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AUTOR
PALAVRAS-CHAVE
JOSEPH PATRICK MORZELO
Estudos culturais, hiperrealidade, subculturas, século XX, niilismo, mídia
AS REFERÊNCIAS DO TEXTO AINDA ESTÃO SENDO ORGANIZADAS PARA SEREM INCLUÍDAS EM BREVE
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Sobre o anônimo

A MORTE DA SUBCULTURA UNDERGROUND
JOSEPH PATRICK MORZELO
Publicado no INFORMATIVO S.E.M.C.P. #1 (Março de 2009)

  I. Uma boa-nova

Desde a morte de Deus, nenhuma boa nova foi tão ansiosamente aguardada quanto esta: as subculturas underground estão mortas. Essas subculturas foram o último suspiro de um antigo projeto coletivo onde o principal alvo é redefinir padrões culturais significativos -- relativos a formas de relacionamento em diversos níveis, comportamento sexual, valores sociais -- em meio a grupos marginalizados, tendo ganhado voz e um formato que as definiu estruturalmente no século XX com o movimento hippie. Ainda que, onde há um código cultural e comportamental compartilhado pela maioria sempre haverá uma parcela de pessoas dedicadas a subvertê-la; no século XVII e XVIII piratas construíram a mais famosa e interessante des subcultura radicalmente democrática e avessa a qualquer forma de vida que se pode imaginar até então. Outras subculturas sobrevivem por séculos, como os Roma e Sinti (aclamados ciganos).
Mas o que acontece no século XX com as subculturas é essencialmente distinto. Os grupos underground se articularam em torno de um público predominantemente jovem (ainda que algumas pessoas continuem afiliadas ao grupo durante toda sua vida), a maioria ainda em processo de definição de personalidade e papéis sociais. Todos estes movimentos tiveram como forma expressiva principal a música: não apenas por ser a melhor correlata à explosões emotivas próprias de adolescentes, mas pela facilidade de sua veiculação e produção (é mais simples arrumar instrumentos musicais e aprender três acordes do que dominam técnicas de perspectiva ou um corpus literário durante 10 anos para começar a produzir algo digno).

                  "A música cria um mundo autônomo de sons com seu próprio rol de leis e relações, sua própria forma de ordenar as coisas, suas próprias concepções de tensão e apaziguamento. E no meio destas ordens abstradas encontramos codificadas visões de utopia e distopia. [...] (Rothstein, 24)

A liberdade que só essa época oferecia dava a jovens para escolherem seu estilo, terem grande parcela de tempo longe da família e terem suas obrigações formais diminuídas de forma a poderem se dedicar a algo deles é algo que só se torna possível na configuração social do mundo pós-guerra, quando as liberdades formais de crianças e adolescentes aumentam significantemente, o espaço comum dos mesmos cresce, a orientação dada ao jovem perde sua ênfase patriarcalista e voltada para atividades doméstico-familiares e passa a apontar para uma adaptação no mundo de competitividade comercial e adaptação em centros urbanos cada vez mais labirínticos.

Os vários grupos underground da segunda metade do século, quaisquer que sejam sua orientação política e ênfase, constituíram em conjunto uma força reativa contra estilo de vida burguês que vinha se desenvolvendo desde o império do american way of life em contexto de democracia neo-liberal. Sejam skinheads, seguidores da Church of Satan, hippies, punks, góticos, todos os grupos partiam claramente de uma discordância, por um lado, com as diversas implicações sociais refletoras da configuração sócio-econômica atual -- anonimidade nas cidades grandes, controle cada vez maior do tempo útil por grades rígidas de deveres civis e trabalhistas, troca do desenvolvimento da individualidade pelo desenvolvimento de técnicas profissionalizantes. Se a vida social carregava este status, por outro lado, era assombrada por visões de mundo conservadoras herdadas do século anterior -- a da família nuclear, religiosidade, patriarcalismo, filisteísmo, moralismo, autoritarismo -- ainda mantidas em um nível institucional. Os jovens criados a partir da década de 50 vivenciam o paradoxo de ser formado em uma cultura individualista que ao mesmo tempo não preza pelo desenvolvimento de potencialidades individuais - criativas, intelectuais, relativas ao lazer e experienciação do mundo -, mas mantém uma grande de valores rígidos que restringem as possibilidades de experiência destes indivíduos e lhes dão um direcionamento puramente funcional, lhe educam para serem prestadores de serviço e cidadões que votam regularmente. A liberdade que lhe davam com uma mão era, portanto, tirada pela outra na medida que estar de acordo com o consenso, respeitar os costumes eram condições de se estar integrado com seus iguais. O termo que se opõe a underground é mainstream - isto é, tudo que representa este fluxo normativo de comportamentos esperados em um cidadão submisso, a moral do "gado humano" (segundo Nietzsche), que constitui o eixo da sociedade como um todo.

O principal alvo destes grupos que se refugiavam em condutas de comportamento (por eles mesmos sintetizadas!) é a banalização e nivelação de todos os conteúdos culturais advindos de um sistema democrático neoliberal, onde "todos são iguais (e ordinários ao mesmo tempo)". Sistema essa que, ao mesmo tempo que promove a banalização, revela profundas incongruências pelo simples fato de que o acesso a privilégios de acesso cultural se dá por meio de um capital disponível para uma camada abastada da sociedade. Em uma era onde cultura popular e erudita se fundiram em uma só coisa - chamada "mercadoria" - a criação de subculturas populares que refletissem a opinião destas camadas marginalizadas se fazia contra a especialização técnica (própria da cultura erudita) e contra qualquer forma de erudição e banalidade, simultaneamente. Daí surge a música de três acordes, estilos repetitivos (como o rap) sem muita preocupação em expressar riqueza harmônica. A simplicidade da forma apontava para o novo formato escandaloso da cultura, dizendo: "tudo o que você deve prestar atenção é o que estou falando nessa música, é o conteúdo". O que implicava dizer "toda música produzida antes disso é somente uma embalagem de técnica e harmonia, mas vazia de conteúdos palpáveis".

Cai por terra a pretensão cada vez mais academicizada de ser artista; o interesse destes grupos era veicular idéias. Não que, sobretudo a partir dos anos 80, quando subculturas assumem um caráter niilista, houvesse alguma pretensão de que essas idéias mudassem e sensibilizassem o mainstream; pelo contrário, a voz do movimento punk e hip-hop era uma voz de repulsa, sem objetivos, sem interesse em comunicar qualquer coisa. A mensagem era sempre auto-referencial, entendê-la competia somente aos próprios integrantes da subcultura, era para eles que algo estava sendo dito, como reafirmação daquela identidade, como uma função fática da linguagem emitida em unisono constituindo um organismo único e articulado.

Por se tratar sobretudo de grupos de jovens em formação de suas identidades, toda e qualquer tendência subcultural era rapidamente absorvida pela indústria fonográfica mainstream e revertida em um formato pop mais acessível (menos escandaloso): o new wave é o caso clássico de apropriação mercadológica da subcultura e estética que se formava no punk inglês, alemão e americano. A invés de viverem em squats e brigarem de faca na rua (retrato do punk dos anos 80), os ídolos new wave iria usar roupas coloridas e cabelos bagunçados, como desajeitados simulacros maquiados frente às câmeras. E a partir daí começa uma tendência do underground renovar seus códigos a cada instante que estes fossem absorvidos pelo popular; essa 'forma de despistar' a indústria fonográfica era a força resistente à rasteirice e yuppieficação da música popular que interpretava estes grupos iniciais como meras estéticas experimentais, e não pessoas interligadas e unidas sob determinados preceitos comungados e definidos de acordo com contexto e visão de mundo.

A queda do conceito de banda 'cult' ocorre mais ou menos no mesmo momento e nos liga diretamente ao problema que o underground começa a enfrentar nos 80: a banda cult é aquela que constrói seu sucesso sobre a adoração (culto) de seus fãs, cativados pela habilidade e originalidade da banda, ao invés de terem seu sucesso garantido por seguirem um modelo pré-determinado do sucesso. Lembremos que a banda cult não é a underground; bandas no contexto underground surgem de seus contextos, são parcialmente moldadas pelas idéias e estética do grupo, seus membros são partipantes ativos do grupo, etc. O cult é o definidor de tendência externas a eles; digamos que ele seja apenas um feliz ocorrência.

Vamos colocar o exemplo dos Beatles, Rolling Stones, Black Sabbath, Led Zepellin, Pink Floyd, The Grateful Dead, Radiohead como as maiores bandas cult do rock: antes delas não havia nada igual. Necessariamente elas surgiram num ambiente onde nada de muito autêntico surgia, e supostamente "salvaram a temporada" com suas aparições inovadoras, reconfigurando o estilo no qual se inserem. São elas as criadoras de tendências por excelência, sendo seguidas por milhares de outos grupos de imitadores até que é criado um ambiente de estagnação criativa novamente, aguardando para outra banda cult surgir e "salvar o rock'n'roll da mesmice geral".

Eu utilizei linguagem de jornalismo fonográfico no parágrafo acima justamente porque bandas cults são o foco dessa mídia. O culto é em partes impulsionado por uma mídia bajuladora - jornalistas fonográficos são bajuladores por excelência, os jesters da cultura atual - comprada pelos investidores por detrás de bandas cult. Minha sugestão aqui é de que a primeira grande contradição inerente ao fenômeno do cult se constitui da seguinte forma: o que torna a banda X e Y cults é, antes de talento e inovação, sua mera presença; a fortunada ocasião de estar sendo exposta e financiada por grandes gravadoras produz o sucesso por si só. Desnecessário lembrar a quantidade de material gráfico e exposição midiática que envolve a criação de um culto em torno de uma banda. O sucesso do cult é em grande partes fabricado e consumido por um público que escuta postêrs, vídeo-clipes, entrevistas e revistas apinhadas de fotos de seus ídolos... aqui a tese adorniana da "queda da audição" é extrapolada; não só determinada categoria de música leva à decadência da sensibilidade musical, mas à total depuração da audição neste caso; aprecia-se música com os olhos da mesma forma que se pensa com os ouvidos (isto é, opiniões vêm do "ouvir dizer"). (ver. Adorno, Theodor. Prismas: Ensaios de Crítica Cultural).

O cult se apunhala pelas costas e atinge sua consumação quando a receita desse fenômeno é descoberta e agora toda banda pode repetir o efeito de ser cult. De boy bands a Slipknot; todas a partir de um momento são vendidas através da estratégia que antes só se aplicava a poucas bandas que pretensamente 'revolucionaram' sua época. O próprio modelo de inovar se tornou um mecanismo viciado. Viciado no sentido em que o surgimento de uma banda cult por temporada parece revelar que todo esse culto ao redor da música alternativa tem como matéria-prima e novo e autêntico que é, paradoxalmente, um mesmo que só volta com embalagem diferente, mais um apunhado de técnicas publicitárias e estratégias de marketing. Assim como uma extrapolação dessa tendência seria o fato de que não se ouve mais as bandas, uma segunda extrapolação poderia ser colocada da seguinte forma: músicas não produzem mais nada relativo à banda. São especialistas dentro de salas empoeiradas nas grandes empresas fonográficas que sintetizam o culto em torno das bandas, eles sabem o que os consumidores querem ver e geram apelos para essas tendências, criam inovações musicais e visuais do próximo sucesso. De forma que houve uma mescla de culto e simplesmente sucesso de uma música em função de sua adequação à tradição. Hoje My Chemical Romance pode possuir uma legião de fãs que vestem suas idumentárias e atitudes em função de um culto criado por apelo estético. O mainstream atualmente necessariamente vai ser cult, porque cult é a única coisa que vende hoje; ele em si virou o 'novo' que, no fundo, nunca muda.

Este é o momento de união do mainstream com o cult. Mas que isso, o abismo que dividia underground e mainstream parece ser agora uma linha tênue. Vimos desde de os anos 50 (com Elvis), que as ansiedades de grupos de jovens de mudar sua época passou a tomar forma e força através de seu ídolo. De certa forma a cultura desde os anos 50 tem um forte valor imagético; ainda que temos ideais radicais representando um movimento cultural, digamos o rock'n'roll, isso não significaria nada para muitas pessoas se não houvesse o ídolo dançando sensualmente e mostrando toda uma imagem que aquela juventude desejava para si. Ele serviu como personificação desses ideais de liberação sexual e hedonismo na América pós-guerra, desde então ideais e imagem caminharam juntos. Os ideais provocam as mudanças, mas são veiculados e espalham pela sociedade via poder de sedução (ou sugestão) da imagem. A imagem não provoca absolutamente nada sem o ideal acoplado em si, funciona como signo vazio correndo solto sem freios.

Considerando isso, de que forma a imagem engoliu o ideal e passou a correr solta como valor por si só? Eu já estou fazendo uma afirmação com essa pergunta, e no decorrer deste ensaio eu pretendo dar provas suficientes para ela; a tese geral é que a imagem virou um valor maior que os ideais; de que não há sociabilidade e real comunicação de idéias práticas através de grupos culturais musicais, seja de seus representantes (os músicos) para o público, ou do público entre si.

O mainstream e o underground se aproximam pela primeira vez em função da dissolução do ideal. O que define a diferença do mainstream pro underground hoje? Meu palpite é: Maior sucesso de vendas do primeiro. O que quer dizer que o underground é somente uma versão em falência do mainstream, são variações de uma mesma coisa, que é música popular contemporânea.

Eu só pretendo, em primeiro lugar, defender como o contexto subcultural hoje é completamente diferente do que era nos anos 50, 60, 70, 80, em partes por conta da globalização e popularização da internet e comunicação instantânea. Outro objetivo é, com a perspicácia de um legista, dar as causas da morte que o underground gerou para si mesmo e fechar esse livro na história da cultura para sempre. Depois disso pode-se matutar sobre o que seria uma música na época pós-underground, de subculturas sem ideais -- que é a grande novidade do deathrock, da new rave, por exemplo -- baseados em seus próprios desejos por algo diferente da banalidade que nossos rádios arrotam diariamente.


II. Causas mortis: do underground à superfície


A palavra underground foi introduzida na boca de críticos de música durante os anos 60, com o surgimento dos, como já pontuamos, movimentos de renovação comportamental -- movimento hippie, movimentos estudantis europeus. O termo, que em inglês significa 'sob o solo, subsolo' remete a realidade dos movimentos de resistência política da segunda guerra mundial, cujos partidários eram obrigados a se reunirem em lugares subterrâneos para discutir suas estratégias, já que se fossem descobertos seriam mortos ou exilados. Muitos consideram Frank Zappa o responsável pela cristalização do conceito no cenário musical, ele que afirmou, a respeito de sua música em comparação aos apelos comerciais da música da época, "The mainstream comes to you, but you have to go to the underground." A importância dessa frase é que ela opõe duas forças num jogo maniqueísta: a pura intenção artística contra o filisteísmo da indústria cultural, o hip contra o bourgeois.

Fanzines (a versão do-it-yourself da mídia impressa dentro dessas culturas) eram passados de mão em mão e bandas se apresentavam para grupos seletos, pois havia um certo vínculo intransferível que se macularia caso a música e cultura underground fossem divulgadas assim como eram veiculados produtos no mainstream. O objeto de consumo do mainstream são bugigangas que todo mundo pode ter, ao passo que no underground é cultura, idéias reservadas a indivíduos seletos e, por serem seletos, especiais, significativos para seu meio, ao contrário de consumidores reificados que não significam nada como indivíduos em si para seu grupo. As bandas perderiam seu brilho se pudessem ser conhecidas e vendidas em qualquer esquina, assim como as roupas perderiam seu significado simbólico e identidade se pudessem ser usadas por qualquer um. O estigma social do grupo era seu status interno, simultaneamente.

Curiosamente, tal protecionismo dentro destes grupos acabavam por ganhar assumir forma autoritária por si própria: a informação e produção cultural desses grupos não deve ser acessível para qualquer um; hippies parecem ser a grande exceção, ainda que há um nível de auto-policiamento do grupo contra indivíduos maculados pelo autoritarismo e filisteísmo; mas uma análise superficial do início do movimento punk na Califórnia, o movimento hip-hop de Nova Iorque (entre inúmeros outros) revela um sistema de auto-defesa à contaminação do popular nestes grupos. No caso do hip-hop, por se tratar quase exclusivamente de uma resposta de uma classe social e etnia à classe média branca mainstream dos Estados Unidos, o requerimento inicial era pertencer ao substrato social de onde saíu o movimento; o passo seguinte era comprovar a capacidade de absorção do código de conduta e cultura deste grupo.

Mas o que explica o fato de hip hop ser o estilo mais difundido entre jovens europeus brancos de classe média-alta? De forma a influencia seu modo de vestir, gosto por esportes (basquetebol era ignorado na Alemanha há 20 anos), léxico, etc? Ou a variação bastardo dos punks californianos e britânicos chegar de taxi em shows? Para os entusiastas underground mais ortodoxo essa é a visão do inferno, para a mídia uma curiosidade e motivo de sorriso contido: o fato de toda ideologia radical ter morrido e ter virado uma variação do mercado de roupas e discos hoje em dia é o que analisaremos no ponto seguinte.



III. Internet

A Internet começou como uma rede criada para militares nos EUA em 1969. Porém, no momento em que ela passa a ser estendida para o público geral, ela mesma virou uma subcultura mantida por ativistas culturais e -- não por acaso -- músicos envolvidos com o underground. ("Dave Bunnell, um ativista da SDS, fundou a PC Magazine. Steve Jobs criou e promoveu a Apple como um 'computador contracultural'. John Perry Barlow, o letrista do Grateful Dead e ativista da SDS, mais tarde tornou-se co-fundador da influente Electronic Frontier Foundation"; ver R. 17) Além destes mencionados, os participantes da contracultura dos anos 60 foram os responsáveis pela popularização de computadores individuais (antes existiam computadores gigantescos, de empresas apenas), sob o rótulo de Contracultura 2.0. (um tal Mark Dery considerava o surgimento do computador individual em redes mundiais uma revolução permanente na sociedade). O principal poder da internet era a anonimidade: havia uma liberdade de expressar opiniões e visões de mundo impossível de ser controlada por autoridades, então. A estrutura da Internet permitia um fluxo de informação não-hierárquico, formação de comunidades pensantes que discutem e crescem juntas poupando uma enorme quantidade de tempo, espaço, papel e tinta. Seu caráter não-hierárquico reconstrói a noção de publicidade de certa forma -- o que convence não precisa ser o mais apelativo ou aquilo que lhe dá tickets para ir ao cinema no domingo, mas a qualidade da informação difundida, imediatamente julgada. Quando o governo americano lança uma proposta de leis para controlar o conteúdo transmitido na internet em 1996, um indivíduo chamado Barlow lança "A Declaração de Independência do Ciberespaço" (Ibid.: 18-19) para conter a repressão.

O que isso tem a ver com o underground do qual estamos falando: os ideais de ambos grupos estão diretamente ligados; um grupo (underground musical) é de certa forma o outro (os pioneiros da Internet); todos estão lutando naquele momento por novas formas de compreensão da vida, de comunicação livre entre pessoas, de quebra de barreiras como decoro social, diferenças ideológicas, etc. E ambos constituem grupos de utopistas. A Internet foi a maior Utopia do século XX; aqueles primeiros usuários criam piamente que hoje em dia as pessoas mal precisariam utilizar seus corpos físicos para interagir com o mundo (de certa forma isso é possível, vide meu vizinho). Só que chegamos em um ponto onde 'livre veiculação de informação' dos antes restritos grupos underground começa a fazer seus grupos inflarem. Todos estavam na internet explorando ideais de mudança individual, comprando personalidades e modos de vida exóticos por esporte. A Internet como braço direito da globalização não nos deixa negar -- em termos culturais -- que antigamente era impossível ver uma brasileira usando roupas de indiana e lendo Baghadav Gita. Ou uma americana earthy usando medicina natural com plantas amazônicas e não entendendo como a humanidade conseguiu viver sem aquilo durante 10000 anos. Ou, para problematizar um pouco, como um latino-americano cuja cultura padrão é carnaval e praia pode usar patches do Discharge e falar de subcultura punk 24 horas por dia. Se antes um ou outro estilo de vida estava disponível, num mundo pós-globalização eles estão disponíveis como produtos numa prateleira -- para bem ou para mal. Alguns dizem que isso se faz a custo da autenticidade das pessoas, mas o problema não é bem esse neste texto.

A Internet não só permitiu que muito mais pessoas das províncias conhecessem modos de vida diferentes, mas de certa forma ajudou que os valores envolvidos em cada grupo propriamente contextualizado fossem relativizados. É aqui que se encontra a tese de que a realidade das subculturas mudou completamente; seus ideais estão mortos, ela não depende de um contexto para existir; é um estilo de vida, não um modo de vida. Mais curioso: em função do fato de a Internet ter um poder de reunir informação e suspendê-la no tempo, movimentos do passado (já mortos) começaram a entrar no conhecimento de das gerações mais jovens e começaram a ressucitar (por terem uma estética agradável, provavelmente). Há um revival geral desses movimentos do passado.
            
Ao mesmo tempo que representava um instrumento genial para livre-veiculação de idéias, ela enfraquecia as barreiras das subculturas ao mainstream, ao público estranho aos ideais e idéias compartilhadas coletivamente, aquelas que outrora garantiram sua integridade. Um grupo enorme de jovens internautas podiam passar a ser alternativos via cliques agora. A identidade de cada pessoa dentro de seu grupo, sua produtividade cultural e capacidade de se integrar construía seu status antigamente; agora identidade é um perfil digitado que pode ser livremente criado por mim. Apelidos (agora nicknames) não são dados por um grupo de amigos, são escolhidos pela própria pessoa. Toda identidade pode ser construída numa sala escura individualmente no interior do Alaska. Não é necessária alguma vivência fora do mainstream para estar em contato direto com a coisa toda, e isso difere os anos 80 de hoje radicalmente. Se tínhamos verdadeiras ideologias (modos de vida, isto é, o jeito que eu escolhi viver minha vida) pelas quais alguns se matavam, hoje o que há é uma variedade bastante democrática de estilos de vida (diferentemente de modos de vida, estilos são simplesmente simulações, postura, pose).

No que diz respeito à natureza cult das bandas como representantes de grupos ideológicos, uma última palavra: o conhecimento de bandas e cultura marginal, algo que era antes uma questão de identidade, um vínculo de sangue intransferível entre pessoas com ideais afins, virou objeto de fetichismo de colecionadores geeks. Hoje qualquer pré-púbere do interior do Azerbaijão pode acessar os portais ultra-obscuros de Londres e se tornar underground, sem estar na cena, freqüentar o que há de orgânico e mais vivo nela, somente vestindo a identidade que é vendida e puxando 10000 mp3 de bandas obscuras. Numa época em que as pessoas imploram por uma personalidade e identidade, isso se tornou um sonho para o mainstream. Em questão de minutos passaram a vender roupas e mentalidades de todas as subculturas possíveis em shopping centers. A MTV, outrora a voz das culturas musicais, se democratizou e virou o canal mais yuppie da história da televisão.

Não há mais obscuridade, todo material divulgado em internet está disponível aos quatro ventos. Nesse sentido não há mais nexo em falar que há algo como under-ground (subterrâneo), visto que agora ele subiu à superfície. E não é só uma questão de meios materiais e da revolução nos sistemas de comunicação que providenciou isso, mas um detalhe na história das ideologias.

Não só o underground subiu às superfície, como também todos seus ideais estão mortos.


Exemplo de subcultura pastiche: Deathrock


Deathrock é o caso mais curioso deste revival que une cenas de diversos países e contextos diferentes: batcave londrino de 1982-84, oldschool goth americano de 1979, movimento pós-punk britânico de 1978-1986, Neue Deutsche Welle alemão de 1984-1990(?), Punkwave suíço de 1981, lançamentos da Industrial Records de 1970 e movimento industrial em fase inicial, movimento anarcopunk britânico ligado à Crass Records, new wave, grupos neo-avantgarde, pop, rockabilly, psychobilly, folk, gótico... Nada une essas manifestações musicais de diversas épocas além do gosto musical de um grupo de DJs californianos que no final da década de 90 lançaram todas essas bandas sob o rótulo deathrock. É a chamada colcha de retalhos cultural, o perfeito exemplo do pastiche jamesoniano que acaba por definir como as subculturas funcionam nos dias de hoje.

Não só o estilo deathrock que usamos como exemplo reunia diversos movimentos representates de ideologias e objetivos diferentes; sua proposta era não-ideológica por excelência, ou multi-ideológica relativizada. Música pela música em si, não só visuais e estéticas são incorporadas, mas ideais junto com elas. Esses ideais seriam mais reativos e estéticos eles mesmos do que princípios de ação ou parte de uma ideologia, de uma ação programática; é um estágio evoluído de niilismo. Mesmo que tentasse renovar os ideais de seus vários estilos (unir idéias de grupos anarco-punk como Rudimentary Peni e Hagar the Womb com militarismo de direita do Death in June seria no mínimo curioso), tal atitude geraria mais paradoxos: se os punks dos anos 70 e 80 em Nova Iorque viviam numa das cidades mais violentas e sem futuro do mundo, hoje eles se amontoam em apartamentos de 3500 dólares mensais em downtown Manhattan na cidade mais burguesa do mundo. Há algo de deslocado em tudo isso. Todas essas bandas foram integradas pela mercado e viraram empresas.

O paradoxo do deathrock teve continuidade inesperada: é curioso, mas o deathrock já acabou na Califórnia em menos de uma década. Casas célebres como a Ghoul School fechou, o seus idealizadores se mudaram, as bandas representantes acabaram ou se mudaram (Subtonix, Vanishing, Phantom Limbs, Cinema Strange). Quando a casa onde acontecia o legendário festival Release the Bats pegou fogo (uma espécie de Woodstock para esse público), a chama do deathrock extinguiu-se concomitantemente. Mas no Brasil (de Brasília a São Paulo) e na Alemanha (de Brandenburg a Nordhein-Westfallen) ele acaba de ser apropriado como "estética que une várias das subculturas passadas"; ele assumiu configurações e direcionamentos diferentemente e continua a crescer mesmo depois de "morto", como cabelos e unhas crescem em cadáveres por algum tempo. Esse caso só exemplifica como certos movimentos vividos via internet aparentam ser simplesmente idéias deslocadas. Isso se continuarmos considerando subcultura como a mesma coisa que considerávamos há 20 anos atrás.

Conclusão: "O que vem depois do Underground"

A conclusão para isso tudo seria um misto de compensação de perguntas que não foram respondidas nos pontos anteriores e alguma sugestão do que sobreviveria a esse contexto onde mainstream e underground convivem sem problemas. Essa seção é fruto de debates com participantes de várias subculturas, portanto é uma complementação feita baseada no feedback recebido até agora do restante do texto.

Antes de tudo, tudo o que eu tratei aqui é diretamente ligado não à música underground, mas ao underground como fenômeno social. Foi uma confusão comum nos debates desenvolvidos para sanar essa questão. Não faz sentido que uma configuração de padrões específicos que definem certo estilo que música pode morrer ou não; somente seu desuso e esquecimento pode levar a isso. Para fins de análise não há interesse nesse tipo de ninharia; enquanto for possível ouvir uma fita do Sex Pistols haverá música punk... mas o mesmo é verdadeiro para subcultura punk?

Subculturas não surgiram a fim de suportar aleatoriamente um estilo musical específico. Não existem punks para que o estilo 3-acordes viesse pra substituir tudo o que veio antes. Esse é o maior reducionismo que pode ser atribuído ao underground, que é uma forma cultura com contexto e identidade.
A crise do underground pode ser explicada justamente do desvanecimento dessa identidade e sua redução a uma mera fórmula musical junto com um pacote de indumentárias e atitudes que eu tenho que vestir para ser do grupo: o contexto deixa de ser necessário num mundo onde tudo é atemporal na internet e cenas (sem contexto) podem ser reativadas em comunidades virtuais de geeks e, se ele é levado em consideração, suas condições de existência se revelam como idéias fora do lugar.

(a). Um problema com a definição corrente do que é underground

Talvez seja importante reforçar a definição do que é underground. Nas definições que combateram a minha no ponto I, uma das mais problemáticas foram que o "underground [é algo que] nega o mainstream [...] por uma série de [...] fatores que incluem gosto e linguagem", como se fosse uma variante comportamental do mainstream, que por sua vez funciona como um estado normal de coisas, a neutralidade das opiniões da grande massa. Essa concepção absurda supõe que underground é algo constante na história da cultura, há uma confusão do que é 'sociedade paralela' com 'underground'. Ao contrário, underground é produto de uma configuração social específica.

            (a.1). Diferença de underground e sociedade paralela

Não existiu underground musical como grupos de jovens ativistas lutando por ideais no século XIX, por exemplo; alguém poderia citar os Stürmer-und-Dränger alemães como um proto-underground. Há uma diferença enorme entre sociedades paralelas antigas (essa que eu dei como exemplo, grupos artísticos, piratas, salteadores, ciganos) com a nova realidade de sociedades paralelas, o underground. Os grupos citados lutavam contra padrões artísticos antigos, defendiam ideais políticos contra a aristocracia da época, além de proporem um novo modelo comportamental.

Underground não é só uma sociedade paralela, uma cultura estrangeira em seu território, um desvio da opinião comum, mas uma alternativa à destruição da cultura pela indústria cultural, um fenômeno pós-democracia e capitalismo neoliberal, algo que tomou forma só no século XX. A atitude dos alemães do Sturm und Drang não tem muito a ver com reificação ou comodificação da cultura, é uma luta política e combate a valores da velha sociedade. Antes havia opressão de uma força política bem clara; hoje da Indústria Cultural, um complexo de instituições e formas tradicionais que cultiva necessidades falsas nos indíviduos abaixo de sua influência, estandartiza bem culturais para as massas dentro de uma estratégia de controle, com um objetivo de passivizá-las dentro de um contexto democrático e capitalista: "Todos são livres para dançar e se deleitarem, assim como eles foram postos em liberdade, desde a neutralização histórica da religião, para se filiarem a qualquer das inumeráveis seitas. Mas liberdade para escolher uma ideologia - desde que ideologia sempre reflete uma coerção econômica - em todo lugar mostra-se ser liberdade para escolher aquilo que é sempre o mesmo." (T.W.Adorno & M.Horkheimer, "Enlightenment as Mass Deception" in: Dialects of Enlightenment, 1944)

Isso pra exemplificar como o contexto de grupos paralelos à sociedade antiga é totalmente diferente. Se as premissas e ideais que o underground buscam, como apontei atrás, forem lembrados, você verá que eles justamente lutam contra burocratização da vida (através de espontaneidade, vida sem tempo morto), busca por utopias numa realidade totalmente tecnicista e posta em atividades repetitivas (trabalho-lazer-família-religião são os pilares da repetição entediante), busca de uma cultura transfiguradora e interação social real. Além disso, ele tenta recuperar a exercício da vontade individual, lutar contra qualquer forma de coerção daquilo que eu acho que é a minha vontade (o que explica o anti-consumismo, negação de formas padronizadas de crenças comum a grupos underground). Todos essas são premissas do underground: ilhar-se em um modo de vida alheio ao do mundo, e não tentar mudar o mundo.


        (a.2). Diferença de mainstream e estado comum de coisas

Além disso essa visão é totalmente acrítica ao imaginar que o mainstream é simplesmente um estado comum de coisas, onde a cultura espelha a sociedade. Essa visão não é só pessimista, por afirmar em seguida que o mainstream, o poço de banalidade e rasteirice intelectual, reflete o estado comum das pessoas.
O mainstream, ao contrário, é arquitetado pela ideologia dominante de sua época; ele é a construção da normalidade. Sua grande vitória se dá quando os indivíduos crêem piamente que o estado natural de coisas é aquele definido pelo mainstream, que ele é um conjunto de tendências puramente humanas que constituem um elemento dentro da ordem social.

Não há cultura que tenha sido criada aleatoriamente, sem uma intencionalidade por trás. Toda cultura é um conjunto de pré-conceitualizações e postulados fechados que moldam seu esqueleto; assim o mainstream necessariamente segue o interesse de quem o sintentizou na passagem do século XX. Considerando que quem define o formato da cultura não é mais da camada intelectual, como era no século XIX, mas a camada economicamente abastada, vários elementos de manutenção deles no status de elite passam a ser facilmente observáveis na análise da cultura mainstream. O ideário econômico no mainstream é claro: a música que vende mais é a de maior qualidade; grandes produções geram grandes vendas (como uma bola de neve); o grande sucesso, simplesmente por ser divulgado como 'grande sucesso', contagiará mais e mais ouvintes, que estão interessados somente na eficácia econômica das músicas, de uma forma indireta.
Porque os hits musicais desaparecem depois de meses? Porque produtos não podem parar em sua categoria, o sistema em si sobrevive através de um fluxo de competitividade e renovação de produtos inúteis para que os consumidores não parem de comprar. Como acontece com produtos em geral, hits não foram criados para saciar uma necessidade social de cultura (como propõe a economia clássica Weberiana): se fosse assim, um só hit saciaria essa "necessidade" dos ouvintes. Eles em si geram um apelo para serem ouvidos, para serem foco de interesse.

Em suma, eu não estou lidando com a "substância underground", o "ente underground", mas como um sistema de interação social que funciona dentro da sociedade, como uma cultura delineada rastejante para longe dela – enfim, como sub-cultura. O underground surgiu sim como uma resposta a uma cultura cujas rédeas estão nas mãos de uma camada filistéia, movida por motivos puramente econômicos, que age via imposição de desejos e da exploração da sentimentalidade boçal dos ouvintes. O underground visa funcionar como reativação de energias adormecidas, de ideais coletivos que recuperariam certa alma e atitudes não-hipócritas, humanas, a coragem de provocar conflitos em um mundo onde pessoas agem como um rebanho obediente e pacífico. Em teoria soa até bonito, mas há um problema nisso tudo.

(b). Um problema com a definição corrente do que é mainstream

O ponto é que o mainstream também seus ideais. Em geral críticos sociais pensam o mainstream, ou sociedade de consumo, ou Controle - sejá lá o nome que você queira dar pra isso - como uma força malévola contra qualquer desenvolvimento humano, cujos manipuladores e empresários de alto-escalão são movidos por desejos malignos de dominação e destruição de qualquer resquício de vivacidade nas massas. Seus ideais são a ideologia corrente: o materialismo, progressismo técnico (crença de que aumentando a produção tecnológica a sociedade se aperfeiçoará em todos os sentidos), cientificismo.
Um ideal identificável e espelhado em boa parte da classe média é o ideal de bem-estar material: aquele que diz que é capaz gerar contentamento através de bugigangas que facilitam a vida de quem as consume. Teorizadores da ciência economia explicam o surgimento de cada bem de consumo através deste argumento: a sociedade põe nas mãos de inventores o papel de criarem produtos milagrosos visando suprir uma necessidade social ou facilitar sua locomoção, nutrição, diversão, organização, etc.

Esse ideal, como sabemos, é uma farsa. Uma sociedade não pede dez mil variedades de computadores, tênis, ônibus, apenas uma que realmente sacie uma necessidade social. Mais que isso, um telefone que entra na internet, frita ovo e incinera pessoas com laser não é bem algo advindo de uma necessidade social. O fluxo de capital necessário para manter o mercado funcionando gerou a necessidade de criar produtos auto-destrutivos, abaixar na qualidade para garantir a compra do mesmo produto no próximo ano; tudo isso é calculado por agentes.

Todo o mecanismo é supostamente a manutenção da ordem. Só que pense nisso quando a gente sai do campo de mercadorias físicas e começa a lidar com o fluxo de idéias vendidas: as idéias são fabricação de consenso, de certezas para vida, e sua qualidade é descartável.
A gente vê discursos da sociedade dos anos 50, de uma geração que cria piamente que progresso técnico (tecnologia) era sinônimo de melhora na humanidade como um todo, e em prática isso soa menos ridículo para as massas do que deveria até hoje.

Como o underground caiu nisso: quando primeiro caiu no domínio público e virou a mercadoria - idéia sendo vendida nas prateleiras do Wal-Mart. A qualidade de seu discurso, temática, ênfase já são incorporados - o que na língua inglesa se entende por took for granted - na medida em que o indivíduo se integra nessas comunidades. O caráter espetacular de subculturas que lutam contra a massificação de idéias, contra a libertação de grades rígidas de comportamento social não é nada além de uma segunda massificação de idéias compartilhada por um grupo menor. Mesmo que seus ideais políticos não existam, que o underground hoje se resuma a aglutinação de pessoas com interesses musicais em comum. Seu princípio de aglutinação depende de um compartilhamento que se dá às custas da aniquilação do discurso individual. A subcultura neste ponto também se encontra sob a ideologia do hiperrealismo que dita o tal mainstream.

A reformulação da problemática é: a questão não passa a ser mais se aglutinar em subculturas, já que elas próprias são versões da ideologia corrente restritas a grupos de interesse. A tal morte dos ideais nos é útil para mostrar que as coisas sempre foram assim: tivessem as subculturas papel significativo na sociedade (como nos anos 60) ou meramente um papel representativo de imagens, seu caráter e existência deve ser contado como um aspecto da ideologia geral - do mainstream. O subcultural é uma faceta de uma cultura pluralista e hiperreal.


Apêndice #1: Morte de ideais como algo negativo? Crítica do livro “Madame Satã”
Há alguns poucos anos foi publicado um trabalho chamado “Madame Satã: O Templo do Underground dos Anos 80”, originalmente uma tese de jornalismo de ___________________. Em meio aos deslumbres e relatos sobre os mais diferentes aspectos daquele microcosmo da subcultura brasileira dos anos 80, de onde saíram inúmeras bandas do rock paulista, aquele que hoje representa nosso pós-punk (Cabine C, Akira S e as Garotas que Erraram, Azul 29, Finis Africae, Smack, Ness, ...), o autor faz uma crítica ao “hedonismo dos anos 80” da seguinte forma:

"Diferenciar-se. Fazer de si mesmo um outdoor da individualidade. Esta era a palavra de ordem para muitos. Mas, na verdade, enquanto buscavam se diferenciar, muitos jovens acabavam se aglutinando em um estilo. Logo, como já havia acontecido em décadas anteriores, as roupas passaram a servir de código que identificava tribos. Como Helena Abramo observou em seu livro "Cenas Juvenis", de 1994, o consumo de roupas passou a ser uma questão central para uma parcela da juventude urbana, marcando a sua participação no novo mercado consumidor - reflexo de uma ideologia materialista cada vez mais onipresente.
Nas décadas anteriores, havia uma facilidade em identificar estilos, já que não havia tantas tribos. Além do mais, a essência rebelde daquela juventude sessentista estava menos marcado pela roupa e mais pela postura e pela síntese de seus ideais. Nas manifestações públicas, todos se vestiam mais ou menos da mesma forma. O que os unia não era o vestuário." (___________ pegar referência, página 193).

O trecho aparece completamente deslocado no meio de um texto como estratégia para legitimar o argumento através de alguma citação sociológica. Uma citação ela própria que parece não enxergar o contexto desse hedonismo dos anos 80 em relação ao utopianismo hippie dos 60. A essência do movimento hippie não era mudança social, o que os unia não era uma visão de mudança global em rumo a um mundo melhor; eles não foram exceção de sua época materialista. A difusão e contagiamento gerado nos anos 60 pelo movimento hippie dependeu de uma veiculação absurda de imagens, de toda aquela estética própria influenciada por estética hindus (o que para os Estados Unidos da América do pós-guerra era uma cultura alienígena, no mínimo de mau gosto), um estilo de música próprio, drogas próprias, doutrinas orientais incluídas no pacote e um pacifismo a la Gandhi que simplesmente não são meramente um ideal que todos captam no ar e resolvem assumir para si espontaneamente. O que explica uma geração inteira se unir sob uma estética, uma forma de pensar, roupas de seis cores numa sociedade onde se veste de preto e branco, um posicionamento político geral (libertarianismo) e de medidas imediatas (contra guerra do Vietnã, por exemplo), gosto musical, hábitos recreativos, gírias, formas de andar e se relacionar... o que é isso senão estética, um outdoor da individualidade, convencimento via uma imagem idealizada tomada pra si, aquela do cidadão do mundo cabeça-aberta, direito, em contato com o que há de natural, ético, criativo, não-alienado que percorria aquela geração? Justamente a geração que começava a ver alienação trabalhista, os deslizes da moralidade puritana-cristã daquela sociedade, o fundamento frágil da estrutura patriarcalista em uma sociedade reconstruída em grande parte pelas mulheres (já que os homens foram para a guerra), etc! Parece que existe toda uma aura em torno da geração peace and love que ignora um pouco suas brechas, só porque a estrutura geral de seus ideais correspondem como nossa própria mentalidade globalizada, autoritariamente democrática e tolerante, pluralista e neoliberal.

Partindo dessa chave, preferimos afirmar que só com a queda dos ideais coletivos fomos enxergar que não todos é o caso que antes de nós as pessoas realmente podiam se afiliar a ideais com paixão, espontaneidade e em espírito de verdade; ao contrário, só agora podemos enxergar que elas estavam claramente envolvidas com sistemas de valor socialmente condicionado. Ideais de gerações sempre funcionam sob peer pressure. É assim que os ideais pensam através das gerações, ou pensam por elas.

No que concerne à nossa pesquisa, o tal espírito hedonista dos anos 80 (tão hedonista quanto o dos 60) corresponderia ao que restou para as subculturas sem-ideais de hoje se identificarem, perante as contradições crescentes de seu formato antigo.

O papel da indumentária: o autor menciona o uso de uma roupa que identifica o grupo da segunda forma: “como já havia acontecido em décadas anteriores, as roupas passaram a servir de código que identificava tribos”. Na verdade há alguns séculos atrás. Relatos da geração alemã do Sturm und Drang do final da década de 90 – só que de 1790 – deixam bem claro: os jovens passavam a andar de forma tida como desleixada para a época – o que, não conservadoríssima sociedade alemã de então era andar com a gola da sobrecasaca aberta. Charles Baudelaire, o famoso poeta francês que hoje é considerado numa estética pré-simbolista (seja lá o que isso significa, talvez: “que inspirou toda geração simbolista européia e brasileira que se seguia a sua morte”), foi a primeira pessoa na história a pintar o cabelo de verde – com tinta aquarela. E andar com um terno cor-de-laranja feito sob medida no meio das massas francesas apressadas e vestidas de preto e cartola, guiando uma tartaruga presa por uma coleira de prata, para quebrar o fluxo de transeuntes atrasados.

Portanto o fenômeno não é exatamente um mero produto do “sistema-capitalista-que-rege-todo-o-funcionamento-social-e-aliena-o-homem” como vários sociólogos adoram repetir em coro. Contexto social tem sim grande impacto na criação de condições materiais de interação social, mas não somos meramente peças no tabuleiro das tais forças sociais (i.e. fantasmas). Existem inúmeras motivações que podem levar a isso, e não bem nosso interesse fazer uma análise psicanalítica das motivações envolvidas em cortar um mowhawk ou colocar piercings. Todas essas análises podem ser feitas, e você vai chegar no resultado em que quiser; eu considero irrelevante uma análise que se restringe a motivações pessoais. Em um nível coletivo, vamos nos contentar com a afirmação inicial de que o uso de determinado padrão de indumentária forma parte significativa da identidade do grupo. O grupo e as interações que se faz dentro do mesmo que é parte da identidade do indivíduo; não o contrário. A roupa vem depois da integração e como um pedido de integração no grupo; variando pelos dois extremos do ridículo a razão individual de se adotam uma estética totalmente oposta àquilo que é socialmente difundido.