Por:
Manuel Pedro Freitas
A Levada da Velha que teria sido construída para captação de água no Curral das Freiras e seu transporte até ao Estreito, Quinta Grande e Campanário, permanece ainda hoje envolvida num grande mistério, onde o real se confunde com o lendário. Efectivamente se não subsistem dúvidas sobre a existência de segmentos do traçado dessa levada cavada nos rochedos do Curral, já todo o processo que envolveu a sua construção é pouco claro e difícil de explicar, situação que muito provavelmente fez eclodir a imaginação popular, atribuindo a sua construção a uma velha rica.
Quem se deslocar de automóvel
à freguesia do Curral das Freiras e, a partir do lugar da Estrela
começar a olhar com alguma atenção para os rochedos
que constituem o limite oeste do Curral das Freiras e que o separam da
freguesia do Estreito e do Jardim da Serra, verificará que em determinadas
zonas existem vestígios de um e às vezes de dois traços
horizontais e paralelos cavados na rocha. Melhor apreciados desde
a Eira do Serrado ou a partir do troço de estrada entre os dois
túneis de acesso ao Curral das Freiras, estes sulcos correspondem
a uma antiga levada, denominada de Levada da Velha, por ter sido, segundo
a tradição, mandada construir por uma velha rica para irrigar
as suas propriedades nas freguesias da Quinta Grande e do Campanário.
Ainda que, a este propósito,
a informação escrita seja muito escassa, encontramos quer
em 1933, quer em 1952, no Jornal da Madeira, dois textos aparentemente
do mesmo autor, que não só descrevem com algum pormenor aquilo
que a tradição oral fez chegar até aos nossos dias,
como adiantam algumas explicações relativamente ao construtor
e época em que foi construída e, que apesar de especulativas,
não deixam de parecerem convincentes.
A levada da velha
Segundo o Jornal da Madeira
de 27 de Julho de 1952, os mais antigos aquedutos, hoje abandonados
por várias circunstâncias, passaram a ser denominados genericamente
por levadas velhas, ou no singular, levada velha. Esta denominação
facilmente se converteu em Levada da Velha.
A mais antiga e mais
célebre refere-se a um aqueduto que conduziria água de rega
desde os flancos do Pico Ruivo e Torres em direcção à
Boca dos Namorados, atravessando despenhadeiros e rochas alcantiladas,
num percurso de mais de 20 quilómetros.
Nenhum documento escrito
demonstra a existência deste aqueduto, mas é certo que existiram
dois, em vez de um, no sítio já indicado, como se prova à
evidência, pelos vestígios de duas linhas paralelas, obliteradas
onde o terreno era movediço, mas cortadas a picareta em rochas vivas
ou moles, como se pode verificar encontram-se pedaços de caixa de
levada, cavada na rocha, que os séculos ainda não destruiram.
Aqueles aquedutos foram
construídos em remontíssima época, provavelmente no
último quartel do século XV e um deles deveria ser destinado
à irrigação de terrenos do Estreito, Quinta Grande
e Campanário. Ainda existem nessas paróquias alguns vestígios
e tradições da obra formidável, de incalculáveis
vantagens agrícolas e económicas.
Quem a mandou construír?
O destino das águas,
referenciado na tradição oral como sendo Quinta Grande e
Campanário, associado à falta de informação,
a propósito da data da sua construção, permite-nos
não só admitir que ela tenha acontecido em tempos muito remotos,
como ainda admitir que a sua construção possa ser atribuída
a Rui Teixeira. Para além de possuir propriedades no Campanário,
onde residia, Rui Teixeira era também proprietário do Curral,
terrenos que haviam sido doados, a 22 ou 28 de Agosto de 1474 a sua mulher
Branca Ferreira, por João Ferreira, que por sua vez os havia recebido,
por sesmaria, do primeiro capitão donatário, João
Gonçalves Zarco.
Só assim se compreende
a relação entre o Curral das Freiras e o Campanário
e a acessibilidade, por parte do proprietário do Campanário,
às águas nascidas no Curral das Freiras.
Ainda que a tradição
refira que a levada foi mandada construir por uma velha rica e que o Padre
Eduardo Clemente Nunes Pereira, nas Ilhas de Zarco chega a referir como
sendo de origem castelhana ou moura, o autor do texto publicado no
Jornal da Madeira, que vimos citando, rejeita naturalmente esta hipótese.
Ao se interrogar sobre quem havia mandado construir a Levada da Velha,
coloca também de fora a hipótese de ter sido o Estado a construí-la,
uma vez que se o tivesse sido, seria de admitir a existência de documentação
escrita, o mesmo acontecendo com a hipótese de se ter tratado de
um empreendimento de natureza popular. Era pouco viável que o povo
fosse capaz de se unir para um empreendimento tão dispendioso,
difícil e demorado na execução.
Sendo assim, só
havia uma hipótese que adianta tanto no texto de 1933 como no de
1952: O Curral das Freiras pertenceu, até ao último quartel
do século XV a Rui Teixeira, casado com D. Branca Ferreira, residente
no Campanário.
Nesse tempo,
os donatários, além de riqueza em propriedades e dinheiro,
tinham ao seu serviço centenas de escravos que obedeciam cegamente
aos seus senhores.
Rui Teixeira, homem
de vistas largas, corajoso e empreendedor, concebeu o arrojado pensamento,
seguido de execução, de valorizar os seus domínios
no actual concelho de Câmara de Lobos pela irrigação,
conduzindo até lá, em aqueduto as águas que nasciam
nas fraldas do Pico Ruivo e montes anexos.
Porquê duas levadas?
Encontrado o construtor,
o articulista do Jornal da Madeira interroga-se sobre os motivos da existência
de dois aquedutos, desde as rochas da Boca dos Namorados até à
região das nascentes.
E a explicação
dada também não deixa de ser convincente. Apesar de possuir
meios humanos e financeiros faltariam a Rui Teixeira meios técnicos,
ou seja um Amaro da Costa, que como todos sabem foi o autor do projecto
da levada do Norte. Ora, esta falha viria a condicionar alguns erros de
cálculo na sua construção.
Rui Teixeira terá
começado por construir uma levada a partir das rochas da Boca dos
Namorados, mas quando chegou à zona das nascentes, esta saíria
acima delas, facto que impedia a captação das suas águas.
Contudo, não desanimou e deu início a outra levada, partindo
desta vez, das nascentes e trazendo a água a servir de nível.
Explicada satisfatoriamente
a existência de dois aquedutos paralelos que ainda hoje se reconhecem
facilmente, nalgumas zonas, faltava agora explicar o abandono a que ficou
votada e que, ao que parece, nunca terá chegado a transportar água.
Da mesma forma que se
procurou na relação entre as propriedades do Campanário
e Curral das Freiras, uma justificação para o início
do empreendimento, também se aponta o fim dessa relação
para o seu abandono. Com efeito, por escritura de 11 de Setembro de 1480,
Rui Teixeira vendeu os terrenos que possuía no Curral das Freiras
ao 2º Capitão Donatário do Funchal, João Gonçalves
da Câmara que, possuindo outros interesses não terá
dado continuidade ao projecto inicial.
A maldição
cai sobre a velha
Ainda que não havendo
certezas relativamente ao facto da água ter chegado, ou não,
a sair do Curral das Freiras, a tradição diz que chegou mesmo
à freguesia do Estreito e até ao Campanário, mas que
a velha muito rica, a quem a lenda atribui a autoria do empreendimento,
depois de ver chegar a água, em vez de agradecer a Deus a graça
alcançada pôs-se a lamentar o dinheiro gasto nos seguintes
termos:
Levada, minha levada.
Levada que aqui me
tens.
Gastei uma pipa de
patacas.
E um quarto de vinténs.
A partir desse momento,
como castigo, a levada começou a rebentar ora numa parte, ora noutra,
não sendo mais possível pôr a água a correr.
Uma outra versão
da lenda da levada da velha refere que a velha terá também
morrido, por castigo de Deus, por não ter agradecido a Nosso Senhor,
com humildade e acção de graças, o auxílio
dispensado à obra, que parecia impossível de realizar-se,
e que os seus herdeiros aterrorizados por aquele divino castigo, ou desinteressados
do alto valor da obra, abandonaram-na até perderem o direito às
referidas águas, que passaram para a Levada do Castelejo ou de Santo
Amaro, construída muito tempo depois.
A propósito da
levada da velha, o Heraldo da Madeira na sua edição de 16
de Maio de 1909 dá outro desfecho à velha, ao referir que
a velha teria falecido de desgosto ao ver que depois de ter gasto tanto
dinheiro, o empreendimento não havia resultado, em virtude do defeito
de desnivelamento verificado na sua construção.
Azar de uns sorte de
outros
No dizer, do autor do
artigo publicado em 1933 no Jornal da Madeira, a propósito da levada
da velha, se estas levadas tivessem funcionado, não haveria
quase que cultura nem no Curral das Freiras, nem em São Martinho,
nem em Câmara de Lobos porque as levadas dos Piornais, do Castelejo
e da Torre não teriam metade da água.
Reforçando ainda
mais o seu pensamento refere que se a levada da velha, como o povo lhe
chama não tivesse sido abandonada, a balança da fortuna ter-se-ia
inclinado completamente para as freguesias do Estreito, Quinta Grande Campanário
e Ribeira Brava e o Curral das Freiras, São Martinho e São
Pedro beneficiadas pelas águas do Castelejo e Piornais seriam hoje
(1933) terrenos árduos como a maior parte do Caniço e São
Gonçalo.
A levada e a veia poética
popular
Construída pela
tal velha rica, por Rui Teixeira ou por outra entidade, um facto incontestável
é que, passados tantos e tantos anos, lá está a marca
da levada, levada essa que continuará, muito provavelmente, sem
que se saiba a sua verdadeira história e, por isso mesmo, a ser
tema de lenda e alvo de inspiração para a veia poética
popular, como demonstram os versos recolhidos pelo Grupo Folclórico
do Curral das Freiras e que servem até de tema do seu reportório:
Era uma senhora rica
E já de maior
idade
Tinha uma grande fazenda
Não tinha água
para rega.
Estava sempre a pensar
Aquilo que ia fazer
Vou arranjar a levada
Para ter muito comer.
Os homens eu já
tenho
Vamos todos trabalhar
Quando a água
chegar
A fazenda vou regar.
Levada minha levada
Levada que aqui me
tens
Gastei uma pipa de
patacas
E um quarto de vinténs.
Com a água da
fazenda
Já estava a
regar
Não dei as graças
a Deus
Começou a rebentar.
A levada rebentou
Ficou o vizinho gloriado
Que tinha gasto o dinheiro
E não me tinha
lucrado.
Bibliografia:
História da
Madeira, uma página inédita. O Jornal, Funchal, 11 de
Agosto de 1933.
História da
Madeira, uma página inédita. O Jornal, Funchal, 6 de
Setembro de 1933.
Jornal da Madeira, 27
de Julho de 1952, pag. 10-11.
PEREIRA, Eduardo CN. Ilhas
de Zarco, 4ª ed. Vol.1, pag. 682, Funchal, 1989.
FREITAS, A. Vieira. Era
Uma Vez... Na Madeira. 2ª Ed. Pag. 17-21. Funchal, 1984.
Campanário,
in Heraldo da Madeira, 16 de Maio de 1909.