NAMO BUDDHAYA - NAMO DHARMAYA - NAMO SANGHAYA !

RELAÇÕES DO BUDISMO COM A ECOLOGIA
CARLOS LESSA

O Buddha foi o primeiro ecologista de que temos notícia. Entretanto, existe nas tradições budistas alguma coisa referente a temas “ecológicos”? Bem, exatamente sob o termo “ecologia”, que é uma palavra de raiz grega, não. Mas existem um conjunto de Ensinamentos que são hoje a base do pensamento “ecológico”. 
A visão ecológica budista é uma visão global, é uma visão “holística”, como se diz hoje em dia, levando em conta o homem e seu ambiente, seu mundo interno e externo. Na equação ecológica budista entram variáveis como a vida ética, o meio de vida correto ou perfeito, respeito à vida de todos os seres, autoconhecimento, dar acesso igualitário às pessoas às riquezas produzidas num país, promoção do bem-estar geral, Amor Universal, paz, organizar modelos ou unidades pequenas e descentralizadas em todos os níveis da vida, etc, etc. 
A visão ecológica que o Buddha nos legou há mais de 2500 anos, é ainda totalmente atual, pelo simples fato de que Seus Ensinamentos tratavam ontem, como hoje, de coisas básicas a todo ser humano.  Antes de ensinar uma ecologia da Natureza, o Senhor Buddha ensinou uma ecologia da Mente. Pela lógica budista é um contra-senso sair gritando pelas ruas, por exemplo, contra a derrubada de árvores na Amazônia, quando aqui mesmo ainda poluímos nosso ambiente com toneladas de lixo pelas ruas e calçadas!  O que deve mudar é a atitude interior de cada um, para haver primeiro um maior respeito e senso de responsabilidade pelo espaço em que se vive e se compartilha com o semelhante. O Budismo diz que a verdadeira Revolução é a interior - o resto vem em decorrência delaa. É inegável que sair pelas ruas protestando pelas ruas por uma causa justa tem imenso valor, mas as pessoas fazem isto movidas pelo modismo, ou pela simples raiva, ou porque é “certo”, ou porque ser ecológico é “in”. Não fazem por Compaixão e reverência por todos os seres. E é bem fácil de encontrar uma pessoa que abrace uma causa ecológica, mas que na vida real e privada viole todas as regras sensatas de boa convivência e relacionamento com os seres humanos, não-humanos e ambiente ao seu redor! 
Ecologia significa hoje a busca do equilíbrio; muito mais que o mero estudo das inter-relações entre os seres.  E hoje este equilíbrio leva em conta muito mais fatores do que no tempo do Buddha, como a banalização e generalização da pobreza; fatores políticos e tecnológicos, e até éticos.
O respeito à vida, sua preciosidade e inviolabilidade é garantido na primeira regra de conduta que todo budista deve praticar, que é : “Comprometo-me com as regras de conduta, para abster-me de destruir vidas”. Isto significa muito mais do que um simples “não matarás”. Aquele que não respeita a vida como um todo não é budista. Os Ensinamentos urgem que desenvolvamos Amor e Compaixão por todos os seres, indistintamente, sejam pessoas, animais ou plantas; seres visíveis ou invisíveis. E este Amor acaba se desenvolvendo também para com os recursos não renováveis e naturais. Um budista deve viver no mundo tocando-o de leve, de forma que não desperdiçará seus recursos naturais...
Existem diversas passagens da vida do Buddha e diversos sutras que demonstram bases de atitude que hoje chamamos ecológicas, das quais gostaria de relatar quatro.
A primeira é uma passagem da vida do Sublime, quando Ele observava um rebanho de carneiros, que avançavam lentamente, conduzidos por pastores. No rebanho havia um cordeirinho manco, ferido. O Buddha foi ter com os pastores e perguntou para onde eles estavam sendo levados. Os pastores responderam que, por ordem do rei Bimbisara, o rebanho seria levado à noite para o sacrifício, sendo imolados em honra dos deuses hindus. Na sala dos holocaustos, o Buddha viu brâmanes cantando mantras e avivando o fogo. Chegou na hora que um deles estava pronto para cortar o pescoço de uma cabra estirada. O Buddha não perdeu tempo. Avançou para eles, dizendo: “Não a deixeis ferir, ó grande Rei!”, ao mesmo tempo que libertava a cabra. E então dirigiu um sermão a todos, falando da vida que todos podem tirar mas não podem dar, mostrando que tudo que vive está ligado por um laço de parentesco. Disse também que derramar sangue, seja de quem for, não alivia em nada o efeito dos nossos erros.  Falou que, se os deuses eram realmente bons, não poderiam se comprazer com a morte de milhares; e se eram maus, não poderiam lançar para outro ser sequer o peso de um fio de cabelo dos erros que cada um deve responder individualmente. Respeito à vida dos animais é ecologia. 
O segundo ponto é que  o Buddha lutou contra as diversas tiranias que encontrou na sociedade indiana da época, como a segregação das castas, o abuso do poder da classe sacerdotal bramânica, o domínio psicológico do homem sobre o homem. Na verdade, toda tirania é afirmação do ego e do egoísmo, e o Buddha denunciou a tirania de nossas mentes subjugadas pela avidez, pela ignorância, e pelas sujeiras mentais. Como antídoto para estas coisas, Ele apresentou o autoconhecimento, a Sabedoria, o Amor  e a energia. 
Na época do Buddha, o orgulho e a tirania foram institucionalizados no sistema de castas, que não permite a mobilidade social. Uma pessoa nascia dentro de uma casta e nela morria, e infelizmente isto ainda ocorre para os indianos que não se desvencilharam desta tradição insensata. Este sistema é dito ser uma criação do deus Brahma, e tem sanção religiosa. O Buddha confrontou abertamente estas coisas, apresentando argumentos biológicos (que ninguém nasce socialmente isto ou aquilo, mas vem a tornar-se) e a teoria da origem dos reis e dos Estados (que estes surgiram como uma resposta natural à necessidade dos povos por segurança interna e externa). A motivação do Buddha era a liberação de todos os seres. Respeito à condição humana, baseada na igualdade de oportunidades é também ecologia. 
O terceiro ponto é a atitude que o Buddha e seus discípulos demonstraram para com os recursos que eles dispunham para utilizar e viver. Com relação, por exemplo, aos mantos já surrados pelo uso, eles os aproveitavam remendando, depois, recortavam em retalhos que eram utilizados indefinidamente para outros fins. Quanto à comida, eles só pegavam aquilo que poderiam comer, nunca jogavam comida fora. 
O quarto ponto está relatado no Sutra Sigalovada, onde o Buddha explica  detalhadamente os deveres entre pais e filhos; amigos, discípulos e mestres. Fala também até em como se gastar o que se ganha, quanto poupar; fala dos deveres de um cidadão e do Estado. Como o sutra é muito grande, não dá para discorrer sobre ele aqui.  O sutra, ao invés de falar de direitos, fala somente de deveres e obrigações entre diversos grupos que, quando preservados, levam à harmonia e justiça em sociedade. Se o Buddha tivesse falado em termos de “direitos”, como se faz hoje, isto só daria vazão ao egoísmo natural de uns achando-se mais no direito do que o outros. Quando cumprimos nossos deveres, os direitos do próximo e os meus são automaticamente assegurados e garantidos. A aplicação máxima dos ideais budistas pode ser encontrada na sociedade inspirada pelo imperador indiano Ashoka, que transformou a Índia de seu tempo numa potência de paz e prosperidade. Em resumo, a harmonia das relações humanas também é ecologia. 
Como o Budismo não sustenta, nem nunca sustentou a preponderância do ser humano sobre a Natureza, ele nunca deu sanção religiosa à exploração da Natureza. Até a chegada dos europeus em massa no Oriente, diversas nações já contavam com mais de mil anos de Budismo, e os europeus ainda encontraram países com florestas exuberantes e faunas preservadas. De lá para cá, a crescente influência ocidental, baseada no conceito bíblico de que toda a criação foi feita para total usufruto do homem, tornou os budistas distanciados de suas tradições espirituais e, portanto, mais relaxados na conservação de seu patrimônio, dando livre caminho para a ganância da exploração comercial da Natureza. Mas ainda existem preciosidades no Buthan e no Japão, ainda cobertos por florestas. 
Não interessa para o budista especular se o mundo foi criado por um deus ou por diversos. As teogonias são mutuamente excludentes e confusas...O que interessa para o budista genuíno é a ação. Aliás, uma das coisas que caracterizam uma pessoa como budista é se ela pratica o Ensinamento do Buddha, e não a sanção de um rito religioso como o “batismo”.  E, pensando em ação, o Buddha colocou a Ação Correta e o Meio de Vida Correto como dois itens indispensáveis da Nobre Senda Óctupla. O budista deverá evitar ganhar a vida com uma ocupação que seja nociva a si e aos demais. A subsistência correta está subjacente ao Caminho budista. O ponto de vista budista considera o trabalho como sendo tríplice em função:
1 - dar ao homem a oportunidade de utilizar e desenvolver suas habilidades;
2 -  possibilitar-lhe a superação de seu egocentrismo, unindo-se a outros em tarefas comuns; 
3 -  gerar produtos e serviços necessários a uma existência digna. 
 São infinitas as conseqüências que decorrem desta concepção. Organizar o trabalho de modo que se torne maçante, embrutecedor ou irritante, é uma atitude criminosa, que indica uma preocupação maior com os bens de produção do que com as pessoas. Na visão budista deste assunto, há dois tipos de mecanização: uma que realça a habilidade e o poder do homem, e outra que transfere o trabalho de um homem para a máquina. Ananda Coomaraswamy nos diz: “...há uma distinção entre uma máquina e uma ferramenta. Por exemplo, o tear de tapeçaria é uma ferramenta, o tear mecânico, porém, é uma máquina, e seu significado como destruidor da cultura reside no fato de executar a parte essencialmente humana do serviço”.  Assim, existe uma economia de moldes budistas, e essa economia é diferente daquela gerada pelo materialismo, já que o Budismo vê a essência da civilização na purificação do caráter humano, a que o trabalho se presta, e não na multiplicação das necessidades e dependências, que a “Segunda Onda” de Alvin Toffler - a da Era Industrial que engoliu o mundo - produz. A tônica da economia buudista é a simplicidade, o saber usar corretamente nossos recursos, em todos os níveis; é a não-violência. Segundo E.F. Schuhmacher, o maravilhoso no ponto de vista econômico budista é a racionalidade absoluta de seu modelo - meios espantosamente reduzidos, levando a resultados altamente satisfatórios.  Em termos até de ecologia da Natureza, este modelo econômico de milhares de grupos/aldeias e cidades, auto-sustentadas e interrelacionadas, em subsistência correta, é um  modelo que pode salvar o mundo da exaustão de seus recursos... 
A visão ecológica budista, então, engloba uma sábia economia ou meio de vida, pois regula nosso relacionamento com o meio ambiente, sem maltratá-lo. Temos de aprender a tocar o mundo sem deixar marcas, se possível. O mundo de hoje só tem a ganhar aplicando a economia ecológica e o meio de vida correto, como muitos setores e iniciativas particulares estão começando a fazer, ao desenvolver culturas auto-sustentáveis com o envolvimento das comunidades que habitam o mesmo espaço geográfico e social dessas culturas. Os países budistas também deveriam redescobrir esta tradição para seu próprio bem. Simplicidade e não-violência andam de mãos dadas. A violência é resultado da escalada dos desejos insatisfeitos e da ganância patrocinados pela cultura industrial que gera dependências, consome quantidades enormes de matéria-prima para produzir um supérfluo. As sociedades mais primitivas, com todo arco e flecha, talvez fossem mais inócuas do que qualquer cidade do mundo moderno. Onde erramos? 
Nossa vida diária também deve ser reflexo da sabedoria e do amor-compassivo. Devemos ter a sabedoria de utilizar do que dispomos, sem destruir, sem deteriorar condições, sem usurpar. Já dizia um antigo anúncio de tv: “Sabendo usar, não vai faltar!”. É uma grande verdade. Só para lembrar, nesse ano de 2.001, grande parte do Brasil passou por um grande racionamento de energia elétrica, e não estamos discutindo aqui se houve ou não falta de empenho dos governos em desenvolver o setor energético. Queremos ressaltar o outro lado, que é a mudança climática causada pelo homem, através das emissões de aerossóis e das derrubada de árvores, o que acaba reduzindo a quantidade de chuvas e secando nascentes...E, gostando ou não, a maioria dos brasileiros teve de desligar aparelhos domésticos e aprender a consumir menos - em suma, por força da imposição, muita gente hoje viu o quanto pode viver consumindo bem menos. O brasileiro, generalizando, aprendeu a não desperdiçar ou esbanjar energia elétrica.  O mesmo poderia fazer em relação a muitos outros recursos e coisas. 
Comemos mais do que necessitamos, enquanto outros comem de menos. Eis aí a falta de espírito ecológico: satisfazer o próprio desejo, sem pensar no quanto se destrói, no quanto se consome, na quantidade de energia gasta para produzir uma pequena coisa, às expensas de grandes quantidades de recursos e pessoas; e ainda não damos um só pensamento para quem está fora desse privilegiado clube. Segundo os Ensinamentos do Buddha, deveríamos tocar o mundo de leve, utilizando o que nos dá, fazendo por onde recuperar seus recursos renováveis. 
Se falamos somente em preservação da Natureza, esquecendo que ela começa primeiro dentro de cada um, então ela não será efetiva. E, seguindo o modelo de organização budista, quando existirem milhares de pequenas comunidades ou grupos descentralizados, trabalhando pelo mesmo ideal, será mais fácil administrar problemas; serão mais difíceis de se corromper, e mais eficazes em cumprir suas metas.