NAMO BUDDHAYA - NAMO DHARMAYA - NAMO SANGHAYA !

 O PROCESSO DA VIDA - O KARMA (I)
Tradução do capítulo “The Process of Life” do livro “Broadcasts on Buddhism”
do monge Dhammapala, por Irene Kirstler. 
"Kamma satte vibhajati yadidan hinappanitata": "O Karma faz a distinção entre as diversas categorias de seres". 
 Onde a vida em seu todo é compreendida somente como um processo insatisfatório de mudança, surgirá a pergunta natural de como acontece este processo. Se este processo não é somente mudança e insatisfação (anicca-dukkha), mas também um processo de transformações sem uma entidade para passar de mudança à mudança (anatta), será perguntado: o que é então que se transforma, o que é que sofre e passa adiante este sofrimento, o que é que prossegue ?
 Numa conferência prévia, tive a oportunidade de dizer que o Budismo não nega a individualidade do processo, mas tão somente a permanência ou eternidade de um indivíduo. No Budismo, “alma” é somente um processo de transformação contínua. Os processos individuais são diferenciados, e isto é causado pelo Karma
É dito que os seres são os donos de seus atos (kammassaka), porque quaisquer outras possessões que tenhamos não podem ser chamadas de nossas num grau tão íntimo como as ações, os atos, que produziram esta mesma existência e vida. De nada mais além da nossa ação, do nosso Karma, podemos ser chamados de donos num sentido tão absoluto, porque sobre nenhuma outra coisa temos um poder de disposição tão grande. 
Somos chamados de herdeiros dos nossos atos (kammadayada), porque na reação herdamos plenamente as conseqüências de nossas ações; assim, o que quer que sejamos e qualquer que seja a condição em que estejamos, precisamos ver nisto os efeitos de causas passadas, os frutos de sementes prévias.
É portanto da ação, do Karma, que tivemos a nossa origem (kammayoni); por isto o Karma é comparado com o útero da mãe no qual esta vida se originou. 
Estamos ligados ao Karma tão intimamente como são os laços de família (kammabandhu), que não se podem romper. 
Mas também temos no Karma a nossa maior proteção (kammatisarana), tanto que não precisamos depender de agente externo algum enquanto os nossos atos forem bons e puros.
 “Qualquer que seja a ação que eles pratiquem, seja ela nobre ou má, elas se tornarão suas heranças”. - Dasadhammasuta, Anguttara Nikayaa, 10. 
O Karma (= kamma em páli) não pode ser explicado com um só conceito, porque todas as idéias e conclusões daí derivadas estão centradas na Doutrina de Karma e dela emanam. Para que se possa entender o Karma, precisa-se primeiro estudar a mente que é responsável pela produção do mesmo, e isto é a Psicologia budista. Os efeitos dessa produção mental podem ser deduzidos em certa extensão pela razão e experiência próprias, e isto é a Lógica budista. Além disso, o Karma conduz ao renascimento, a uma existência renovada, e isto é Ontologia budista. Finalmente, o aspecto moral das ações, virtuosas ou não, deve levar à superação de todos os Karmas, e isto é a Ética budista. Deste modo vemos como uma única palavra está ligada a todos os aspectos da filosofia budista.
Quando analisamos uma unidade de pensamento(1) (cittuppada) com seus dezessete momentos de pensamento (cittakkhana), encontrar-se-ão algumas impressões mentais (manosamphassa), que são tão fracas (paritta, atiparitta), que quase não tem influência no fluxo subconsciente (bhavanga sota). Se, no entanto, uma impressão é suficientemente forte (mahanta) para deter o fluxo subconsciente, não se limitando assim a só bater nas portas perceptivas, mas forçando a entrada e arrebentando a porteira, somente então aparecerá uma percepção plena (javana), a consciência no seu sentido total. 
Aí surge a possibilidade de se formar um novo Karma. Assim, vemos que, embora  Karma queira dizer “ação” (de karoti: ele age), ele é uma ação da mente - é intenção. Aqui é formado o nosso caráter, e daí é que o Buddha chama o Karma de nossa herança, e nosso pai. Quando elementos físicos são adicionados e combinados com outros, algo novo surge dessa composição. Semelhantemente, ações psíquicas são adicionadas a resultados psíquicos prévios - vida nova, caráter novo s&atildde;o produzidos. 
Karma é, portanto, ação, ação mental; no entanto, nem toda ação da mente ou do corpo é Karma. A ação estará presente enquanto houver existência, porque a existência não é estática, mas um processo. A própria existência dos sentidos já é uma forma de atividade. Assim, como uma chama não existe sem consumir - sendo combustão e sua própria natureza, da mesma forma os sentidos não podem existir sem a atividade. 
Para compreender isto, será bom lembrar que na terminologia filosófica budista os sentidos não são considerados como meramente órgãos materiais. Cada sentido é considerado como sendo constituído por três partes: (1) a base material, (2) o objeto material e (3) a conexão apropriada. “Se o olho subjetivo está em boa forma, e se a matéria externa (a forma visual) entra em seu campo focal, mas se não há uma conexão apropriada, então o tipo de consciência correspondente (isto é, a consciência visual) não se manifesta. Mas se o olho subjetivo está em boa forma e a matéria externa entra em foco, e se também houver a ligação necessária, então a espécie correspondente de consciência se manifesta” - Majjhima Nikaya, 28.&nbssp;
Assim, se alguma destas três condições faltar, não surgirá a consciência, e não haverá atividade sensorial. É isto o que se queria dizer quando foi dito que a própria existência dos sentidos consiste na atividade. Não é apenas o contato entre o órgão subjetivo e o objeto externo que constitui a atividade. Não é o pavio mergulhado no óleo que produz a chama. Depois de analisar um poema em linhas, cada linha em palavras, cada palavra em letras, ainda assim não podemos dizer que aquelas letras compõem o poema, porque somente se agrupadas em uma determinada ordem elas formarão palavras e terão sentido; fora de ordem elas são pura tolice. De igual maneira, um indivíduo pode ser analisado em corporalidade, sensações, percepções, diferenciações e concepções. Mas o mero aglomerado desses agregados não constituiriam um processo vivente, no sentido de crescimento, de desenvolvimento, de formações cármicas. Porque até mesmo nos Arahants todos aqueles agregados estão presentes, mas neles faltam aquilo que os prende na atividade: o apego. 
Assim como a mente do poeta deu origem às letras que adquiriram vida, também o desejo congrega os agregados em ordem para trabalhar. O renascimento é efeito disto. Aquele que somente considere a formação das letras nunca será capaz de ler e compreender o poema. Assim, aqueles que somente analisam o corpo anatomicamente, ou a mente psicologicamente, nunca serão capazes de ler, compreender e solucionar o problema do Karma, isto é, da vida como sendo desejo.
Se o corpo ou a mente são concebidos como uma coisa completa em si mesma, idêntica consigo mesma, como uma entidade isolada contida em si mesma, torna-se absolutamente impossível explicar a interação de diferentes sujeitos uns sobre os outros. Enquanto o processo da vida é cortado em segmentos artificiais, cada um deles considerado como algo estático, é impossível conceber o todo como um processo no qual tudo é visto em sua conexão natural.
Enquanto você estiver preocupado em analisar individualmente os Cinco Agregados (pancakkhandha), chegamos a considerar as pessoas como mente e matéria, isoladas das outras (na ca añño). Mas as coisas se tornam diferentes a partir do momento em que não se está mais preocupado com as partes componentes, mas com o processo de seu crescimento, o Karma
Consideramos uma árvore como sendo composta de folhas, frutas, caules, galhos, casca, madeira e demais características. Estas peculiaridades fazem da árvore o que ela é; aquela árvore individual e não uma outra. Mas todas estas peculiaridades e partes componentes do indivíduo surgiram ali por um processo de crescimento; e neste processo de crescimento o indivíduo não pode mais ser isolado (na ca so). 
O Karma é um processo de ação, de ação mental; de ação mental com desejo.
Cetanam aham bhikkhave kammam vadami”. - “Eu digo, ó monges, que a ação cármica é a intenção” . 
Nestes processos de atividade da intenção, os agregados de um indivíduo não são partes de um todo, mas formas de ação, modos de “agarrar”. Sendo ação com vontade, o Karma não entra no campo da observação, exceto através de seus efeitos. Este efeito é a reação (vipaka) de ação prévia. É algo incorreto chamar esta reação de ação antiga (purana kamma) porque, se a ação é passada, não é mais ação. No entanto, até certo ponto a ação continua o seu processo na reação, a qual é inteiramente dependente daquela ação prévia.  É considerando a conexão inerente da causa e do efeito que ambos sempre pertencerão à mesma categoria. Dependendo da vantagem ou desvantagem do efeito, a sua causa é chamada de “hábil” (kusala) ou “inábil” (akusala).
Partindo do fato de que assim o Karma é sempre “hábil” ou “inábil”, deve ficar bem claro que o Karma é o oposto da sorte, com o qual é por vezes confundido. A “sorte” nada tem a ver com a moralidade, porque é um poder pré-determinante (real ou imaginário), o qual fixa o nosso destino independentemente da ação, boa ou má. A sorte interfere no trabalho da causa e do efeito - teoricamente produz resultados que não são causados pelos atos correspondentes. Sendo a sorte a negação de causa e efeito, deve ser dispensada, e portanto considerada mera ficção. 
O efeito indesejado do Karma “ruim” em certas condições não pode ser alterado, tem que ser necessariamente vivido. Tome-se como ilustração o caso de um homem que tomou emprestado 100 reais a seu patrão para poder casar-se. Acabada a festa, ele se vê incapaz de pagar a dívida. Se o patrão tiver um bom coração, talvez não confisque os seus bens, mas dirá, por exemplo, que seu empregado pode pagar-lhe com o próprio trabalho, cada dia valendo um real. Neste caso, cem dias serão necessários antes que as contas estejam quites, antes que o empregado volte a ganhar algo novamente. Durante este período não poderá ser feita nova aquisição, mas suas possessões continuam sendo suas da mesma forma. 
De modo semelhante, o Karma “ruim” pode efetuar um renascimento em tal estado de miséria que nenhuma nova ação possa mudar o rumo (até que se tenha consumado o efeito mais forte da precedente). Este efeito indesejável simplesmente tem de ser vivido, “até que o último tostão da dívida seja pago”. Quando o efeito daquela ação inábil estiver esgotado, como uma nuvem que verteu toda a sua chuva, então naturalmente, assim como a luz do sol, as boas tendências acumuladas previamente produzirão seus bons efeitos (kusala vipaka). Isto pode acontecer a qualquer momento, tão logo exista a oportunidade favorável. É este Karma acumulado (katatta kamma) que pode se tornar indefinidamente efetivo (aparapariya vedaniya kamma). 
Se, no entanto, perdesse a oportunidade de se tornar efetivo, se tornaria  Karma “morto”, improdutivo, inativo (ahosi kamma). Esta inatividade é o único meio de escapar deste ciclo repetido de renascimentos (samsara). Dada a possibilidade de existência deste Karma “improdutivo”, pode-se claramente compreender que Budismo nem é uma Lei absolutamente rígida de causa-e-efeito, aonde toda semente necessariamente tem de produzir seus frutos, nem uma predeterminação fatal, muito menos um acaso cego. 
“Existem estes três pontos de vista irracionais” - diz-nos o Anguttara Nikaya (Tikanipata, Maha Vagga 61), “que são questionados, investigados e abandonados pelos sábios;  três pontos de vista irracionais que se estabelecem com vistas à negação do Karma: (1) existem alguns que crêem que tudo é resultado dos atos de vidas anteriores; (2) existem outros que crêem que tudo é o resultado da criação de um Senhor do universo; (3) existem ainda outros que crêem que todas as coisas surgem sem  razão ou causa. Mas então, se uma pessoa se torna assassina, um ladrão, um adúltero etc, se isto fosse devido às ações passadas, ou feito pela ação e graça de um Senhor supremo, ou se isto acontecesse por mero acaso, então ela não seria responsável pela má ação cometida”.
Porque julgar alguém então, se foi “Deus quem quis”, ou se é o destino que estava escrito nas estrelas ??? Isto é puro fatalismo, que, segundo o Budismo, não existe.
O Karma é o próprio oposto de todas estas concepções irracionais, porque é ação; e de cada ação nova dependem todos os efeitos que virão a seguir. Se esta ação produz resultados - e isto depende de outras ações - estes resultados corresponderão às suas causas. Qualquer outro ponto de vista não é provado, não poderá ser provado. É ilógico, irracional e insustentável. 
O Karma evita o extremo supersticioso, por outro lado, daqueles que crêem na existência separada de alguma entidade chama de “alma”;  e o extremismo irreligioso daqueles que não acreditam na justiça moral e na retribuição” (Budismo; Prof. T.W.Rhys Davids, página 103). 
O que nós somos não é obra do acaso; tampouco é um determinismo rígido, porque isto deixaria sem explicações as diferenças nas faculdades e modos de vida das pessoas. Assim como uma lei científica, seja ela física ou biológica, claramente não é uma lei com força obrigatória, mas somente uma descrição de um modo de ação, constante enquanto dura a nossa observação, - de forma análoga, a lei do Karma não é uma  causalidade aonde toda e qualquer ação tem de produzir seu efeito. As leis são como as regras gramaticais de uma língua, que sempre tem algumas exceções; e podem se modificar com o seu tempo através do uso progressivo daquela língua. Semelhantemente, um efeito de uma certa ação não pode ser predito, porque existem tantos fatores presentes e concorrentes que podem, através de suas influências, sustentar, impedir, modificar ou até mesmo destruir totalmente o efeito. Não é causalidade, mas condicionalidade
Embora falemos da causalidade como sendo o fundamento do Budismo, não devemos tomar isto no sentido estrito demais. Assim como acontece na ciência, também na vida diária tudo está baseado na causa-e-efeito - qual seria a confusão na cozinhha se um dia o sal não salgasse mais! Ainda assim, a física moderna vê a necessidade de uma certa liberdade de ação para com o acaso ou o destino, tanto que as leis naturais não são determinadas e uniformes para cada caso individual, mas para a média dos seres. Da mesma forma, não podemos sempre falar em causação, mas antes em condição, palavra que não tem um significado tão rígido e corresponde melhor à palavra páli “paccaya” , como é usada no último livro do Abhidhamma, o Patthana, o livro da Originação Dependente. Isto lembra a teoria da incerteza ou do “caos” dos físicos modernos...
Se prestarmos atenção nas forças operativas (kicca), o Karma terá quatro divisões. 
O Karma reprodutivo ou generativo (janaka kamma) é aquela ação que atua novamente na combinação de mente e matéria (nama-rupa) ou,  em outras palavras, a planta que dá frutos, a causa que produz efeitos (vipaka). Uma vez que se reproduziu, esta espécie de Karma é perdida em seu efeito e não poderá gerar ou germinar novamente. É, por assim dizer, uma transformação, se este termo for compreendido corretamente, isto é, não no sentido de uma entidade, mas de um processo de crescimento. Assim como uma semente da qual a planta cresceu não poderá germinar novamente, porque não tem mais existência, mas vive na planta, - assim este Karma reprodutivo é exaurido em sua ação generativa. Mas, o efeito produzido pode se tornar manifesto durante períodos muito longos, e até de muitas vidas. Será sempre, no entanto, da mesma espécie que a força do Karma generativo. 
No decurso deste processo novas ações, chamadas de Karma de suporte (upatthambhaka kamma), podem manter os efeitos de ações prévias ou até mesmo intensificá-las, conduzindo assim de bom a melhor, ou de mau a pior. Por outro lado, a ação contrária (upapilaka kamma) pode interferir com a execução dos efeitos da ação reprodutiva (janaka), enfraquecendo, modificando, impedindo a sua energia potencial, tornando assim os efeitos bons menos bons, e os efeitos maus menos maus. Se esta forma de ação contrária é tão forte a ponto de aniquilar completamente os efeitos de um Karma prévio, é chamado de Karma destrutivo (upaghataka kamma). 
Esta divisão em quatro partes de acordo com as forças operativas ou da função, é a mais importante para que se tenha uma compreensão correta do Karma.  Porque, se toda ação fosse reprodutiva, não seria possível escapar de seus efeitos, e a passagem através deste ciclo de renascimentos repetidos (samsara) seria interminável.  Somente porque a ação pode contrabalançar a ação, e anular assim o resultado que seria de outro modo inevitável, a libertação é possível. 
As possibilidades de suportar, de contra-atacar, ou de aniquilar os efeitos bons ou maus de uma ação que seria normalmente reprodutiva, depende inteiramente da eficácia potencial da atividade interferente. Assim, temos quatro possibilidades de produzir efeitos cármicos (pakadana). 
O Karma pesado (garuka kamma) é aquela espécie de ação cujos efeitos não podem  ser contrabalançados. Eles são fixos quanto às suas conseqüências para bem ou para mal. Fixados em resultados bons, então, por exemplo, os Quatro Caminhos Superiores (Arya Magga) da procura do Nibbana, estabelecendo inevitavelmente a extinção de um renascimento miserável.  Fixados em resultados maus, (micchatta niyata) estão os Cinco Atos Demeritórios que encontram retribuição em um renascimento miserável sem demora, isto é, imediatamente após a desintegração dos agregados da existência (anantarika kamma). São eles: o matricídio, o parricídio, o assassinato de um santo, causar o mal a um Buddha, causar a dissidência entre os membros da Sangha. Às vezes encontramos referências como sendo um ato demeritório manter “errôneos pontos de vista”,  porque eles são em verdade uma perversão da opinião, a desconsideração de até mesmo da Lei da causalidade e da retribuição moral, e não apenas a simples descrença, a qual é resultado da falta de conhecimento. Assim, podemos ver que o Karma terá em raras ocasiões uma natureza tal que nada mais poderá influenciá-lo. 
O último pensamento no decorrer de uma vida pode decidir o rumo do renascimento que virá a seguir; portanto, ele é chamado de Karma ligado à morte (asanna). Entretanto, um pensamento dá origem a um outro pensamento -  assim como a chama põe fogo a tudo o que lhe está ao alcance - e o último pensamento de uma vida sendo normalmente extremamente fraco devido à deficiência das condições físicas sob as quais surge - a este último pensamento ao morrer faltará o poder de modificar para melhor ou para pior a situação. O problema é que criamos em vida uma consciência de ligação (patisandhi viññana) de acordo com a nossa própria natureza.  E assim acontece que este último pensamento é influenciado pelo nosso modo habitual de pensar. É claro, portanto, que este modo habitual de pensar prevalecerá quando morrermos. Esse Karma habitual (acinna) é a soma de nossas tendências para o mal ou para o bem, formado através de numerosas ações repetidas durante a nossa vida. É extremamente improvável, embora não impossível, que nas horas que antecedem à morte se possam quebrar os obstáculos dos hábitos moldados durante uma vida inteira. Mas, mesmo que isto pudesse acontecer devido à força de condições externas, como por exemplo, parentes lembrando àquele que está morrendo uma certa boa ação feita há muitos anos, isto não significa que as outras ações se tornem ineficazes. 
Aquele Karma, que não pode se expressar devido à força das circunstâncias, pode fazê-lo a qualquer hora em que as condições lhe sejam favoráveis. Até então é chamado de “Karma acumulado” (katatta). Tomemos por exemplo um avarento. Como a energia de toda a sua vida foi dirigida para o acúmulo de riquezas, ele fez da avareza seu Karma habitual (acinna). Assim, muito provavelmente, o seu último pensamento será de desejo e apego às suas possessões, e de infelicidade por não poder levar sua riqueza consigo. Se ele morrer com tais pensamentos, não pode ser esperado outro renascimento senão nos planos dos desejos insatisfeitos(2) (petayoni). Mas pode acontecer que através da interferência de parentes bondosos seus últimos pensamentos sejam dirigidos a ideais mais nobres, resultando assim num renascimento feliz. Como, no entanto, a causa deste bom renascimento foi somente seu último pensamento, os frutos deste poderão se esgotar depressa, e então o Karma habitual da avareza tomará o controle. Esta exaustão do Karma ligado à morte pode ser uma explicação para a morte de embriões e crianças, que nascem para uma vida breve. 
O contrário pode acontecer da mesma forma, caso em que o último pensamento de preocupação, por exemplo, suspende temporariamente as conseqüências naturais de uma vida muito virtuosa, como no caso da Rainha Malliká, cuja vida subsequente num estado de miséria durou apenas sete dias. 
Outros pensamentos cármicos podem se tornar efetivos somente no segundo renascimento, caso em que são denominados de “efetivos subseqüentemente” (upapajja vedaniya kamma). Se este pensamento então também não consegue uma oportunidade, torna-se inoperante (ahosi kamma). Mais fraco ainda que esta espécie é o primeiro estágio, o primeiro momento de uma unidade de pensamento (1) , que também se torna ineficaz (ahosi), a não que possa produzir um efeito dentro daquela mesma vida (dittha dhamma vedaniya kamma). O Karma que é tão forte que pode produzir um efeito em qualquer vida além dos mencionados acima, é chamado de “efetivo indefinidamente” (aparapariya vedaniya kamma). 
Corretamente classificados, o Karma se apresenta assim:
(a)  de acordo com a função (kicca):  
reprodutivo (janaka)
de suporte (upatthambhaka)
desfavorável (upapilaka)
destrutivo (upaghataka)
(b)  de acordo com a força de seus efeitos (pakadana): 
forte (garuka)
ligado à morte (asanna)
habitual (aciñña)
cumulativo (katatta)
(c)  de acordo com o tempo que leva a tomar efeito (pakakala): 
efeito nesta mesma vida (dittha dhamma vedaniya)
efeito na próxima vida (upapajja vedaniya)
efetivo indefinidamente (aparapariya vedaniya)
ineficaz (ahosi
(d)  de acordo com as esferas de seu efeito (pakatthana): 
não hábil, nas esferas dos sentidos (akusala kamavacara)
hábil, nas esferas dos sentidos (kamavacarakusala)
hábil, nas esferas dos sem-forma (arupavacarakusala)
hábil, nas esferas da forma (rupavacarakusala).
“Se alguém diz, ó monges, que um homem deve necessariamente colher de acordo com todos os seus atos, neste caso não adianta qualquer esforço feito, nem existe oportunidade para acabar com o sofrimento.  Mas se se mantém, ó monge, que aquilo que o homem colhe é o resultado de alguns de seus atos, neste caso é possível esforçar-se para obter a santidade e também para o fim do sofrimento.” 
                                                                                            -   o Buddha, Anguttara Nikaya
A reprodutividade do Karma nos conduz necessariamente ao problema do renascimento. É, de fato, um problema, porque se existe o Karma, tem de existir o renascimento também, e no entanto, não existe ser algum para ser reencarnado, de acordo com os ensinamentos de Anatta, ou “Não-eu”. Karma e Renascimento estão intimamente interligados. É justamente o conceito errôneo de acreditar numa entidade própria que dá origem ao problema, e é o processo da realidade que o resolve. O simples fato de haver a pergunta  “o que é que renasce?” , é baseada no desconhecimento do processo do Karma e da constituição do ser humano em partes agregadas e altamente coesas, mas todas perecíveis e “não-eu” , ou “não-entidades”. O Karma não é uma entidade que passa de uma vida para outra, mas é a própria vida, visto que a vida é o produto (vipaka) do Karma. Em cada passo que damos agora na idade adulta, estão também as frágeis tentativas de nossa infância; como ações, elas foram um processo que parou com o ato, mas aquele processo deu origem a outros processos, processos reais. A transformação é contínua, e não há um “eu” que fica parado, esperando morrer para pular para outra vida...
A presente realidade, que se expressa como resultado de todos os processos precedentes, carrega em sua própria ação todos os esforços que fizeram as ações prévias. Esta continuidade sem identidade, - como uma chama que se ergue, sempre nova, sendo alimentada por combustível sempre novo, e contudo sua própria existência depende do seu queimar contínuo, - esta continuidade do processo é o Karma, e esta falta de identidade é “anatta”. 
O Karma, portanto, não é uma entidade, mas um processo, uma ação, uma energia, uma força interna, que constitui o processo de ação, que faz a ação atuar, é o desejo, - à semelhança do processo de combustão, faz a chamar queimar e consome tudo o que é combustível, e assim como a simples exposição à atmosfera inicia um processo de oxidação em certos metais. Mas sabemos que uma chama não “nasce” da madeira, ou do carvão, ou da palha, porque tais materiais podem ficar empilhados por centenas de anos sem se queimarem. Eles são apenas a oportunidade dada para que a chama se mantenha. Uma chama não se origina do combustível, mas sim da fricção, e pode portanto aparecer até em materiais não combustíveis, como por exemplo, no sílex e no aço. O combustível somente dá oportunidade para a continuidade do processo. 
A aplicação desta analogia ao processo do Karma o tornará claro. A verdadeira origem para a vida não é o ato sexual entre macho e fêmea; este somente dá a oportunidade para que um Karma inicie vida nova. Assim, como o pavio, embora mergulhado e encharcado de óleo, não dará luz, a não ser que uma chama entre em contato com ele, - assim como objetos visíveis, apesar de entrarem em foco, não serão vistos pelo olho se não houver a consciência respectiva, - assim também “é da conjunção de três coisas que a concepção se dá - o ato sexual, uma mulher no período fértil e a condição cármica necessária. Se não há necessidade de geração,  não se dará a concepção”. 
(Majjhima Nikaya, 38)
Agora, esta necessidade de geração, ou melhor, de regeneração, é descrita poeticamente numa alegoria oriental como sendo um ser músico celeste (gandhabbo), que preside à concepção da criança.  É evidente que esta alegoria se refere àquela energia cármica, a qual em sua tendência natural do desejo procura adquirir uma nova matéria (forma visível) como base de seu novo processo de ação, de vida. 
Uma chama que estava queimando na cera de uma vela, pode continuar a queimar no óleo de uma lâmpada, no tecido das cortinas, na mobília do quarto, na estrutura de madeira da casa inteira. Isto não quer dizer que aquela cera tenha se transformado em óleo, tecido, ou madeira, porque estes foram somente os combustíveis que mantiveram a chama, recebendo-a passivamente. 
Uma corrente elétrica pode produzir luz numa lâmpada elétrica, ou  música em um rádio, ou movimento num ventilador e calor num aquecedor. A corrente se expressa em luz, música, movimento ou calor através dos meios adequados. De maneira semelhante, os diferentes modos de vida, assim como  as modificações constantes na vida, são expressão do Karma. Assim, num sentido absoluto, o Budismo não ensina a evolução como Darwin ensinava, embora Darwin provavelmente estivesse certo quanto à origem das espécies. Ele ensinou a evolução no sentido biológico e psicológico, isto é, ele traçou as séries originárias da matéria através das quais a vida se expressa, assim como podemos traçar a origem de uma vela à cera manufaturada pelas abelhas, sem com isto explicar como a vela se acendeu. O fogo não pode ser investigado partindo das séries de combustível dependentes das quais o processo de combustão continuou ininterrupto, e da mesma maneira a genealogia do homem não é mostrada ao se traçar a evolução do corpo nas séries de vertebrados, mesmo que isto seja provavelmente correto. É o Karma, como um processo do desejo, que dá o “impulso” , o “élan vital”, como Bergson chama. Neste processo, no entanto, não são a mente e a matéria que estão envolvidos; a sua evolução pertence a um tipo diferente. Neste processo, é a evolução do Karma que causa o renascimento (Milinda Panha, 11, 2-6), e tratando-se de uma evolução as diferentes fases de expressão deste Karma, mesmo em vidas diferentes, carregam  responsabilidade comum. 
Este processo de evolução cármica não é necessariamente progresso. O progresso sugere uma mudança sempre para melhor. Mas o processo da evolução poderia ser, no entanto, de um retrocesso ou de um progresso, porque é mudança, como também a degeneração, a deterioração. Mas mesmo no sentido físico, a decadência de um significa o crescimento de outro. A questão sempre perguntada é se é possível um ser humano renascer como animal. Do ponto de vista budista, esta pergunta implica na existência  de uma entidade humana que se transformará numa entidade animal numa vida subseqüente...
É o desejo, como força inerente da ação cármica, que tende a expressar, a perpetuar, a reproduzir. Sem esta tendência a ação não seria o Karma, não seria o desejo. Mas as ações bestiais das paixões naturalmente tenderão a produzir efeitos bestiais, e então o processo será a evolução do tipo retrocesso. As ações virtuosas e o autocontrole naturalmente tenderão a produzir efeitos benéficos, havendo “progresso”. As ações desinteressadas, de puro altruísmo, não terão tendência a se reproduzirem, e assim não se expressarão mais em efeitos. 
Quando nasce um ser, ele não é nem meramente criado, nem meramente propagado por seus pais, mas é também um produto da ação passada. Esta ação, como vontade (cetana) constitui certas tendências (sankhara), inclinações, repulsões, e gostos. Um caráter que, devido ao desejo pela vida (bhava tanha) procurará se expressar novamente; isto é a evolução do renascimento (bhava paccaya jati - a mudança condiciona o nascimento). O renascimento terá lugar aonde estas tendências cármicas encontrarem as melhores circunstâncias para se expressar, o solo mais apropriado para formar raízes novas, a atmosfera mais generosa para produzir  novos frutos. Isto poderia ser chamado de simpatias das forças cármicas. Se vier a acontecer que o útero de uma mulher, tendo há pouco recebido o esperma, estiver bem disposto física e carmicamente, poderá haver uma concepção, resultando finalmente no nascimento de uma criança, tendo algumas ou muitas das características de seus pais, não porque as herdou, mas devido às simpatias e atração de tendências cármicas semelhantes. Assim como o relâmpago de uma tempestade nunca entrará nas águas de um poço profundo, mas procurará cair no metal do condutor em cima de uma torre, porque aí se encontra sua maior atração (e menor resistência), da mesma forma as tendências de um caráter serão atraídas - simpatizarão com aquelas tendências que lhe são mais próximas ou afins. Karma procurará os pais e ambiente condizentes com ele para o novo nascimento.
Mas também pode acontecer o oposto. Quando um pensamento no momento da morte contiver ódio ou vingança, então a própria antipatia será a tendência cármica dominante que atrairá semelhantes, como pólos opostos de um ímã. 
Se no momento do ato sexual não houver atração de um Karma, então não haverá a concepção. A teoria da hereditariedade não explica porque nem todas as características do pai e da mãe não são herdadas. A explicação budista é que os pais somente apresentaram a oportunidade, mas o filho traz a sua própria herança, - o Karma - com ele na hora da concepç&atillde;o. É este terceiro fator, o Karma, que decide a concepção, ao lado do esperma e do óvulo, no renascimento. Assim, Karma é a verdadeira “seleção natural”, que luta pela existência, resultando não na sobrevivência do mais apto, mas na sobrevivência do desejo, que se reproduzirá em bom ou mau, até que o discernimento destrua aquela força reprodutiva, conduzindo-a a não renascer mais. Quando assim toda ação for aquietada, o desejo não mais poderá perturbar a paz, aonde a Roda do Renascimento não pode mais girar. A paz e a libertação da avidez, do ódio, e do engano é o Nibbana
“Muitos nascimentos atravessei no ciclo das vidas e das mortes, em vão procurei o arquiteto da casa (o eu, a “alma”). Que miséria, nascer e renascer sem fim! Conheço-te agora, oh arquiteto! Não mais construirás a casa (o corpo)! Quebradas estão as vigas (paixões), e desabou a cumeeira (ignorância). Livre está a minha mente, pois cheguei à extinção da escravidão aos desejos, o imortal Nirvana!!!” 
- o Buddha
 
Notas: 
(1) UNIDADE OU MOMENTO DE PENSAMENTO -  este assunto é extensamente tratado no Abhidharma Budista. Resumidamente, o processo de pensamento tem 17 (dezessete) “momentos” extremamente breves, tendo cada um a duração de um bilionésimo do tempo necessário para piscar um olho. Quando o Buddha dizia que a nossa vida dura o tempo de um pensamento, podemos entender por aqui o quanto ela é realmente breve. O primeiro momento é chamado de “porta de entrada”, onde um objeto se apresenta a nós. O segundo momento é chamado de “vibração”, porque aquele objeto que se apresentou  causa uma vibração ou atividade. O terceiro momento é o ponto onde há um  direcionamento ou interrupção do objeto, podendo cessar a vibração causada ou levar para o próximo momento, que é notificar a consciência de sua existência. O quinto momento é o da percepção do objeto, notificado de sua existência no momento anterior. O sexto momento é o da consciência receptiva; o sétimo, da consciência investigativa, e o oitavo o da consciência determinante, a qual reconhece o objeto identificado. O oitavo momento é seguido de 7 momentos subsequentes de consciência impulsiva, que percorrem todo o objeto. O décimo-sexto e décimo-sétimo momentos são os das consciências resultantes ou retentoras. O conjunto destes 17 momentos formam uma unidade de pensamento. Para o propósito de nossa prática, o importante é saber onde podemos interagir livremente neste processo, para melhor ou pior.
(2) PLANOS DE EXISTÊNCIA- o Buddha ensinou a existência de diversos planos de existência, resumidamente a saber: a) as esferas do sofrimento, que compreendem o mundo animal, dos espíritos famintos, dos “demônios” (asuras), e dos infernos, com todas as suas possibilidades, b) as esferas felizes, que compreendem as esferas dos desejos (mundo humano e dos devas - seres divinos), o plano da beatitude dos seres supremos com forma, e o plano da beatitude dos seres supremos sem forma.