Luz vermelha na Amazônia
Leandro Fortes
O GLOBO ON LINE
10 de agosto de 1997A campanha dos Estados Unidos para que as Forças Armadas brasileiras entrem no combate ao narcotráfico na Região Norte não se limita mais a declarações oficiais. Documento confidencial do Centro de Inteligência do Exército (CIE), produzido há dois meses pela 2ª Seção (serviço de informações) do Comando Militar da Amazônia, mostra a pressão do Exército americano nas ações de combate ao narcotráfico na região e reacende a luz vermelha para um velho medo dos militares brasileiros, que agora têm ao seu lado o Itamaraty e a Polícia Federal: a interferência americana na Amazônia e a chamada "narcotização" das relações diplomáticas de EUA e Brasil, da mesma forma como ocorre hoje com Colômbia, Peru e Bolívia, maiores produtores de drogas do planeta. O documento critica a insistência dos militares americanos em participar do combate ao narcotráfico no território brasileiro e levanta a hipótese das tropas americanas estarem apenas interessadas em "terem livre acesso à porção brasileira da Amazônia".
A proposta americana foi apresentada mês passado numa reunião patrocinada pela DEA (a agência dos EUA de combate às drogas) em Iquitos, no Peru, da qual participaram policiais federais do Brasil, do Peru e da Colômbia.
Atualmente, 32 países da América Latina (inclusive o Brasil), do Caribe, da África e da Ásia só têm livre acesso ao mercado americano se receberem um certificado de boa conduta do Departamento de Estado e do Congresso dos EUA em relação ao combate ao narcotráfico. A Colômbia, que há dois anos não recebe esse certificado, sofre sanções comerciais e desde então não teve mais acesso a empréstimos do Governo dos EUA. O Grupo do Rio, que reúne países da América do Sul e do Caribe, manifestou-se, sem sucesso, oficialmente contra a política de certificados dos EUA na última vez em que se reuniu, em março, em Assunção.
No Itamaraty o termo "narcotização" já é de uso corrente, mas o Ministério das Relações Exteriores tem evitado usá-lo em documentos oficiais para não criar uma desnecessária área de atrito com os EUA. Segundo um diplomata que trabalha diretamente no assunto, os americanos criaram, de forma unilateral, um poderoso mecanismo para controlar as economias dos países do Terceiro Mundo. Ele lembra, por exemplo, que o México, onde quatro cartéis (Juarez, Tijuana, Sonora e Golfo) dominam o tráfico de drogas, não entrou na lista negra apenas porque o presidente Bill Clinton não achou politicamente correto incluir o vizinho.
Relatório da Polícia Federal revela que o processo de narcotização das relações diplomáticas inclui, como ocorreu na Colômbia, no Peru e na Bolívia, uma anterior militarização do combate ao narcotráfico, razão pela qual os EUA vêm sistematicamente apresentando a proposta de inclusão das Forças Armadas sul-americanas no combate direto ao narcotráfico. Os americanos, informa o relatório, têm interesse nessa militarização para, agregados às tropas brasileiras, garantir o monitoramento da Amazônia Ocidental, formada por Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia.
- Essa militarização do combate ao narcotráfico nos traria grandes problemas. Esse trabalho é uma ação essencialmente policial. O militar não é treinado para isso. É bom lembrar que as populações da Colômbia passaram a ajudar os guerrilheiros porque o Exército, no afã de combatê-los, trazia medo e destruição - afirma o delegado Mauro Spósito, superintendente da Polícia Federal em Manaus.
O documento do CIE revela que quatro oficiais do Exército americano que participaram da reunião insistiram na idéia de inserir as Forças Armadas no combate direto ao narcotráfico de forma a garantir aos militares dos EUA e aos agentes da CIA (a central de inteligência americana) tráfego livre pelas fronteiras dos países amazônicos. Segundo o documento, o Governo americano está tentando desestruturar a política de convênio das polícias dos três países para o combate ao tráfico de drogas. O documento foi enviado ao Comando de Operações Terrestres (Coter) e ao Estado-Maior do Exército, chefiado pelo general Gleuber Vieira, principal auxiliar do ministro Zenildo Lucena.
No documento consta o nome de quatro oficiais americanos que, segundo o serviço de inteligência do Exército, são os porta-vozes do Pentágono (comando central militar dos EUA) junto aos países amazônicos: os majores Dave Erchull e Ben Hadley, o capitão John McQuarry e o capitão-de-corveta Vince Campos, da Guarda Costeira. O documento traz o telefone dos quatro militares, mas nenhum deles se dispôs a atender as chamadas feitas pelo GLOBO. Um porta-voz do Comando Sul do Exército dos EUA informou que só a embaixada em Brasília poderia comentar o assunto. Contatada pelo GLOBO, a embaixada consultou o Pentágono, que informou não estar autorizado a fazer comentários sobre um documento interno do Exército brasileiro.
O general Rômulo Bini, chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, confirmou a autenticidade do documento, mas negou que haja qualquer desconfiança em relação às intenções dos americanos. Segundo ele, o Exército não deseja participar do combate direto ao narcotráfico porque, simplesmente, essa não é a missão constitucional das Forças Armadas. Segundo o general, as informações e os conceitos do documento são exclusivas do agente que as reportou, o que não pode ser entendido como uma opinião oficial.