Há um debate especial na história do Budismo no Tibete, entre Kamalasita e Han-Shang Mahayana, ao fim do qual este foi proibido de ensinar e praticar e teve que deixar o Tibete junto com seus seguidores. Han-Shang foi um sucessor da escola Chan (Zen) de Bodhidharma, do Budismo chinês. O texto que se segue é uma compilação comentada e resumida do estudo do Tulku Thondup Rinpoche (1) sobre as diversas versões e interpretações com respeito ao pensamento de Han-Shang Mahayana e tem por objetivo, ao examinar fragmentos e comentários sobre o ensinamento desse mestre chinês, alertar para as diversidades de abordagem que podem surgir aos praticantes com respeito à prática do caminho e à meditação. Após a análise do texto-base, examinam-se fragmentos do pensamento de mestres Zen históricos como Bodhidharma, Dogen, Koun Ejo, e do mestre contemporâneo Kodo Sawaki; cita-se paralelamente fragmentos de ensinamentos sobre a Natureza da Mente na tradição tibetana.
"Alguns eruditos tibetanos que refutam o dzogpa chenpo (2), alegam que este ensinamento é muito próximo ou mesclado com a visão de Han-Shang Mahayana, porque também propaga o enfoque da "iluminação instantânea" e repouso no "não-pensamento". O estudo que se segue, sobre a abordagem de Han-Shang Mahayana, está baseado em fontes tibetanas.
"Han-Shang Mahayana (chinês: Ho-shang Mo-ho-yen) foi um mestre da escola Chan do Budismo chinês, fundada por Bodhidharma no sexto século d.C. De acordo com Lobsang Chokyi Nyima (1737-1802), Bodhidharma foi o vigésimo oitavo na linhagem de transmissão da Última Essência (3) desde Kashyapa (Makakasho Daiosho no Zen japonês), o principal discípulo do Buddha."
Nub Sangye Yeshey (9° século d.C.) fez um breve relato da história de Bodhidharma: "A tradição da escola instantaneísta (Chig-Char-Ba) veio através da linhagem de Kashyapa e Dharmottara. Bodhidharma foi para a China vindo do leste da Índia, por mar. Quando chegou a Ledkug, na China, onde encontrou-se com o imperador Seu-yan-ang (4), percebeu que o imperador ainda não havia compreendido a última verdade. Assim, foi para Khar Lag-chu, onde despertou inveja de alguns monges que repetidas vezes tentaram envenená-lo, sem sucesso. Após ter transmitido seus ensinamentos a um verdadeiro discípulo (Taisso Eka), morreu na China, onde seus funerais foram então realizados. Ocorre que um mercador de nome "Un" foi a Tong na Índia e em Ramatingilaka encontrou Bodhidharma, que tinha em sua mão um pé de sandália. Um teve uma detalhada conversa com o mestre. Em seu retorno, Un relatou o que ocorrera na Índia; as pessoas abriram a tumba de Bodhidharma e encontram apenas uma sandália do par... Todos concordam que ele foi um Buddha totalmente iluminado."
De acordo com Nub San e Yeshe Ha-shan pode ter sido o sétimo na linhagem de transmissão desde Bodhidharma. As informações sobre a vida de Ha-shan são consideradas muito vagas, de qualquer forma, ele foi tido como um notável professor chinês de Budismo no Tibete, durante o reinado de Thrisong Deu-tsan (790-858 d.C.). Uma vez que Han-Shang era um seguidor da escola Instantaneísta, defrontou-se com a oposição dos seguidores dos mestres indianos, que ensinavam a iluminação gradual. Ao final foi derrotado pelo mestre indiano Kamalasita em um debate público e foi proibido de ensinar no Tibete. O grande mestre Nyingma Longchen Rabjam diz que Han-Shang Mahayana transmitiu de memória, no Tibete, muitos sutras importantes como Avatamsaka, Maha-parinirvana e Vinayagama, que haviam sido traduzidos ao chinês antes de terem sido queimados pelos muçulmanos durante a destruição do monastério de Nalanda (em Bodhgaya, Índia, local da iluminação do Buddha).
Os eruditos tradicionais tibetanos unanimemente acreditam que, em seu enfoque, Han-Shang rejeita todas as ações virtuosas como método, e ensina que a prática se resume apenas a permanecer na ausência de pensamentos. Com pequenas diferenças de palavras, os relatos tibetanos sobre o "Debate de Samye" citam que Han-Shang teria dito o seguinte: "Como tudo é criado pelos conceitos da mente, através dos carmas das ações virtuosas e não-virtuosas (processos de causalidade), a pessoa experimenta os frutos dos âmbitos superiores e inferiores, e vagueia sem rumo em Samsara. Aquele que se abstém do pensamento em sua mente, e nada faz, estará totalmente liberado de Samsara. Portanto, interrompa os pensamentos. As dez virtudes (copiar escrituras, fazer oferendas, ouvir os ensinamentos do Dharma, memorizar escrituras, ler escrituras, ensinar o Dharma, recitar escrituras e refletir sobre os significados do Dharma) são ensinados para os de intelecto inferior, de faculdades embotadas, que não têm um fluxo de carma virtuoso. Para os que previamente refinaram suas mentes e possuem intelecto aguçado, as ações virtuosas e não-virtuosas são vistas como obscuridades, uma vez que tanto as nuvens brancas como as escuras obscurecem o sol. Assim, não pensar, não conceituar, não analisar seja o que for, e a liberdade das conceituações. Essa é a iluminação repentina, o décimo estágio dos bodhisattvas, o último estágio de iluminação do caminho."
Jigmed Lingpa distingue assim a visão atribuída a Han-Shang Mahayana e a visão dzogpa chenpo: "De acordo com as suposições populares com respeito ao que teriam sido os ensinamentos e a visão de Han-Shang Mahayana, pode-se concluir que ele não teve meios de distinguir entre os conceitos mentais objetivos (Yul Sems rTog) e a completude mental sem objeto (Yul-Med Zang-Ka-Ma). Se for essa a situação, ele cai na cognição de um estado mental que não distingue entre a mente e a consciência intrínseca. Esse é um estado de extrema ignorância, semelhante ao so no profundo e inconsciência, no qual todos os pensamentos e memórias cessam. No dzogpa chenpo a sabedoria primordial sem objeto não analisa conceitos mentais objetivos (Yul Sems rTog). Todos os conceitos subsistem (Bag-La Zha) no estado de imaculada e cristalina recolecção da autoconsciência. Em sua essência não há acréscimos, decréscimos ou mudanças. Isto é repousar na visão (dGongs-Pa) da grande vastidão, livre dos extremos. Assim, não há modo de harmonizar essas duas visões."
No "Samten Migdron", um texto de Nub Sangye Yeshey (9° século d.C.), que foi um dos vinte e cinco principais discípulos de Padmasambhava, diferentes escolas são apresentadas e comentadas e a visão sobre os ensinamentos de Han-Shang é diferente:
a) | Na escola gradualista (Tsen-Men), abandona-se os quatro conceitos de características, como o conceito de natureza, de antídotos, de talidade, e de estágios atingidos, gradualmente penetrando a liberdade frente às conceituações... |
b) | Na escola instantaneísta (sTon-Mun), desde o início, sem outras alternativas, treina-se imediatamente com respeito à natureza última não-nascida... O abade Han-Shang Mahayana afirma: "Contemplem a natureza última inconcebível (ChosNyid, Dharmata em sânscrito) sem quaisquer conceitos." Não há aqui qualquer gradual, entra-se na condição de Buddha instantaneamente, desde o início. Isso é chamado de "treinamento sem treino"... Aqui, diferentemente dos praticantes Tsen-men, nada há a abandonar. A consciência intrínseca da contemplação no vazio completa as acumulações de mérito e sabedoria. Não há a necessidade de purificação, da mesma forma que não há apreensões e apegos. Todas as existências fenomenais do "eu" e dos "outros" são não-nascidas desde os tempos primordiais, e buscar "algo" que seja não-nascido é iludir a mente. Através dessa busca nunca se chegará ao grande significado. E semelhante ao oceano — que nunca será agitado pelo poder de um galo. Nessa escola é afirmado que penetra-se na natureza última (Chos-Nyid) ao deixar-se, enfim, de pensar... O gradual é ensinado para pessoas de intelecto inferior. O caminho. |
c) | De acordo com as escrituras do Mahayoga Tantra, toda a existência fenomenal é luminosa em si mesmo, como a consciência intrínseca. É a indivisibilidade das duas verdades: a luminosidade total não criada por um criador e a indivisibilidade da sabedoria primordial com a última esfera... |
d) | Atiyoga (dzogpa chenpo), a yoga extraordinária: Na talidade atingida espontaneamente, toda a existência fenomenal é primordialmente clara-radiante na vasta extensão da sabedoria primordial totalmente pura e espontaneamente surgida. Causa e resultado são aperfeiçoados sem buscá-los separadamente (ou sem esforços grosseiros; Ril Ma-btsal-Bar Lhun-Gyis rDzogs-Pa). |
Ao final, Thondu Rinpoche conclui: "Se Han-Shang Mahayana ensinou
permanecer na mera ausência de pensamentos (como interpretado por
eruditos tibetanos como Ba, Buton e Tsuglag Threngwa), então não
ensinou o que os textos Mahayana e dzogpa chenpo afirmam. Se ele afirmou
(como interpreta Nub Sangye Yeshey) que, após compreender o significado
da natureza última (Chos-Nyid), deve-se sempre permanecer aí,
sem pensamentos duais, uma vez que esses pensamentos seriam apenas obstruções
que impediriam a vivência do estado de realização,
então não há conflito com os ensinamentos dzogpa chenpo,
mas essa abordagem é apenas para os que atingiram esse estágio
e não para as pessoas de mentes, vidas, emoções e
visões comuns, como muitos de nós. No Mahayana e especialmente
nos Tantras e no dzogpa chenpo, há a realização instantânea,
mas apenas para aquelas pessoas que já atingiram uma maturidade
em suas mentes, solidificaram seus carmas virtuosos e energias positivas
por meio de treinamentos anteriores nesta vida e em vidas passadas. Se
Han-Shang Maltaiana pensava assim, por que pregou publicamente seus
ensinamentos, ensinando de forma indistinta os maduros e os de intelecto
inferior?"
Entre os aspectos criticados atribuídos a Han-Shang Mahayana vamos encontrar dois grupos principais:
a) | a insuficiente compreensão do Dharma que levaria à confusão entre libertação de Samsara e supressão pura e simples da atividade mental, e |
b) | admitindo que Han-Shang possuía a compreensão completa do Dharma, seu método de prática direta da natureza última seria adequado apenas a um número muito pequeno de mentes já maduras e não deveria ser pregado indistintamente como ele teria feito. |
Com respeito ao significado da libertação de Samsara retomando o Lankavatara Sutra, texto básico de leitura e estudo recomendado e utilizado por Bodhidharma (Bodaidaruma Daiosho), vemos que o caráter geral do texto não permite a confusão com a mera supressão da atividade mental. Em uma parte Buddha Sakyamuni diz especificamente que "os iogues, ainda que entrando no estado de tranqüilização, não estão conscientes da operação da sutil energia-de-hábito no interior de si mesmos, pois pensam que entram nesse estágio pela extinção da mente discriminativa; mas isso não se dá e tão pronto retomam o contato com o mundo externo, esse readquire o mesmo sentido equivocado e condicionado de antes. A libertação é a não-operação das energias-de-hábito (carma) que produzem os sentidos condicionados invasivos de Samsara". Como é que ele chega a isso?
"Chega reconhecendo (o vazio) que esse mundo tríplice nada mais é do que a própria Mente, destituída de um ego e suas características, sem esforços, sem idas-e-vindas; que esse mundo tríplice é manifestado e imaginado como real sob a influência da energia do hábito acumulada desde tempos-sem-início pelo falso raciocínio e imaginação e com a multiplicidade de objetos e ações em íntima proximidade, e em conformidade com idéias discriminativas tais como corpo, qualidades e localizabilidade. Assim, Mahamati, o bodisatva-mahasatva adquire um entendimento inteiramente claro com respeito ao que é visto da própria Mente."
Com respeito ao vazio, ainda no Lankavatara Sutra: "Mahamati, esse é
um termo cuja natureza-própria é a imaginação.
Devido ao apego a falsa imaginação, Mahamati, nós
temos que falar de vazio, não-nascimento, não-dualidade,
e ausência-de-natureza-própria. Ao atingir a realização
interna por meio da nobre sabedoria, não há traço
de energia-de-hábito gerada por todas as concepções
errôneas. Por essa razão tu deverias te disciplinar na prática
de vazio, não-dualidade e não-natureza-própria."
Mestre Dogen (5), no Fukanzazengi, descreve a prática
de meditação Zen, o zazen; desse texto retiramos pequenos
trechos:
"Sente de forma estável em samadhi. Pense sem pensar. Como
se pensa sem pensar?
Pensando além de pensar e não-pensar... O zazen a que me refiro não é aprender meditação passo a passo, é simplesmente a porta de entrada do Dharma em direção à paz e contentamento (nirvana). E a prática de iluminação do caminho mais elevado. Praticando assim você é como um dragão na água, como um tigre na montanha. Você deve saber que o verdadeiro Dharma manifesta-se por si mesmo em zazen e que, antes de tudo, o embotamento e a distração são eliminados. Não avalie se você é inteligente ou estúpido, se é superior ou inferior, quando estiver praticando de todo o coração, esta é a verdadeira prática do Caminho. A prática-iluminação não se degrada. Fazer o esforço para praticar, isto mesmo já é a manifestação do caminho em sua vida diária. Os Buddhas e patriarcas, tanto neste como em outros mundos, preservaram o selo de Buddha dessa mesma maneira e expressaram livremente o caminho. Ainda que a seu modo, apenas sentaram e foram protegidos pelo zazen. Se você praticar a talidade (6) continuamente, você se tornará a talidade; a casa do tesouro se abrirá por si mesma e você será capaz de usá-lo como lhe for conveniente." |
"Tenho um conselho aos que sinceramente aspiram praticar. Não
se deixem levar por um particular estado mental ou por um objeto. Não
repousem no intelecto ou na sabedoria. Não levem em suas mãos
aquilo que ouviram na sala de palestras.
Coloquem seu corpo e mente firmes no Grande Komyozo (8) e nunca olhem para trás. Nem busquem a iluminação nem afastem a ilusão. Nem rejeitem o fluxo mental e nem se apeguem a pensamentos identificando-se com eles. Apenas sentem de forma calma e estável. Mesmo que oitenta e quatro mil pensamentos equivocados surjam, todos e cada um podem se tornar a Luz de prajna (pensamento não-discriminativo) se não for colocada atenção neles e simplesmente deixar que se vão. Não apenas ao sentar, mas cada passo que der é um movimento da Luz. Passo a passo, sem discriminação." "Mesmo em meio às mudanças, a Luz não é afetada. Florestas, grama, flores e folhas, seres humanos ou animais, grande ou pequeno, longo ou curto, quadrado ou redondo, todos se manifestam simultaneamente, independentemente de pensamentos discriminativos ou mudanças. A Luz ilumina por si mesma, independe do poder da mente. Desde o início a Luz não repousa. Mesmo quando os Buddhas aparecem neste universo, a Luz não aparece, quando os Buddhas entram em nirvana, a Luz não entra em nirvana. Quando você nasce a Luz não nasce, quando você morre a Luz não morre. Ela não aumenta com os Buddhas e não decresce com os seres sensoriais. Nem é confundida quando você é, e nem é iluminada se você for. Não tem posição, aparência, nome. E a essência de todos os fenômenos. Você não pode concebê-la, não pode rejeitá-la. É inatingível. Desde o céu mais elevado até o inferno mais degradado, todos os lugares são perfeitamente iluminados dessa forma. É a Luz divina, inconcebível, espiritual. Se você abrir-se e compreender o sentido profundo dessas palavras, você não precisará perguntar a mais ninguém sobre o que é verdadeiro ou falso. Desde o início esse samadhi é o dojo (local de prática de zazen), que é o oceano da condição de Buddha. Isto é zazen, é o sentar do Buddha, a prática do Buddha, fielmente transmitida. Nunca sente como os habitantes dos infernos, ou como demônios famintos, animais, espíritos hostis, seres humanos, seres celestiais (9), sravakas ou pratyekabuddhas (10). Não desperdice seu tempo. Esse é o komyozo-zanmay, a liberação inconcebível." |
Especificamente sobre a prática de zazen, falou Koun Ejo:
"O zazen permite a pessoa clarificar a base de sua mente e residir confortavelmente na natureza original. Isso é chamado revelar a natureza e a paisagem original . Zazen é entrar diretamente no oceano-da- natureza-de-Buddha e manifestar o corpo de Buddha. A mente inerentemente pura e clara torna-se presente; a luz original penetra em todas as direções. Isso nada mais é do que o "samadhi da Natureza de Buddha" (Jijuyu-zanmai) de todos os Buddhas. Se praticar isso, mesmo que por um curto intervalo, sua base mental será diretamente clarificada. Essa é a verdadeira porta do caminho do Buddha. Zazen é como voltar para casa e sentar em paz. Quando objetos ilusórios desaparecem, a mente ilusória também desaparece. Quando essa mente desaparece, a realidade imutável manifesta-se e estamos sempre claramente conscientes. Isso não é extinção, isso tampouco é atividade." |
"Sente imóvel, além dos padrões de superioridade
e inferioridade dos seres humanos. Apesar de cada um de nós ter
um carma diferente, é importante ser conduzido pelo Buddha da mesma
forma: "Abandonar corpo e mente (shinjin datsuraku) é abandonar
o egocentrismo, é acreditar no Buddha, é ser conduzido pelo
Buddha.
"Praticar zazen é tornar-se íntimo do seu próprio interior. Quando você discute com sua esposa, não percebe que foi envolvido pelo engano, mas quando senta em zazen você vê que isso foi apenas ilusão. As pessoas hoje tentam criar grupos e tornar-se membros dele; cada uma dessas pessoas está afetada por uma espécie de estupidez grupal. A criação de subgrupos e seitas é até mesmo mais representativa dessa estupidez grupal — interrompa esse tipo de estupidez grupal e torne-se o que você é solitário em zazen. O que é o verdadeiro "eu"? Em lugar de uma folha branca de papel, um céu azul brilhante; o verdadeiro "eu" é indivisível e uno com tudo. "O céu e a terra fazem oferendas. O ar, a água, plantas, animais, seres humanos; todos fazem oferendas uns aos outros. — Nós só vivemos fazendo oferendas uns aos outros. Não se trata de saber se você é ou não grato. Ofereça, a todo universo, a atitude de não ser ganancioso. Nada pode ser maior do que essa oferenda. Se você imitar Ishikawa Goemon (12) você entrará diretamente no reino dos ladrões; se você imitar Sakyamuni, sentando em zazen, você entrará diretamente no reino dos Tathagatas. A não ser que você reexamine os seres humanos sob um ponto de vista que está além da condição humana, você não poderá ver o que os seres humanos realmente são." |
Do texto "A Mente Naturalmente Liberada, a Grande Perfeição" de Longchen Rabjam (17), uma jóia de grande preciosidade, extraímos esta pequena passagem:
"A visão inteiramente pura não tem extremos nem centro.
Não pode ser apontada dizendo-se "lá está", nem há
nela qualquer distinção de altura ou largura. Transcende
eternalismo e niilismo e está livre da contaminação
dos extremos. Procurada, não é encontrada; olhada, não
é vista. Afastada está de direções e parcialidades,
e transcende todos os objetos de concepção. Não tem
pontos de vista, nem vazio, nem não-vazio. Todos os fenômenos
são primordialmente puros e iluminados; assim, é não-nascida,
inconcebível e inexprimível.
"Na última esfera pureza e impureza são naturalmente puras e os fenômenos são a grande e igual perfeição, livre dos conceitos. Uma vez que não há vínculos ou liberação, não há ir, vir ou ficar. A felicidade e sofrimento de Samsara e nirvana são semelhantes a sonhos bons e maus... "Não conceitualize sejam quais forem as aparências que venham a surgir, esses objetos são apenas reflexões da mente, são como a face e sua aparência no espelho. A mente e seus sonhos não são separados..." |
No Uttara Tantra Shastra, como explicado por Thrangu Rinpoche, toma-se o refúgio de fruição. O que significa isso? Significa que toma-se refúgio no próprio estado de Buddha e não, como no refúgio de causação, no Buddha como um mestre externo. Ou seja, como método, toma-se diretamente a prática da condição natural da mente, o próprio estado de Buddha. No Zen, como pode-se ver pelos ensinamentos dos mestres, busca-se também, como método, diretamente, o estado natural como a prática básica, o zazen. Assim, a compreensão do Zen pelos praticantes das tradições tibetanas tem a mesma dificuldade que a compreensão do método do dzogpa chenpo e Mahamudra por esses mesmos praticantes. Um aluno perguntou a Thrangu Rinpoche: "Poderia Rinpoche explicar como os cinco caminhos do veículo Mahayana se correlacionam com os cinco caminhos do Vajrayana e com as quatro iogas de Mahamudra?" Ao que Rinpoche responde: "Os cinco caminhos, sejam eles Mahayana ou Vajrayana, não possuem grandes diferenças; em ambos os casos é o mesmo princípio de progresso gradual. Entretanto, como o Mahamudra é simplesmente permanecer em repouso na condição natural, não existem de fato categorias como caminhos e níveis. Comumente, as quatro iogas começam com as práticas de shamatha e vipashyana, e culminam com não-meditação, a completa iluminação."
Esse método é em tudo semelhante ao que ocorre com os
praticantes de zazen. A diferença é que no Zen como dizem
os mestres todos, não há etapas preparatórias como
nas tradições tibetanas. Há um grande mérito
no Zen, por ser um caminho direto; é algo muito especial, milagroso
mesmo, como método, repousar, já de início, apenas
na vivência pura e simples da natureza de Buddha, sem qualquer etapa
preparatória. Quando examinamos o Zen, vemos os praticantes, os
templos, os dojos os mosteiros, sua seriedade e simplicidade, devemos nos
dar conta deste extraordinário milagre, desta grande preciosidade
e delicadeza. Isso, no entanto, pode parecer muito estreito e difícil
para os que não conseguem uma experiência proveitosa enquanto
tentam praticar o "sentar apenas" (shikantaza).
Especulativamente, talvez tenha sido essa a origem das dificuldades
de Han-Shang Mahayana tantos anos atrás. Aliás, essas
dificuldades estão historicamente presentes no Zen e podem
ser vistas no relato do próprio mestre Dogen quando, no Shobogenzo-Zuimonki,
diz que por longo tempo não pôde encontrar um verdadeiro professor
e nem mesmo um verdadeiro companheiro de esforços no Japão,
e mesmo na China, onde poucos lugares efetivamente praticavam o verdadeiro
zen (18). Essas dificuldades também podem ser
apontadas na vida do sexto patriarca do Zen na China, Hui Neng (Daikan
Eno), que, tendo encontrado seu mestre em Daiman Konin (o quinto patriarca),
após receber a transmissão de forma secreta, não pôde
permanecer no mosteiro devido ao risco de vida que corria, em função
da inveja que despertou na comunidade de 1000 monges.
Em um funil, o Zen poderia ser visto como o gargalo, juntamente com o Mahamudra e dzogpa chenpo; para os que não conseguem chegar diretamente ao gargalo e precisam ensinamentos prévios é que existe a amplidão do funil. Devido a existência desses seres, tão numerosos, Avalokiteshvara desenvolveu seus 1000 braços e o Buddha Sakyamuni deu a diversidade de seus 84 mil ensinamentos. Sua Santidade o Dalai Lama amplia essa abordagem e diz que devido a diversidade de mentes dos seres sensoriais todas as religiões são não apenas importantes e necessárias, como indispensáveis.
Quando publicou este texto pela primeira vez na revista Bodhisattva
n° 3 em 1993, Alfredo Aveline era professor, físico, praticante
Zen e presidente do Centro de Estudos Budistas de Porto Alegre. Em 1996
foi ordenado lama por sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche, sendo
o primeiro lama da linhagem Nyingma-pa ordenado no Brasil.
1. | Dzogpa Chenpo and Han-Shang Mahayana, in "The Practice of Dzogchen" (Anteriormente entitulado "Buddha Mind"), Longchen Rabjam, Tulku Thondup Rinpoche, Snow Lion, 1989, pag. .112-122. |
2. | A "Grande Perfeição", em tibetano "rDzogs-Pa Chen-Po", em sânscrito mahasandhi, é o mais profundo treinamento budista esotérico, preservado e praticado até os dias de hoje pelos seguidores da escola Nyingma (rNying-Ma) do Tibete. |
3. | sNying-Po Don-Gyi brGyud-Pa |
4. | Liang U-dhi: Wu-ti (502-550 d.C.) da dinastia Liang |
5. | Eihei Dogen Zenji (1200-1253) - Uma das maiores figuras na história do Zen. Nascido no Japão em 1200, viveu 53 anos. Dogen é também conhecido no Japão como Koso Joyo Daishi, título que recebeu do imperador do Japão. Filho de família aristocrática do período Kamakura, perdeu a mão quando tinha 7 anos de idade. Dizem alguns historiadores que ao ver a fumaça de incenso queimando ao lado do corpo da mãe, durante as cerimônias fúnebres, ele claramente se conscientizou da impermanência de tudo. Aos 13 anos de idade é ordenado monge no templo de Hiei-zan, sede da escola budista Tendai, em Kyoto, onde o mestre da escola Rinzai, Eisai Zenji, era o abade. Nessa época encontra seu companheiro de viagens, Menzan Zuiho Osho. Quando Dogen tinha 23 anos, segue com Menzan para a China onde desenvolveu a prática de zazen na escola Soto (Tsao Tung), de onde voltou após 4 anos para fundar a escola Soto no Japão. É lá que encontra seu mestre verdadeiro na figura do abade Tendo Nyojo, que passa a chamar de "Antigo Buddha". Em 1233 inaugura Koshoji, o primeiro mosteiro Soto no Japão, na cidade de Uji. Mais tarde constrói o templo de Daibutsuji, em Fukui, que em 1246 passa a se chamar Eihei-ji. A escola Soto tornou-se a maior em seu país, com 15.000 templos e 7 milhões de membros. Dogen escreveu seus ensinamentos de orientação aos discípulos, sendo sua principal obra, "Shobogenzo", o "Olho da Verdadeira Lei", considerado um clássico em termos de filosofia, religião e literatura. |
6. | Compreensão não-condicionada, natural, sem apego ou rejeição, sem dualidade, compreensão (naturalmente liberta) da forma como a inseparabilidade de manifestação e vazio. |
7. | Compilação de Komyozo-Zanmai (Samadhi of the Treasury of the Radiant Light), by Koun Ejo Zenji, in "Shikantaza", ed. Shohaku Okumura, Kyoto Soto Zen Center, 1985, Japão (Zanmai significa samadhi). Koun Ejo Zenji (1198-1280) - Nasceu em Kyoto. Foi ordenado aos 21 anos de idade como um monge Tendai. Mais tarde aprendeu o Budismo Terra-Pura com Shoku Shonin e praticou o Zen com Kakuan Shonin. Quando Eihei Dogen retornou da China, Ejo visitou-o em Kenninji. Após a fundação de Koshoji, Ejo juntou-se à Sangha. Desde essa época ele praticou como assessor direto de Dogen até a morte do mestre, quando então passou a ser o segundo abade de Eihei-ji. Ejo devotou-se a auxiliar Dogen e transmitir seus ensinamentos às gerações futuras. Komyozo-zanmai é o único trabalho escrito assinado por Ejo. |
8. | O Grande Komyozo, o Tesouro da Luz Radiante é o corpo-Dharma do Tathagata. É a mente verdadeira do "eu", a natureza-de-Buddha, assim chamada porque ali reside a Luz da sabedoria que rompe a escuridão da ignorância e ilumina a realidade. |
9. | Basicamente os seres dos seis mundos condicionados, os seja, seres que praticam mentes condicionadas. "Sentar como eles" significa praticar suas formas de condicionamento mental enquanto buscando praticar zazen. |
10. | Os "Sravakas" e "Pratyekabuddhas" praticam mantendo a visão separatista de um eu, movidos por motivação egóica. |
11. | Compilação do texto "The Dharma-words of Homeless Kodo" in "Shikantaza", ed. Shohaku Okumura, Kyoto Soto Zen Center, 1985, Japão. |
12. | Lendário caudilho japonês. |
13. | Kunkhyen Longchen Rabjam, mestre Nyingma, ver "Buddha Mind — An Anthology of Longchen Rabjam Writings on Dzogpa Chenpo" (a segunda edição, de 1996, é entitulada "The Practice of Dzogchen"), Tulku Thondup Rinpoche, Snow Lion 1989. |
14. | Lama contemporâneo, da linhagem Gelug; "Mahamudra", Lama Thubten Yeshe, Wisdom, 1985. |
15. | Ver o livro "Buddha Nature" de Thrangu Rinpoche, da linhagem Karma Kagyu, onde esses ensinamentos são apresentados e comentados. |
16. | Op. cit. pag. 69-70. |
17. | "Naturally Liberated Mind, the Great Perfection", in "Buddha Mind", op. cit.,pag.3l6. |
18. | "Dogen Zen", ed. Shohaku Okumura e Tom Writght, Kyoto Soto Zen Center, Japão, 1988. |