"Kamma satte vibhajati yadidan hinappanitata": "O Karma
faz a distinção entre as diversas categorias de seres". |
Onde a vida em seu todo é compreendida somente como um
processo insatisfatório de mudança, surgirá a pergunta
natural de como acontece este processo. Se este processo não é
somente mudança e insatisfação (anicca-dukkha),
mas também um processo de transformações sem uma entidade
para passar de mudança à mudança (anatta),
será perguntado: o que é então que se transforma,
o que é que sofre e passa adiante este sofrimento, o que é
que prossegue ? |
Numa conferência prévia, tive a oportunidade de
dizer que o Budismo não nega a individualidade do processo, mas
tão somente a permanência ou eternidade de um indivíduo.
No Budismo, “alma” é somente um processo de transformação
contínua. Os processos individuais são diferenciados, e isto
é causado pelo Karma. |
É dito que os seres são os donos de seus atos (kammassaka),
porque quaisquer outras possessões que tenhamos não podem
ser chamadas de nossas num grau tão íntimo como as ações,
os atos, que produziram esta mesma existência e vida. De nada mais
além da nossa ação, do nosso Karma,
podemos ser chamados de donos num sentido tão absoluto, porque sobre
nenhuma outra coisa temos um poder de disposição tão
grande. |
Somos chamados de herdeiros dos nossos atos (kammadayada),
porque na reação herdamos plenamente as conseqüências
de nossas ações; assim, o que quer que sejamos e qualquer
que seja a condição em que estejamos, precisamos ver nisto
os efeitos de causas passadas, os frutos de sementes prévias. |
É portanto da ação, do Karma, que
tivemos a nossa origem (kammayoni); por isto o Karma
é comparado com o útero da mãe no qual esta vida se
originou. |
Estamos ligados ao Karma tão intimamente como
são os laços de família (kammabandhu),
que não se podem romper. |
Mas também temos no Karma a nossa maior proteção
(kammatisarana), tanto que não precisamos depender
de agente externo algum enquanto os nossos atos forem bons e puros. |
“Qualquer que seja a ação que eles pratiquem, seja
ela nobre ou má, elas se tornarão suas heranças”.
- Dasadhammasuta, Anguttara Nikayaa, 10. |
O Karma (= kamma em páli) não
pode ser explicado com um só conceito, porque todas as idéias
e conclusões daí derivadas estão centradas na Doutrina
de Karma e dela emanam. Para que se possa entender o Karma,
precisa-se primeiro estudar a mente que é responsável pela
produção do mesmo, e isto é a Psicologia budista.
Os efeitos dessa produção mental podem ser deduzidos em certa
extensão pela razão e experiência próprias,
e isto é a Lógica budista. Além disso, o Karma
conduz ao renascimento, a uma existência renovada, e isto é
Ontologia budista. Finalmente, o aspecto moral das ações,
virtuosas ou não, deve levar à superação de
todos os Karmas, e isto é a Ética budista.
Deste modo vemos como uma única palavra está ligada a todos
os aspectos da filosofia budista. |
Quando analisamos uma unidade de pensamento(1)
(cittuppada) com seus dezessete momentos de pensamento (cittakkhana),
encontrar-se-ão algumas impressões mentais (manosamphassa),
que são tão fracas (paritta, atiparitta), que
quase não tem influência no fluxo subconsciente (bhavanga
sota). Se, no entanto, uma impressão é suficientemente
forte (mahanta) para deter o fluxo subconsciente, não
se limitando assim a só bater nas portas perceptivas, mas forçando
a entrada e arrebentando a porteira, somente então aparecerá
uma percepção plena (javana), a consciência
no seu sentido total. |
Aí surge a possibilidade de se formar um novo Karma.
Assim, vemos que, embora Karma queira dizer “ação”
(de karoti: ele age), ele é uma ação
da mente - é intenção. Aqui é formado
o nosso caráter, e daí é que o Buddha
chama o Karma de nossa herança, e nosso pai. Quando
elementos físicos são adicionados e combinados com outros,
algo novo surge dessa composição. Semelhantemente, ações
psíquicas são adicionadas a resultados psíquicos prévios
- vida nova, caráter novo s&atildde;o produzidos. |
Karma é, portanto, ação, ação
mental; no entanto, nem toda ação da mente ou do corpo é
Karma.
A ação estará presente enquanto houver existência,
porque a existência não é estática, mas um processo.
A própria existência dos sentidos já é uma forma
de atividade. Assim, como uma chama não existe sem consumir - sendo
combustão e sua própria natureza, da mesma forma os sentidos
não podem existir sem a atividade. |
Para compreender isto, será bom lembrar que na terminologia
filosófica budista os sentidos não são considerados
como meramente órgãos materiais. Cada sentido é considerado
como sendo constituído por três partes: (1) a base material,
(2) o objeto material e (3) a conexão apropriada. “Se o olho subjetivo
está em boa forma, e se a matéria externa (a forma visual)
entra em seu campo focal, mas se não há uma conexão
apropriada, então o tipo de consciência correspondente (isto
é, a consciência visual) não se manifesta. Mas se o
olho subjetivo está em boa forma e a matéria externa entra
em foco, e se também houver a ligação necessária,
então a espécie correspondente de consciência se manifesta”
- Majjhima Nikaya, 28.&nbssp; |
Assim, se alguma destas três condições faltar,
não surgirá a consciência, e não haverá
atividade sensorial. É isto o que se queria dizer quando foi dito
que a própria existência dos sentidos consiste na atividade.
Não é apenas o contato entre o órgão subjetivo
e o objeto externo que constitui a atividade. Não é o pavio
mergulhado no óleo que produz a chama. Depois de analisar um poema
em linhas, cada linha em palavras, cada palavra em letras, ainda assim
não podemos dizer que aquelas letras compõem o poema, porque
somente se agrupadas em uma determinada ordem elas formarão palavras
e terão sentido; fora de ordem elas são pura tolice. De igual
maneira, um indivíduo pode ser analisado em corporalidade, sensações,
percepções, diferenciações e concepções.
Mas o mero aglomerado desses agregados não constituiriam um processo
vivente, no sentido de crescimento, de desenvolvimento, de formações
cármicas. Porque até mesmo nos Arahants todos
aqueles agregados estão presentes, mas neles faltam aquilo que os
prende na atividade: o apego. |
Assim como a mente do poeta deu origem às letras que adquiriram
vida, também o desejo congrega os agregados em ordem para trabalhar.
O renascimento é efeito disto. Aquele que somente considere a formação
das letras nunca será capaz de ler e compreender o poema. Assim,
aqueles que somente analisam o corpo anatomicamente, ou a mente psicologicamente,
nunca serão capazes de ler, compreender e solucionar o problema
do Karma, isto é, da vida como sendo desejo. |
Se o corpo ou a mente são concebidos como uma coisa completa
em si mesma, idêntica consigo mesma, como uma entidade isolada contida
em si mesma, torna-se absolutamente impossível explicar a interação
de diferentes sujeitos uns sobre os outros. Enquanto o processo da vida
é cortado em segmentos artificiais, cada um deles considerado como
algo estático, é impossível conceber o todo como um
processo no qual tudo é visto em sua conexão natural. |
Enquanto você estiver preocupado em analisar individualmente
os Cinco Agregados (pancakkhandha), chegamos a considerar
as pessoas como mente e matéria, isoladas das outras (na ca
añño). Mas as coisas se tornam diferentes a partir
do momento em que não se está mais preocupado com as partes
componentes, mas com o processo de seu crescimento, o Karma. |
Consideramos uma árvore como sendo composta de folhas, frutas,
caules, galhos, casca, madeira e demais características. Estas peculiaridades
fazem da árvore o que ela é; aquela árvore individual
e não uma outra. Mas todas estas peculiaridades e partes componentes
do indivíduo surgiram ali por um processo de crescimento; e neste
processo de crescimento o indivíduo não pode mais ser isolado
(na ca so). |
O Karma é um processo de ação, de
ação mental; de ação mental com desejo. |
“Cetanam aham bhikkhave kammam vadami”. - “Eu digo, ó
monges, que a ação cármica é a intenção”
. |
Nestes processos de atividade da intenção, os agregados
de um indivíduo não são partes de um todo, mas formas
de ação, modos de “agarrar”. Sendo ação com
vontade, o Karma não entra no campo da observação,
exceto através de seus efeitos. Este efeito é a reação
(vipaka) de ação prévia. É algo
incorreto chamar esta reação de ação antiga
(purana kamma) porque, se a ação é passada,
não é mais ação. No entanto, até certo
ponto a ação continua o seu processo na reação,
a qual é inteiramente dependente daquela ação prévia.
É considerando a conexão inerente da causa e do efeito que
ambos sempre pertencerão à mesma categoria. Dependendo da
vantagem ou desvantagem do efeito, a sua causa é chamada de “hábil”
(kusala) ou “inábil” (akusala). |
Partindo do fato de que assim o Karma é sempre
“hábil” ou “inábil”, deve ficar bem claro que o Karma
é o oposto da sorte, com o qual é por vezes confundido. A
“sorte” nada tem a ver com a moralidade, porque é um poder pré-determinante
(real ou imaginário), o qual fixa o nosso destino independentemente
da ação, boa ou má. A sorte interfere no trabalho
da causa e do efeito - teoricamente produz resultados que não são
causados pelos atos correspondentes. Sendo a sorte a negação
de causa e efeito, deve ser dispensada, e portanto considerada mera ficção. |
O efeito indesejado do Karma “ruim” em certas condições
não pode ser alterado, tem que ser necessariamente vivido. Tome-se
como ilustração o caso de um homem que tomou emprestado 100
reais a seu patrão para poder casar-se. Acabada a festa, ele se
vê incapaz de pagar a dívida. Se o patrão tiver um
bom coração, talvez não confisque os seus bens, mas
dirá, por exemplo, que seu empregado pode pagar-lhe com o próprio
trabalho, cada dia valendo um real. Neste caso, cem dias serão necessários
antes que as contas estejam quites, antes que o empregado volte a ganhar
algo novamente. Durante este período não poderá ser
feita nova aquisição, mas suas possessões continuam
sendo suas da mesma forma. |
De modo semelhante, o Karma “ruim” pode efetuar um renascimento
em tal estado de miséria que nenhuma nova ação possa
mudar o rumo (até que se tenha consumado o efeito mais forte da
precedente). Este efeito indesejável simplesmente tem de ser vivido,
“até que o último tostão da dívida seja pago”.
Quando o efeito daquela ação inábil estiver esgotado,
como uma nuvem que verteu toda a sua chuva, então naturalmente,
assim como a luz do sol, as boas tendências acumuladas previamente
produzirão seus bons efeitos (kusala vipaka). Isto
pode acontecer a qualquer momento, tão logo exista a oportunidade
favorável. É este Karma acumulado (katatta
kamma) que pode se tornar indefinidamente efetivo (aparapariya
vedaniya kamma). |
Se, no entanto, perdesse a oportunidade de se tornar efetivo, se tornaria
Karma “morto”, improdutivo, inativo (ahosi kamma).
Esta inatividade é o único meio de escapar deste ciclo repetido
de renascimentos (samsara). Dada a possibilidade de existência
deste Karma “improdutivo”, pode-se claramente compreender
que Budismo nem é uma Lei absolutamente rígida de causa-e-efeito,
aonde toda semente necessariamente tem de produzir seus frutos, nem uma
predeterminação fatal, muito menos um acaso cego. |
“Existem estes três pontos de vista irracionais” - diz-nos o
Anguttara
Nikaya (Tikanipata, Maha Vagga 61), “que são
questionados, investigados e abandonados pelos sábios; três
pontos de vista irracionais que se estabelecem com vistas à negação
do Karma: (1) existem alguns que crêem que tudo é
resultado dos atos de vidas anteriores; (2) existem outros que crêem
que tudo é o resultado da criação de um Senhor do
universo; (3) existem ainda outros que crêem que todas as coisas
surgem sem razão ou causa. Mas então, se uma pessoa
se torna assassina, um ladrão, um adúltero etc, se isto fosse
devido às ações passadas, ou feito pela ação
e graça de um Senhor supremo, ou se isto acontecesse por mero acaso,
então ela não seria responsável pela má
ação cometida”. |
Porque julgar alguém então, se foi “Deus quem quis”,
ou se é o destino que estava escrito nas estrelas ??? Isto é
puro fatalismo, que, segundo o Budismo, não existe. |
O Karma é o próprio oposto de todas estas
concepções irracionais, porque é ação;
e de cada ação nova dependem todos os efeitos que virão
a seguir. Se esta ação produz resultados - e isto depende
de outras ações - estes resultados corresponderão
às suas causas. Qualquer outro ponto de vista não é
provado, não poderá ser provado. É ilógico,
irracional e insustentável. |
O Karma evita o extremo supersticioso, por outro lado,
daqueles que crêem na existência separada de alguma entidade
chama de “alma”; e o extremismo irreligioso daqueles que não
acreditam na justiça moral e na retribuição” (Budismo;
Prof. T.W.Rhys Davids, página 103). |
O que nós somos não é obra do acaso; tampouco
é um determinismo rígido, porque isto deixaria sem explicações
as diferenças nas faculdades e modos de vida das pessoas. Assim
como uma lei científica, seja ela física ou biológica,
claramente não é uma lei com força obrigatória,
mas somente uma descrição de um modo de ação,
constante enquanto dura a nossa observação, - de forma análoga,
a lei do Karma não é uma causalidade
aonde toda e qualquer ação tem de produzir seu efeito. As
leis são como as regras gramaticais de uma língua, que sempre
tem algumas exceções; e podem se modificar com o seu tempo
através do uso progressivo daquela língua. Semelhantemente,
um efeito de uma certa ação não pode ser predito,
porque existem tantos fatores presentes e concorrentes que podem, através
de suas influências, sustentar, impedir, modificar ou até
mesmo destruir totalmente o efeito. Não é causalidade,
mas condicionalidade. |
Embora falemos da causalidade como sendo o fundamento do Budismo, não
devemos tomar isto no sentido estrito demais. Assim como acontece na ciência,
também na vida diária tudo está baseado na causa-e-efeito
- qual seria a confusão na cozinhha se um dia o sal não salgasse
mais! Ainda assim, a física moderna vê a necessidade de uma
certa liberdade de ação para com o acaso ou o destino, tanto
que as leis naturais não são determinadas e uniformes para
cada caso individual, mas para a média dos seres. Da mesma forma,
não podemos sempre falar em causação, mas antes
em condição, palavra que não tem um significado
tão rígido e corresponde melhor à palavra páli
“paccaya” , como é usada no último livro do
Abhidhamma,
o Patthana, o livro da Originação Dependente.
Isto lembra a teoria da incerteza ou do “caos” dos físicos modernos... |
Se prestarmos atenção nas forças operativas (kicca),
o Karma terá quatro divisões. |
O Karma reprodutivo ou generativo (janaka kamma)
é aquela ação que atua novamente na combinação
de mente e matéria (nama-rupa) ou, em outras
palavras, a planta que dá frutos, a causa que produz efeitos (vipaka).
Uma vez que se reproduziu, esta espécie de Karma é
perdida em seu efeito e não poderá gerar ou germinar novamente.
É, por assim dizer, uma transformação, se este termo
for compreendido corretamente, isto é, não no sentido de
uma entidade, mas de um processo de crescimento. Assim como uma
semente da qual a planta cresceu não poderá germinar novamente,
porque não tem mais existência, mas vive na planta, - assim
este Karma reprodutivo é exaurido em sua ação
generativa. Mas, o efeito produzido pode se tornar manifesto durante períodos
muito longos, e até de muitas vidas. Será sempre, no entanto,
da mesma espécie que a força do Karma generativo. |
No decurso deste processo novas ações, chamadas de Karma
de suporte (upatthambhaka kamma), podem manter os efeitos
de ações prévias ou até mesmo intensificá-las,
conduzindo assim de bom a melhor, ou de mau a pior. Por outro lado, a ação
contrária (upapilaka kamma) pode interferir com a
execução dos efeitos da ação reprodutiva (janaka),
enfraquecendo, modificando, impedindo a sua energia potencial, tornando
assim os efeitos bons menos bons, e os efeitos maus menos maus. Se esta
forma de ação contrária é tão forte
a ponto de aniquilar completamente os efeitos de um Karma
prévio, é chamado de Karma destrutivo (upaghataka
kamma). |
Esta divisão em quatro partes de acordo com as forças
operativas ou da função, é a mais importante para
que se tenha uma compreensão correta do Karma.
Porque, se toda ação fosse reprodutiva, não seria
possível escapar de seus efeitos, e a passagem através deste
ciclo de renascimentos repetidos (samsara) seria interminável.
Somente porque a ação pode contrabalançar a ação,
e anular assim o resultado que seria de outro modo inevitável, a
libertação é possível. |
As possibilidades de suportar, de contra-atacar, ou de aniquilar os
efeitos bons ou maus de uma ação que seria normalmente reprodutiva,
depende inteiramente da eficácia potencial da atividade interferente.
Assim, temos quatro possibilidades de produzir efeitos cármicos
(pakadana). |
O Karma pesado (garuka kamma) é
aquela espécie de ação cujos efeitos não podem
ser contrabalançados. Eles são fixos quanto às suas
conseqüências para bem ou para mal. Fixados em resultados bons,
então, por exemplo, os Quatro Caminhos Superiores (Arya Magga)
da procura do Nibbana, estabelecendo inevitavelmente a extinção
de um renascimento miserável. Fixados em resultados maus,
(micchatta niyata) estão os Cinco Atos Demeritórios
que encontram retribuição em um renascimento miserável
sem demora, isto é, imediatamente após a desintegração
dos agregados da existência (anantarika kamma). São
eles: o matricídio, o parricídio, o assassinato de um santo,
causar o mal a um Buddha, causar a dissidência entre
os membros da Sangha. Às vezes encontramos referências
como sendo um ato demeritório manter “errôneos pontos de vista”,
porque eles são em verdade uma perversão da opinião,
a desconsideração de até mesmo da Lei da causalidade
e da retribuição moral, e não apenas a simples descrença,
a qual é resultado da falta de conhecimento. Assim, podemos ver
que o Karma terá em raras ocasiões uma natureza
tal que nada mais poderá influenciá-lo. |
O último pensamento no decorrer de uma vida pode decidir o rumo
do renascimento que virá a seguir; portanto, ele é chamado
de Karma ligado à morte (asanna). Entretanto,
um pensamento dá origem a um outro pensamento - assim como
a chama põe fogo a tudo o que lhe está ao alcance - e o último
pensamento de uma vida sendo normalmente extremamente fraco devido à
deficiência das condições físicas sob as quais
surge - a este último pensamento ao morrer faltará o poder
de modificar para melhor ou para pior a situação. O problema
é que criamos em vida uma consciência de ligação
(patisandhi viññana) de acordo com a nossa
própria natureza. E assim acontece que este último
pensamento é influenciado pelo nosso modo habitual de pensar. É
claro, portanto, que este modo habitual de pensar prevalecerá quando
morrermos. Esse Karma habitual (acinna) é
a soma de nossas tendências para o mal ou para o bem, formado através
de numerosas ações repetidas durante a nossa vida. É
extremamente improvável, embora não impossível, que
nas horas que antecedem à morte se possam quebrar os obstáculos
dos hábitos moldados durante uma vida inteira. Mas, mesmo que isto
pudesse acontecer devido à força de condições
externas, como por exemplo, parentes lembrando àquele que está
morrendo uma certa boa ação feita há muitos anos,
isto não significa que as outras ações se tornem ineficazes. |
Aquele Karma, que não pode se expressar devido
à força das circunstâncias, pode fazê-lo a qualquer
hora em que as condições lhe sejam favoráveis. Até
então é chamado de “Karma acumulado” (katatta).
Tomemos por exemplo um avarento. Como a energia de toda a sua vida foi
dirigida para o acúmulo de riquezas, ele fez da avareza seu Karma
habitual (acinna). Assim, muito provavelmente, o
seu último pensamento será de desejo e apego às suas
possessões, e de infelicidade por não poder levar sua riqueza
consigo. Se ele morrer com tais pensamentos, não pode ser esperado
outro renascimento senão nos planos dos desejos insatisfeitos(2)
(petayoni). Mas pode acontecer que através da interferência
de parentes bondosos seus últimos pensamentos sejam dirigidos a
ideais mais nobres, resultando assim num renascimento feliz. Como, no entanto,
a causa deste bom renascimento foi somente seu último pensamento,
os frutos deste poderão se esgotar depressa, e então o Karma
habitual da avareza tomará o controle. Esta exaustão do Karma
ligado à morte pode ser uma explicação para a morte
de embriões e crianças, que nascem para uma vida breve. |
O contrário pode acontecer da mesma forma, caso em que o último
pensamento de preocupação, por exemplo, suspende temporariamente
as conseqüências naturais de uma vida muito virtuosa, como no
caso da Rainha Malliká, cuja vida subsequente num estado de miséria
durou apenas sete dias. |
Outros pensamentos cármicos podem se tornar efetivos somente
no segundo renascimento, caso em que são denominados de “efetivos
subseqüentemente” (upapajja vedaniya kamma). Se este
pensamento então também não consegue uma oportunidade,
torna-se inoperante (ahosi kamma). Mais fraco ainda que esta
espécie é o primeiro estágio, o primeiro momento de
uma unidade de pensamento (1) , que
também se torna ineficaz (ahosi), a não que
possa produzir um efeito dentro daquela mesma vida (dittha dhamma
vedaniya kamma). O Karma que é tão
forte que pode produzir um efeito em qualquer vida além dos mencionados
acima, é chamado de “efetivo indefinidamente” (aparapariya
vedaniya kamma). |
Corretamente classificados, o Karma se apresenta assim:
(a) de acordo com a função (kicca):
 |
reprodutivo (janaka) |
 |
de suporte (upatthambhaka) |
 |
desfavorável (upapilaka) |
 |
destrutivo (upaghataka) |
|
(b) de acordo com a força de seus efeitos (pakadana):
 |
forte (garuka) |
 |
ligado à morte (asanna) |
 |
habitual (aciñña) |
 |
cumulativo (katatta) |
|
(c) de acordo com o tempo que leva a tomar efeito (pakakala):
 |
efeito nesta mesma vida (dittha dhamma vedaniya) |
 |
efeito na próxima vida (upapajja vedaniya) |
 |
efetivo indefinidamente (aparapariya vedaniya) |
 |
ineficaz (ahosi) |
|
(d) de acordo com as esferas de seu efeito (pakatthana):
 |
não hábil, nas esferas dos sentidos (akusala
kamavacara) |
 |
hábil, nas esferas dos sentidos (kamavacarakusala) |
 |
hábil, nas esferas dos sem-forma (arupavacarakusala) |
 |
hábil, nas esferas da forma (rupavacarakusala). |
|
“Se alguém diz, ó monges, que um homem deve necessariamente
colher de acordo com todos os seus atos, neste caso não adianta
qualquer esforço feito, nem existe oportunidade para acabar com
o sofrimento. Mas se se mantém, ó monge, que aquilo
que o homem colhe é o resultado de alguns de seus atos, neste caso
é possível esforçar-se para obter a santidade e também
para o fim do sofrimento.”
- o Buddha, Anguttara Nikaya.
|
A reprodutividade do Karma nos conduz necessariamente
ao problema do renascimento. É, de fato, um problema, porque se
existe o Karma, tem de existir o renascimento também,
e no entanto, não existe ser algum para ser reencarnado, de acordo
com os ensinamentos de Anatta, ou “Não-eu”. Karma
e Renascimento estão intimamente interligados. É justamente
o conceito errôneo de acreditar numa entidade própria que
dá origem ao problema, e é o processo da realidade que o
resolve. O simples fato de haver a pergunta “o que é que renasce?”
, é baseada no desconhecimento do processo do Karma
e da constituição do ser humano em partes agregadas e altamente
coesas, mas todas perecíveis e “não-eu” , ou “não-entidades”.
O Karma não é uma entidade que passa de uma
vida para outra, mas é a própria vida, visto que a vida é
o produto (vipaka) do Karma. Em cada passo que damos
agora na idade adulta, estão também as frágeis tentativas
de nossa infância; como ações, elas foram um processo
que parou com o ato, mas aquele processo deu origem a outros processos,
processos reais. A transformação é contínua,
e não há um “eu” que fica parado, esperando morrer para pular
para outra vida... |
A presente realidade, que se expressa como resultado de todos os processos
precedentes, carrega em sua própria ação todos os
esforços que fizeram as ações prévias. Esta
continuidade sem identidade, - como uma chama que se ergue, sempre nova,
sendo alimentada por combustível sempre novo, e contudo sua própria
existência depende do seu queimar contínuo, - esta continuidade
do processo é o Karma, e esta falta de identidade
é “anatta”. |
O Karma, portanto, não é uma entidade,
mas um processo, uma ação, uma energia, uma força
interna, que constitui o processo de ação, que faz a ação
atuar, é o desejo, - à semelhança do processo de combustão,
faz a chamar queimar e consome tudo o que é combustível,
e assim como a simples exposição à atmosfera inicia
um processo de oxidação em certos metais. Mas sabemos que
uma chama não “nasce” da madeira, ou do carvão, ou da palha,
porque tais materiais podem ficar empilhados por centenas de anos sem se
queimarem. Eles são apenas a oportunidade dada para que a chama
se mantenha. Uma chama não se origina do combustível, mas
sim da fricção, e pode portanto aparecer até em materiais
não combustíveis, como por exemplo, no sílex e no
aço. O combustível somente dá oportunidade para a
continuidade do processo. |
A aplicação desta analogia ao processo do Karma
o tornará claro. A verdadeira origem para a vida não é
o ato sexual entre macho e fêmea; este somente dá a oportunidade
para que um Karma inicie vida nova. Assim, como o pavio,
embora mergulhado e encharcado de óleo, não dará luz,
a não ser que uma chama entre em contato com ele, - assim como objetos
visíveis, apesar de entrarem em foco, não serão vistos
pelo olho se não houver a consciência respectiva, - assim
também “é da conjunção de três coisas
que a concepção se dá - o ato sexual, uma mulher no
período fértil e a condição cármica
necessária. Se não há necessidade de geração,
não se dará a concepção”.
(Majjhima Nikaya, 38)
|
Agora, esta necessidade de geração, ou melhor, de regeneração,
é descrita poeticamente numa alegoria oriental como sendo um ser
músico celeste (gandhabbo), que preside à concepção
da criança. É evidente que esta alegoria se refere
àquela energia cármica, a qual em sua tendência natural
do desejo procura adquirir uma nova matéria (forma visível)
como base de seu novo processo de ação, de vida. |
Uma chama que estava queimando na cera de uma vela, pode continuar
a queimar no óleo de uma lâmpada, no tecido das cortinas,
na mobília do quarto, na estrutura de madeira da casa inteira. Isto
não quer dizer que aquela cera tenha se transformado em óleo,
tecido, ou madeira, porque estes foram somente os combustíveis que
mantiveram a chama, recebendo-a passivamente. |
Uma corrente elétrica pode produzir luz numa lâmpada elétrica,
ou música em um rádio, ou movimento num ventilador
e calor num aquecedor. A corrente se expressa em luz, música, movimento
ou calor através dos meios adequados. De maneira semelhante, os
diferentes modos de vida, assim como as modificações
constantes na vida, são expressão do Karma.
Assim, num sentido absoluto, o Budismo não ensina a evolução
como Darwin ensinava, embora Darwin provavelmente estivesse certo quanto
à origem das espécies. Ele ensinou a evolução
no sentido biológico e psicológico, isto é, ele traçou
as séries originárias da matéria através das
quais a vida se expressa, assim como podemos traçar a origem de
uma vela à cera manufaturada pelas abelhas, sem com isto explicar
como a vela se acendeu. O fogo não pode ser investigado partindo
das séries de combustível dependentes das quais o processo
de combustão continuou ininterrupto, e da mesma maneira a genealogia
do homem não é mostrada ao se traçar a evolução
do corpo nas séries de vertebrados, mesmo que isto seja provavelmente
correto. É o Karma, como um processo do desejo, que
dá o “impulso” , o “élan vital”, como Bergson chama. Neste
processo, no entanto, não são a mente e a matéria
que estão envolvidos; a sua evolução pertence a um
tipo diferente. Neste processo, é a evolução do Karma
que causa o renascimento (Milinda Panha, 11, 2-6), e tratando-se
de uma evolução as diferentes fases de expressão deste
Karma, mesmo em vidas diferentes, carregam responsabilidade
comum. |
Este processo de evolução cármica não é
necessariamente progresso. O progresso sugere uma mudança sempre
para melhor. Mas o processo da evolução poderia ser, no entanto,
de um retrocesso ou de um progresso, porque é mudança, como
também a degeneração, a deterioração.
Mas mesmo no sentido físico, a decadência de um significa
o crescimento de outro. A questão sempre perguntada é se
é possível um ser humano renascer como animal. Do ponto de
vista budista, esta pergunta implica na existência de uma entidade
humana que se transformará numa entidade animal numa vida subseqüente... |
É o desejo, como força inerente da ação
cármica, que tende a expressar, a perpetuar, a reproduzir. Sem esta
tendência a ação não seria o Karma,
não seria o desejo. Mas as ações bestiais das paixões
naturalmente tenderão a produzir efeitos bestiais, e então
o processo será a evolução do tipo retrocesso. As
ações virtuosas e o autocontrole naturalmente tenderão
a produzir efeitos benéficos, havendo “progresso”. As ações
desinteressadas, de puro altruísmo, não terão tendência
a se reproduzirem, e assim não se expressarão mais em efeitos. |
Quando nasce um ser, ele não é nem meramente criado,
nem meramente propagado por seus pais, mas é também um produto
da ação passada. Esta ação, como vontade (cetana)
constitui certas tendências (sankhara), inclinações,
repulsões, e gostos. Um caráter que, devido ao desejo pela
vida (bhava tanha) procurará se expressar novamente;
isto é a evolução do renascimento (bhava paccaya
jati - a mudança condiciona o nascimento). O renascimento
terá lugar aonde estas tendências cármicas encontrarem
as melhores circunstâncias para se expressar, o solo mais apropriado
para formar raízes novas, a atmosfera mais generosa para produzir
novos frutos. Isto poderia ser chamado de simpatias das forças cármicas.
Se vier a acontecer que o útero de uma mulher, tendo há pouco
recebido o esperma, estiver bem disposto física e carmicamente,
poderá haver uma concepção, resultando finalmente
no nascimento de uma criança, tendo algumas ou muitas das características
de seus pais, não porque as herdou, mas devido às simpatias
e atração de tendências cármicas semelhantes.
Assim como o relâmpago de uma tempestade nunca entrará nas
águas de um poço profundo, mas procurará cair no metal
do condutor em cima de uma torre, porque aí se encontra sua maior
atração (e menor resistência), da mesma forma as tendências
de um caráter serão atraídas - simpatizarão
com aquelas tendências que lhe são mais próximas ou
afins. Karma procurará os pais e ambiente condizentes
com ele para o novo nascimento. |
Mas também pode acontecer o oposto. Quando um pensamento no
momento da morte contiver ódio ou vingança, então
a própria antipatia será a tendência cármica
dominante que atrairá semelhantes, como pólos opostos de
um ímã. |
Se no momento do ato sexual não houver atração
de um Karma, então não haverá a concepção.
A teoria da hereditariedade não explica porque nem todas as características
do pai e da mãe não são herdadas. A explicação
budista é que os pais somente apresentaram a oportunidade, mas o
filho traz a sua própria herança, - o Karma
- com ele na hora da concepç&atillde;o. É este terceiro fator,
o Karma, que decide a concepção, ao lado do
esperma e do óvulo, no renascimento. Assim, Karma
é a verdadeira “seleção natural”, que luta pela existência,
resultando não na sobrevivência do mais apto, mas na sobrevivência
do desejo, que se reproduzirá em bom ou mau, até que
o discernimento destrua aquela força reprodutiva, conduzindo-a a
não renascer mais. Quando assim toda ação for aquietada,
o desejo não mais poderá perturbar a paz, aonde a Roda do
Renascimento não pode mais girar. A paz e a libertação
da avidez, do ódio, e do engano é o Nibbana. |
“Muitos nascimentos atravessei no ciclo das vidas e das mortes,
em vão procurei o arquiteto da casa (o eu, a “alma”). Que miséria,
nascer e renascer sem fim! Conheço-te agora, oh arquiteto! Não
mais construirás a casa (o corpo)! Quebradas estão as vigas
(paixões), e desabou a cumeeira (ignorância). Livre está
a minha mente, pois cheguei à extinção da escravidão
aos desejos, o imortal Nirvana!!!”
- o Buddha.
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Notas: |