I.
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O egoísmo é, segundo os Ensinamentos do Senhor
Buddha,
expressão mais contundente da ilusão de um "eu" centralizador
e que se acha eterno, que controla tudo. Podemos dizer que, de certa forma,
tudo que o Senhor Buddha fez foi dar ao "eu" sua devida proporção
no lugar das coisas deste mundo. Obviamente, egoísmo é "coisa
do ser humano", mas a cultura ocidental valoriza bem mais este "eu", a
ponto de vermos até a palavra "I" ("eu”, em inglês), grafada
com letra maiúscula... Os Ensinamentos budistas nos contam que a
mente tem sua natureza, pura e imaculada, ofuscada pelas sujidades como
ódio, raiva, medo, apego e aversão. Mas estas coisas não
fazem parte da essência da mente - elas só aparecem devido
à ignorância que temos a nosso próprio respeito, e
ficam ao redor da mente, como as nuvens que escondem o sol, mas não
o atingem verdadeiramente. Fato é que esta lista de negatividades
é suficiente para nos induzir a estados mentais de sofrimento, tal
é a cequeira que causam... E o pior de tudo é que tomamos
estes estados mentais como sendo nossos(!), como sendo nossas expressões
genuínas, nos envolvendo com eles, gerando emoções
e ações correspondentes. |
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Aplicando isto ao mundo religioso, vemos que as atitudes freqüentes
de intolerância religiosa, fanatismo e fundamentalismo, são
somente expressão deste egoísmo, extrapolado para o campo
religioso. Não há como negar: a manutenção
do poder que certas pessoas sentem quando estão em posição
de liderança; o desejo de acumular fama, prestígio, bens,
conhecimento; o orgulho de ter seguidores, tudo isto é parte
da atividade do ego, crescido a proporções doentias,
gerando situações de sofrimento. |
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Temos exemplos históricos disto, como as chamadas Cruzadas,
as Inquisicões, as guerras "santas", as conversões ideológicas
forçadas, as perseguições e matanças em nome
de religião, as conversões através da coação...
Tudo isto para manter a supremacia de meu eu religioso, pois todas as concepções
alheias ao que faz parte do meu universo cultural-religioso, necessariamente
deverão ser consideradas inferiores, indignas, erradas etc. O ufanismo
religioso começa aqui. Intolerância, dogmatismo, preconceito,
derramamento de sangue, são alguns dos efeitos colaterais do "eu",
o qual, na visão budista, não passa de fruto da ignorância,
e um artifício da mente. |
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Num meio de ignorância e intolerância, que diálogo
poderá surgir? Desde o primeiro dia de Sua pregação
pela Índia, o Buddha mostrava, através de Sua
mensagem, a nossa tendência a apegarmos às coisas e idéias,
como se fossem verdadeiras tábuas de salvação. Desta
forma, trazemos para dentro de um Caminho espiritual toda a continuidade
daquilo que sempre fomos: egoístas e ignorantes. Mascarados sob
o véu da espiritualidade, queremos manipular as forças da
natureza para obter coisas, ou desejamos barganhar com deuses e santos
a nossa segurança e salvação. De maneira sutil, nosso
ego manipula até as práticas religiosas para proveito próprio!!!
Tudo em nome daquilo que o favoreça e o mantenha seguro. |
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O dogmatismo, que impede a verdadeira liberdade de pensamento, é
também um instrumento a serviço do eu para a manipulação
das pessoas. O Senhor Buddha decididamente cortou as amarras
do dogma dentro do Budismo, quando Ele disse que não deveríamos
acreditar em nada meramente por acreditar, mas sim deveríamos analisar
as palavras Dele (e de outros), como se lapidássemos uma pedra preciosa,
tirando as impurezas, até chegar ao cerne do seu significado.
Comparando e experimentando o Ensinamento, o adepto é capaz de ver
as coisas como elas realmente são, dando lugar ao conhecimento nascido
da experiência, que serve de base para posterior ação.
Assim, Buddha não se revestiu de autoridade inquestionável
- e isto é muito importante, porqque qualquer desenvolvimento só
é possível dentro de um ambiente de liberdade, tolerância
e respeito mútuo. O budista respeita seu irmão como um Buddha
em potencial. |
II. |
O autoconhecimento sempre foi uma bandeira budista, que tem uma prática
terapêutica de mais de 2600 anos. Estamos para entrar no tão
esperado "Novo Milênio", cheios de esperanças e tecnologias
avançadas, mas ainda super atrasados por não estarmos em
dia com as práticas de autoconhecimento. O homem de hoje, neste
aspecto, é o mesmo de eras antigas. Em realidade, é mais
fácil desenvolver coisas materiais do que as coisas do espírito! |
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Mas, para vencermos a insatisfatoriedade (sofrimento) inerente aos
seres humanos, é necessário que nos conheçamos primeiramente. |
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Não adianta sair por aí dizendo que devemos amar ao próximo,
que isto é um mandamento divino, quando não nos amamos primeiramente.
Não adiantam discursos sobre compaixão, quando não
nos conhecemos. O que somos? Mente? Corpo? Corpo-e-mente? Espírito?
Energia? Usamos palavras; nos escondemos atrás de conceitos abstratos,
mas a verdade é que permanecemos sem saber o que somos; o que é
mente, o que é espírito etc! O budista tem nas práticas
de desenvolvimento mental (conhecidas genérica e erroneamente como
"meditação") a ferramenta pela qual ele vai pesquisar e se
autoconhecer. Vigilante, ele vê em suas meditações
como surgem (e como desaparecem) seus pensamentos de raiva, de alegria,
de tristeza, de aversão, de apego, de ignorância; introspectivo
ele observa tranqüilamente sua tendência para isto ou para aquilo;
ele vê o funcionamento do seu eu e do que ele se constitui; ele aprende
naquele silêncio. E no autoconhecimento ele obtém - sem pressões
- o autocontrole. |
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Se fôssemos capazes de nos amar, seria fácil amar ao próximo.
Mas quando temos aqueles pensamentos de raiva, ódio, preguiça,
torpor, aversão, apego, tristeza etc, e embarcamos neles, sofremos
e não estamos nos amando. Quando sofremos não nos amamos!
Então, para que possamos implementar uma nova consciência
amorosa, ela não é separada do autoconhecimento, da observação
em Vigilância. Buddha disse que todas as coisas são
precedidas pela mente, nascem na mente. Se a mente for "pura", ou "impura",
nossas ações serão de acordo, gerando felicidade ou
dor. Temos citação paralela na sabedoria da Grécia
antiga que exortava : "Homem conheça-te a ti mesmo, que conhecerás
aos deuses e ao universo". Ou ainda, a citação cristã
de que: "Procurai antes o Reino dos Céus, que tudo se ajustará".
Todas estas fórmulas apontam a uma necessidade de transformação,
ou revolução de consciência. A verdadeira revolução
é a interior. |
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Como podemos estabelecer diálogo se não nos conhecemos
e deixamos as negatividades (ou obstáculos, como são conhecidas
no Budismo) tomar as rédeas de nossas ações?
No campo religioso, isto só levou ao desastre, e continua levando
ainda hoje. |
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Como estabelecer diálogo para descobrir o comum a todas os caminhos
espirituais, se ao invés de vermos nosso irmão como um ser
humano, o vemos como um rótulo: um budista, um hinduísta,
um cristão, um espírita, um esotérico, um teosofista,
um taoísta, e tanto "istas" mais ? |
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Como estabelecer diálogo quando, ao invés de aprimorarmos
as qualidades humanas através das religiões, nós vamos
na direção contrária dos ensinamentos? O erro é
que nos aproximamos de um Caminho espiritual e o tratamos como mais um
objeto da nossa coleção mental de informações,
que devemos estudar e preservar, classificar e transformar em mais um item
de nosso acervo intelectual. Entupimos nossas cabeças com classificações
sem-fim disto e daquilo, e achamos que é o máximo do desenvolvimento
espiritual guardar um bocado de teorias... Aferramo-nos a estas teorias,
e por elas se mata! É a transformação da religião
em materialismo espiritual! Espiritualidade não é tomar parte
de ritos, acender incensos ou velas, cantar louvores lindos em corais.
Espiritualidade é extirpar o desejo egoísta, a ilusão
criada pelo eu e suas falsas idéias, é o esforço constante
para diminuir o egocentrismo. E tudo isto se obtém pelo esforço
próprio. |
III. |
Plenamente desperto, plenamente compassivo. Quem conhece o Budismo
sabe que a Compaixão e a Sabedoria são os dois maiores pilares
de seu Ensinamento. Mas esta Sabedoria não é a discursiva,
mas aquela advinda da experiência. A Sabedoria compassiva, tão
enfatizada pelos budistas, é a chave que atenua sofrimentos, traz
conhecimento e a Paz. É a Paz é conquistada; não
recebida de fora. Devemos lutar pela Paz, interna e externamente. Deus
algum vai conceder-nos a Paz. Devemos combater a ignorância em todos
os níveis, por nós mesmos, em todos os segmentos. |
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Pensando assim, duas frentes de trabalho poderiam ser implementadas:
1. estudo comparativo das religiões e filosofias, tanto individual
como coletivamente. Você poderá pensar: "Mas para quê
vou estudar outra religião, se a minha já me satisfaz?".
A isto respondo que: 1. através do estudo comparativo e não
tendencioso de outros caminhos, podemos aprofundar a compreensão
de nossa própria religião; 2. trabalhos conjuntos de
filantropia ou assistenciais, em grupos pequenos e descentralizados, pois
assim a eficiência é maior e o risco da desvirtuação
dos objetivos menor. |
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Vivemos num mundo de expressões culturais, lingüísticas,
materiais, raciais e religiosas pluriformes. E todos nós podemos
trabalhar em conjunto em prol de um bem comum sem perder nossas cores.
Aliás, nossas cores são nossas riquezas. O que importa é
que no trabalho conjunto a disposição amorosa pode surgir.
É como terapia ocupacional. O grupo que trabalha junto, ultrapassando
dificuldades e construindo juntos, tornar-se coeso pela força do
amor. Esse amor é fruto do conhecimento do outro, que quebra barreiras,
expande as fronteiras além de si mesmo. |
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É uma pena que muitas pessoas não se aproximem de um
caminho religioso genuíno porque a imagem que elas tem das religiões
é aquela imagem negativa criada pelos maus religiosos. Reverendos
Moons; Ayatolahs Khomeinis, bispos e pastores beligerantes, para citar
alguns. |
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A Verdade não tem monopólio. As religiões não
só refletem um maior ou menor grau de aproximação
da Verdade, como também diversos temperamentos humanos. A real compreensão
das múltiplas e profusas religiões é um fator de aproximação,
e base para uma fraternidade. Descobrir o que nós temos em comum,
ao invés de enfatizarmos diferenças, é uma base para
a fraternidade. |
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O estudo e a prática conjunta de algo comum aos diversos segmentos
religiosos poderia ser ainda mais generalizado e difundido, até
mesmo nas escolas e universidades, até que um dia o círculo
se fechasse, numa grande roda ou dança LILA indiana de amor e fraternidade. |
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Mas outra vez lembro: sem autoconhecimento, que traz paz e reaviva
a capacidade de amar, qualquer coisa na vida fica difícil ou tem
seu raio de ação limitado. |