão de garantia de cheques nº 295325, série A, do Banco
Económico, em nome de Sérgio Soares de Varela Cid. O que fazia o
médico com o cartão do pianista? E o que tinha acontecido a este?
Hosmany nunca o explicou, como aliás nunca admitiu qualquer dos
crimes de que era acusado e pelos quais foi condenado a 21 anos,
seis meses e 20 dias de prisão.
Certo é que Varella-Cid se encontrava com frequência
com Hosmany Ramos. Talvez por descobrir neste algum paralelismo de
percurso: o sucesso nas respectivas carreiras, o tal gosto pela
“aventura”, talvez o ego nutrido pelo facto de pensarem que poderiam
ter sido, porventura, herdeiros dos maiores, Rubinstein e Pitanguy,
e que não o foram porque não quiseram. Mas a partir daqui as
semelhanças acabavam. Ao aproximar-se de Hosmany Sérgio pisava
terrenos que desconhecia. Todos os que estavam a par das actividades
criminosas do cirurgião foram mortos. Para o maestro Vitorino de
Almeida era evidente: “O Sérgio tinha certamente mais talento como
pianista.” Quando desapareceu, apenas era investigado por uma
companhia de seguros que suspeitava de que ele simulara o roubo do
seu Cadillac para receber o seguro.
Lourenço Varela Cid morre em 1987, com 88 anos, e a
mulher Dora em 1989, contava já 87 anos. Partem com dois filhos
mortos e insepultos dos quatro gerados, como se uma maldição sem
motivo nem autor se tivesse abatido sobre eles. Amaldiçoada foi
também Marisa Raja Gabaglia. A prisão de Hosmany deixou-a
transtornada e acabou por ser afastada dos órgãos de comunicação
onde trabalhava. Pior ainda foi cair no esquecimento: “Ninguém me
dava emprego. Vendi até faqueiro de prata para sobreviver” –
queixa-se em 1996 numa reportagem intitulada “Pioneiras do orgasmo
viram donas de casa”, sobre algumas desprezadas estrelas da TV.
Em 1982
publicou o livro Meu amor-bandido: e quem não é?, onde narra aqueles
seis meses de namoro com o assistente de Pitanguy. Nunca mais se viu
livre desse amor-obsessão, arrastado em romagens pelos presídios.
Quando lhe falaram dela, numa entrevista na cadeia, Hosmany
respondeu simplesmente: “Não a vejo há dois anos, mas continuamos
amigos.”
Marisa morreu a 13 de Janeiro de 2003, vítima de
leucemia. Dias depois, Artur Xexéo, editor do Globo, escreveu esta
estranha nota fúnebre no blog “marinildadas”: “Logo Marisa, que
tanto agitou este Rio de Janeiro. Podem acreditar: no fim dos anos
60, Leila Diniz não era a única mulher solteira que falava
palavrões, morava sozinha, sustentava-se com o seu próprio trabalho
e… dava!”
Sem nota
fúnebre nem placa na Rua do Salitre, daquelas onde se lê, “Nesta
casa nasceu…”, Sérgio Varella-Cid caiu também no esquecimento
público. Quando o seu nome reapareceu, nas edições de 20 e 21 de
Junho de 1994 de A Capital, foi sob a forma de anúncio do Tribunal,
citando-o a contestar a Acção Especial de Morte Presumida que então
decorria. O pensamento jurídico adora estas provas por absurdo:
convidava-se alguém que se presumia morto a contestar a sua morte.
Se não o fizesse era porque estava efectivamente morto. E se
estivesse vivo e não contestasse? O Código Civil responde a isto com
o seu art.º 115: “A declaração de morte presumida produz os mesmos
efeitos que a morte.”
Como os antropólogos descobriram há muito, existe um
período de transição, de passagem da vida para a morte. Só no fim
dessa viagem os defuntos atingem o repouso eterno. No caso de Sérgio
esse momento chegou em 16 de Dezembro de 1997 com a declaração de
morte presumida com referência a 31 de Outubro de 1981. Já podia
descansar em paz. E seria deixado em paz pelos vivos. Poucos
recordam hoje os “bravo”, os “bis” ou a profecia não cumprida de
Arthur Rubinstein.
Quanto a
Hosmany Ramos, se a velhice se pode medir pelo número cada vez maior
de conhecidos mortos, e inversamente pela quantidade sempre menor de
sobreviventes, o ex-cirurgião parece ter-se esforçado por acelerar
este processo natural. Eliminados alguns dos seus mais próximos
(suspeitou-se que terá morto também a mulher e uma amante em 1980),
desaparecidos outros como Marisa, o recluso 36 099 ia ficando cada
dia mais só. Mas as prisões são ricas em proporcionar novas
amizades, uma das quais, Milton Marques Viana, testemunha
sobrevivente do massacre do Carandiru e seu vizinho de cela em Avaré,
fez a Hosmany um relato detalhado do que sucedeu nesse dia 2 de
Outubro de 1992 em Carandiru: a briga entre os detidos Barba e
Coelho, depois o início da rebelião, por fim a entrada dos policiais
e o fuzilamento indiscriminado de 111 presidiários. A história da
carnificina na Casa de Detenção de São Paulo (o Carandiru) vai
servir de base a um dos 24 contos reunidos em Pavilhão 9 – Paixão e
Morte no Carandiru, onde Hosmany faz apologia de uma reforma
profunda do sistema carcerário. O livro é escrito em 1995 (só será
lançado em 2001), mas antes disso tinham já sido publicados Síndrome
da Violência (1984), Queima de Artigo (1985) e Marginália (1987),
todos inspirados em crimes vividos por si ou por colegas reclusos.
Cirurgião, bandido e agora escritor, Hosmany Ramos
começava a recuperar algum do antigo prestígio. Tinha feito 50 anos
e, na prisão, onde cuidava da biblioteca, revelava-se um preso
exemplar. Para trás ficavam as fugas rocambolescas, 11 no total
(numa escureceu o cabelo com graxa e cobriu a cara com chocolate em
pó, noutra caiu de uma altura de sete metros e sofreu várias
fracturas). Mas a passagem pelo presídio de segurança máxima de
Avaré tinha reservado outras amizades a Hosmany que iriam ter um
importante papel quando, em 1996, o sistema prisional brasileiro
lança uma armadilha involuntária ao recém-escritor.
Hosmany aguardava por essa altura a resposta a um pedido de
liberdade condicional. A direcção do Instituto Penal Agrícola de
Bauru, uma prisão sem celas onde vivia em regime semiaberto desde o
ano anterior, concede autorização a 516 detidos para passarem o Dia
da Mãe com a família. Hosmany, um dos escolhidos, saiu no dia 10 de
Maio, devia regressar às 17h do dia 14, mas só a 26 dá sinais. Está
na Rondónia, próximo da Bolívia, onde, armado com um revólver
calibre 38 e uma pistola Glock calibre 9 milímetros, dá uma
entrevista à Globo em que promete ser o “faxineiro” da sociedade. O
psiquiatra Guido Palomba, que se dedica a tentar compreender o que
se passa na cabeça dos criminosos, é chamado a comentar e
descobre-lhe sinais de messianismo. Para mais, Hosmany Ramos
manifesta intenção de integrar o IRA, o que motiva outras reacções:
ao passo que o Belfast Telegraph, pró-Reino Unido, sublinha o estado
a que tinha chegado o Exército Republicano Irlandês com tais
militantes, um ex-membro da organização, Robert McClenaghan, diz
nunca ter conhecido um estrangeiro militando no IRA, e alerta para o
facto de o rosto do candidato a terrorista ser reconhecido, o que o
tornava um alvo muito fácil – “Só com cirurgia plástica” afirma com
ironia pois tal obrigaria o antigo cirurgião a experimentar na pele
o corta-estica-cola que tanto o haviam glorificado.
Mas se da passagem de Hosmany pelo IRA não há rasto,
outras notícias levam a polícia ao fugitivo. Em 16 de Junho é
raptado o empresário Ricardo Rennó, dono de uma estamparia de lata
em Santa Rita do Sapucaí, Minas Gerais. A entrega do resgate é
combinada para dia 22, em Campinas, a Noroeste de São Paulo, mas a
polícia aguarda os sequestradores, dois dos quais, Christian
Guerreiro e Rafael Nonato Júnior, são feridos e conduzidos ao
Hospital de Pouso Alegre. Um terceiro elemento da quadrilha escapa à
emboscada. Quanto ao sequestrado, Rennó é abandonado em Governador
Valadares e consegue libertar-se. Só dois dias depois a polícia
descobre que Nonato Júnior é, afinal, Hosmany Ramos e que o
fugitivo, que seria preso a 27, é Antonio Pádua Vargas, um amigo da
prisão de Avaré.
Num quarto do hospital, rodeado por 20 agentes da
polícia, Hosmany dá finalmente uma entrevista onde poderia ter
esclarecido tudo. Mas recusa responsabilidades (“Apenas cedi lugar
para o cativeiro.” [...] “Eu nem tinha idéia daquilo.”). Explica que
“esse caso do IRA foi apenas uma criação de momento, uma fantasia
ilustrativa, para que aquilo fosse publicado”. E acaba a agradecer
aos céus: "Nasci de novo. Houve uma providência divina para que eu
não fosse atingido porque eu salvei a vida do sequestrado.”
De
regresso ao cárcere, e como o sistema prisional não oferece muitas
alternativas, além de que fica com a pena agravada em mais 30 anos,
só lhe restava repetir experiências passadas. Escreve mais um livro,
Sequestro Sangrento, em 1997 (entretanto a editora Gallimard
publica, em França, Marginália e Pavilhão 9), tenta mais uma fuga em
2001 (com a tradicional corda de pano, gancho e canivete) e dá novas
entrevistas, repletas de queixas, esperanças e boas intenções. –
“Sou um injustiçado”, [...] “Estou muito confiante no Lula. Quem
sabe ele acaba com a corrupção em Brasília”, [...] "Sou um
prisioneiro do texto e vou viver de literatura".
Se um dos seus propósitos se cumprisse um dia – o de
escrever “O Caso Hosmany”, uma autobiografia –, talvez se
esclarecesse o que aconteceu com Lobinho, David Linch e Sérgio
Varella-Cid. E talvez se respondesse à pergunta fundamental desta
história: o que leva alguém que é rico e famoso a roubar e a matar
Em 2003, o psiquiatra Guido Palomba esclarecia a este propósito uma
ingénua participante num chat da Globo: “Telma, as pessoas com
sucesso e dinheiro não ficam fascinadas pelo crime, são os
criminosos que têm esse fascínio pelo dinheiro e sucesso.”
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