NAMO BUDDHAYA - NAMO DHARMAYA - NAMO SANGHAYA !

 A IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO NO MOMENTO ATUAL
FESTA PRIMAVERA ESPIRITUAL &
2º ENCONTRO DE RELIGIÕES E FILOSOFIAS - RJ EM 02/10/94

Prezados Irmãos:
Estamos aqui hoje reunidos para refletir sobre um tema realmente importante, e que não se esgotará em apenas cinco minutos de prosa. Entretanto, na qualidade de praticante, vou tentar passar para vocês as idéias gerais que norteiam um budista a respeito deste assunto.
O diálogo sempre foi ferramenta muito útil para chegarmos mais perto da essência dos fatos. É   preciso ressaltar aqui a importância do diálogo em qualquer ramo da atividade humana? A humanidade hoje está caminhando para a "information society", onde a tecnologia acelera cada vez mais a troca vital de informações, em nossa vida diária, por exemplo.
Antigamente, muitos povos viveram em isolamento, ou tiveram fases de isolamento, e isto não prejudicava a sobrevivência deles drasticamente. Mais foi justamente quando as culturas trocaram informações entre si que elas começaram a produzir algo melhor, em termos de tecnologia, artes, religião etc...
Fomos convidados para falar da importância do diálogo. Que ele é importante, todos nós já o sabemos! Resta-nos apontar alguma direção ou idéia que torne possível a implementação do diálogo, mais especificamente do diálogo inter-religioso. Este tipo de diálogo só será mais amplamente efetivo quando certas condições forem preenchidas. E quais são elas?  
quando as sementes de egoísmo e sectarismo sejam destruídas;
quando as pessoas se sensibilizarem quanto à necessidade de se autoconhecerem;
quando as pessoas trabalhem juntas em prol de um bem comum, exercendo a compaixão.
I.
O egoísmo é, segundo os Ensinamentos do Senhor Buddha, expressão mais contundente da ilusão de um "eu" centralizador e que se acha eterno, que controla tudo. Podemos dizer que, de certa forma, tudo que o Senhor Buddha fez foi dar ao "eu" sua devida proporção no lugar das coisas deste mundo. Obviamente, egoísmo é "coisa do ser humano", mas a cultura ocidental valoriza bem mais este "eu", a ponto de vermos até a palavra "I" ("eu”, em inglês), grafada com letra maiúscula... Os Ensinamentos budistas nos contam que a mente tem sua natureza, pura e imaculada, ofuscada pelas sujidades como ódio, raiva, medo, apego e aversão. Mas estas coisas não fazem parte da essência da mente - elas só aparecem devido à ignorância que temos a nosso próprio respeito, e ficam ao redor da mente, como as nuvens que escondem o sol, mas não o atingem verdadeiramente. Fato é que esta lista de negatividades é suficiente para nos induzir a estados mentais de sofrimento, tal é a cequeira que causam... E o pior de tudo é que tomamos estes estados mentais como sendo nossos(!), como sendo nossas expressões genuínas, nos envolvendo com eles, gerando emoções e ações correspondentes. 
Aplicando isto ao mundo religioso, vemos que as atitudes freqüentes de intolerância religiosa, fanatismo e fundamentalismo, são somente expressão deste egoísmo, extrapolado para o campo religioso. Não há como negar: a manutenção do poder que certas pessoas sentem quando estão em posição de liderança; o desejo de acumular fama, prestígio, bens, conhecimento; o orgulho de ter seguidores,  tudo isto é parte da atividade do ego,  crescido a proporções doentias, gerando situações de sofrimento.
Temos exemplos históricos disto, como as chamadas Cruzadas, as Inquisicões, as guerras "santas", as conversões ideológicas forçadas, as perseguições e matanças em nome de religião, as conversões através da coação... Tudo isto para manter a supremacia de meu eu religioso, pois todas as concepções alheias ao que faz parte do meu universo cultural-religioso, necessariamente deverão ser consideradas inferiores, indignas, erradas etc. O ufanismo religioso começa aqui. Intolerância, dogmatismo, preconceito, derramamento de sangue, são alguns dos efeitos colaterais do "eu", o qual, na visão budista, não passa de fruto da ignorância, e um artifício da mente.
Num meio de ignorância e intolerância, que diálogo poderá surgir?  Desde o primeiro dia de Sua pregação pela Índia, o Buddha mostrava, através de Sua mensagem, a nossa tendência a apegarmos às coisas e idéias, como se fossem verdadeiras tábuas de salvação. Desta forma, trazemos para dentro de um Caminho espiritual toda a continuidade daquilo que sempre fomos: egoístas e ignorantes. Mascarados sob o véu da espiritualidade, queremos manipular as forças da natureza para obter coisas, ou desejamos barganhar com deuses e santos a nossa segurança e salvação. De maneira sutil, nosso ego manipula até as práticas religiosas para proveito próprio!!! Tudo em nome daquilo que o favoreça e o mantenha seguro. 
O dogmatismo, que impede a verdadeira liberdade de pensamento, é também um instrumento a serviço do eu para a manipulação das pessoas. O Senhor Buddha decididamente cortou as amarras do dogma dentro do Budismo, quando Ele disse que não deveríamos acreditar em nada meramente por acreditar, mas sim deveríamos analisar as palavras Dele (e de outros), como se lapidássemos uma pedra preciosa, tirando as impurezas, até chegar ao cerne do seu  significado. Comparando e experimentando o Ensinamento, o adepto é capaz de ver as coisas como elas realmente são, dando lugar ao conhecimento nascido da experiência, que serve de base para posterior ação. Assim, Buddha não se revestiu de autoridade inquestionável - e isto é muito importante, porqque qualquer desenvolvimento só é possível dentro de um ambiente de liberdade, tolerância e respeito mútuo. O budista respeita seu irmão como um Buddha em potencial. 
II. O autoconhecimento sempre foi uma bandeira budista, que tem uma prática terapêutica de mais de 2600 anos. Estamos para entrar no tão esperado "Novo Milênio", cheios de esperanças e tecnologias avançadas, mas ainda super atrasados por não estarmos em dia com as práticas de autoconhecimento. O homem de hoje, neste aspecto, é o mesmo de eras antigas. Em realidade, é mais fácil desenvolver coisas materiais do que as coisas do espírito!
Mas, para vencermos a insatisfatoriedade (sofrimento) inerente aos seres humanos, é necessário que nos conheçamos primeiramente.
Não adianta sair por aí dizendo que devemos amar ao próximo, que isto é um mandamento divino, quando não nos amamos primeiramente. Não adiantam discursos sobre compaixão, quando não nos conhecemos. O que somos? Mente? Corpo? Corpo-e-mente? Espírito? Energia? Usamos palavras; nos escondemos atrás de conceitos abstratos, mas a verdade é que permanecemos sem saber o que somos; o que é mente, o que é espírito etc! O budista tem nas práticas de desenvolvimento mental (conhecidas genérica e erroneamente como "meditação") a ferramenta pela qual ele vai pesquisar e se autoconhecer. Vigilante, ele vê em suas meditações como surgem (e como desaparecem) seus pensamentos de raiva, de alegria, de tristeza, de aversão, de apego, de ignorância; introspectivo ele observa tranqüilamente sua tendência para isto ou para aquilo; ele vê o funcionamento do seu eu e do que ele se constitui; ele aprende naquele silêncio. E no autoconhecimento ele obtém - sem pressões - o autocontrole.
Se fôssemos capazes de nos amar, seria fácil amar ao próximo. Mas quando temos aqueles pensamentos de raiva, ódio, preguiça, torpor, aversão, apego, tristeza etc, e embarcamos neles, sofremos e não estamos nos amando. Quando sofremos não nos amamos! Então, para que possamos implementar uma nova consciência amorosa, ela não é separada do autoconhecimento, da observação em Vigilância. Buddha disse que todas as coisas são precedidas pela mente, nascem na mente. Se a mente for "pura", ou "impura", nossas ações serão de acordo, gerando felicidade ou dor. Temos citação paralela   na sabedoria da Grécia antiga que exortava : "Homem conheça-te a ti mesmo, que conhecerás aos deuses e ao universo". Ou ainda, a citação cristã de que: "Procurai antes o Reino dos Céus, que tudo se ajustará". Todas estas fórmulas apontam a uma necessidade de transformação, ou revolução de consciência. A verdadeira revolução é a interior.
Como podemos estabelecer diálogo se não nos conhecemos e deixamos as negatividades (ou obstáculos, como são conhecidas no Budismo) tomar as rédeas de nossas ações?  No campo religioso, isto só levou ao desastre, e continua levando ainda hoje.
Como estabelecer diálogo para descobrir o comum a todas os caminhos espirituais, se ao invés de vermos nosso irmão como um ser humano, o vemos como um rótulo: um budista, um hinduísta, um cristão, um espírita, um esotérico, um teosofista, um taoísta, e tanto "istas"  mais ?
Como estabelecer diálogo quando, ao invés de aprimorarmos as qualidades humanas através das religiões, nós vamos na direção contrária dos ensinamentos? O erro é que nos aproximamos de um Caminho espiritual e o tratamos como mais um objeto da nossa coleção mental de informações, que devemos estudar e preservar, classificar e transformar em mais um item de nosso acervo intelectual. Entupimos nossas cabeças com classificações sem-fim disto e daquilo, e achamos que é o máximo do desenvolvimento espiritual guardar um bocado de teorias... Aferramo-nos a estas teorias, e por elas se mata! É a transformação da religião em materialismo espiritual! Espiritualidade não é tomar parte de ritos, acender incensos ou velas, cantar louvores lindos em corais. Espiritualidade é extirpar o desejo egoísta, a ilusão criada pelo eu e suas falsas idéias, é o esforço constante para diminuir o egocentrismo. E tudo isto se obtém pelo esforço próprio. 
III. Plenamente desperto, plenamente compassivo. Quem conhece o Budismo sabe que a Compaixão e a Sabedoria são os dois maiores pilares de seu Ensinamento. Mas esta Sabedoria não é a discursiva, mas aquela advinda da experiência. A Sabedoria compassiva, tão enfatizada pelos budistas, é a chave que atenua sofrimentos, traz conhecimento e a Paz.  É a Paz é conquistada; não recebida de fora. Devemos lutar pela Paz, interna e externamente. Deus algum vai conceder-nos a Paz. Devemos combater a ignorância em todos os níveis, por nós mesmos, em todos os segmentos. 
Pensando assim, duas frentes de trabalho poderiam ser implementadas: 1. estudo comparativo das religiões e filosofias, tanto individual como coletivamente. Você poderá pensar: "Mas para quê vou estudar outra religião, se a minha já me satisfaz?". A isto respondo que: 1. através do estudo comparativo e não tendencioso de outros caminhos, podemos aprofundar a compreensão de nossa própria religião;  2. trabalhos conjuntos de filantropia ou assistenciais, em grupos pequenos e descentralizados, pois assim a eficiência é maior e o risco da desvirtuação dos objetivos menor. 
Vivemos num mundo de expressões culturais, lingüísticas, materiais, raciais e religiosas pluriformes. E todos nós podemos trabalhar em conjunto em prol de um bem comum sem perder nossas cores.  Aliás, nossas cores são nossas riquezas. O que importa é que no trabalho conjunto a disposição amorosa pode surgir. É como terapia ocupacional. O grupo que trabalha junto, ultrapassando dificuldades e construindo juntos, tornar-se coeso pela força do amor. Esse amor é fruto do conhecimento do outro, que quebra barreiras, expande as fronteiras além de si mesmo.
É uma pena que muitas pessoas não se aproximem de um caminho religioso genuíno porque a imagem que elas tem das religiões é aquela imagem negativa criada pelos maus religiosos. Reverendos Moons; Ayatolahs Khomeinis, bispos e pastores beligerantes, para citar alguns. 
A Verdade não tem monopólio. As religiões não só refletem um maior ou menor grau de aproximação da Verdade, como também diversos temperamentos humanos. A real compreensão das múltiplas e profusas religiões é um fator de aproximação, e base para uma fraternidade. Descobrir o que nós temos em comum, ao invés de enfatizarmos diferenças, é uma base para a fraternidade. 
O estudo e a prática conjunta de algo comum aos diversos segmentos religiosos poderia ser ainda mais generalizado e difundido, até mesmo nas escolas e universidades, até que um dia o círculo se fechasse, numa grande roda ou dança LILA indiana de amor e fraternidade.
Mas outra vez lembro: sem autoconhecimento, que traz paz e reaviva a capacidade de amar, qualquer coisa na vida fica difícil ou tem seu raio de ação limitado.
Muito obrigado pela oportunidade a nós concedida.
Muita Paz. Luz e Fraternidade para todos.
Com as bênçãos dos Buddhas.

CANÇÃO DO BODHISATTVA

"DISCIPLINA É LIBERDADE
COMPAIXÃO É FORTALEZA
TER BONDADE É TER CORAGEM"