Desde que me entendo como adolescente, sempre achava que as idéias
de um deus onipotente amoroso - de um lado -, e uma humanidade sofredora,
de outro, não “batiam” uma com a outra. Sempre tive uma tendência
mística, que se expressava numa convicção nos ensinamentos
do índio yaqui de Sonora Don Juan, como narrados nos livros de Carlos
Castañeda. E isto era o que mais se aproximava de minha realidade
espiritual e de mundo.
Ainda influenciado com as idéias cristãs, de que todos os não-cristãos eram pagãos, ateus ou politeístas, ou não prestavam, dei assim mesmo uma chance à chance, e comecei a ler as obras de T. Lobsang Rampa - minha primeira porta para o Budismo, mesmo que, dizem, imperfeita. Hoje sei que ele é controverso, mas uma coisa é certa: em seus livros ele descreveu exatamente a vida do povo tibetano antes da invasão chinesa. Descobri que o tibetano era um povo de uma grande religiosidade, onde mosteiros e templos abrigavam milhares de pessoas, que de alguma forma estavam envolvidas com a religião, e que o povo tinha uma religiosidade muito intensa. Fiquei surpreso em ver que naquele lugar inóspito (o Tibete fica no “Teto do Mundo”), as pessoas eram descritas com uma bondade sem precedentes e muito bom humor. Surpreendeu-me um povo simples e ao mesmo tempo com uma religião sofisticada. Obviamente o Tibete não é o paraíso na terra, mas ficou bem claro para mim que, como “pagãos”, eles estavam bem mais perto do ideal de virtude e bondade, do que qualquer outra nação cristã da Terra. Bondade - sim, esta foi a característica que marcou minha impressão da cultura tibetana. Talvez seja uma característica incutida nos tibetanos pela religião que eles tanto adoram e guardam como preciosa. E foi o que me impulsionou para continuar querendo saber mais e mais tudo sobre o Buddha e o Budismo. Assim, encontrei-me com o Budismo. Comecei a ler e a estudar mais. E vi que coisa diferente, única e incomparável é a mensagem do Iluminado. O Budismo veio definitivamente emprestar as palavras que estavam faltando na minha boca; veio lembrar-me tudo aquilo que já sabia ou intuía, mas não conseguia construir claramente. Veio para ficar. Uma das características mais marcantes do Ensinamento budista é esclarecer o quanto as idéias pesam em nosso condicionamento, e não existe idéia mais pesada e poderosa do que a idéia do deus cristão, ou melhor, do deus (mono)teísta. Para que você alce seu vôo de liberdade, não há como fazê-lo com o peso morto de idéias pré-concebidas, conceitos e dogmas enfiados em nossa goela desde tenra idade. E “deus” também faz parte do mundo das idéias, ou conceitos que, de certa forma, entulham a mente. Para o budista, não há deus mais verdadeiro do que a Realidade da Vida, mas para que cheguemos a ter pleno conhecimento dessa Realidade, devemos nos despir de todas as nossas concepções. Parafraseando Hermes Trimegistos: “Vós não O haveis de ver senão no momento em que d’Ele não mais puder falar, pois seu Conhecimento é um silêncio profundo e a supressão de todos os sentidos”. Isto é pura mística budista, como exemplificada pelos Theravadins, em linguagem hermética; chega a ser até Zen. Lao-tsé também falou coisa parecida : “O Tao que pode ser descrito não é o verdadeiro Tao”! O propósito deste trabalho não é negar a realidade de Deus, como Absoluto, (pois quem vive sob uma idéia de deus teísta arraigada na mente não achará este artigo interessante e nos achará loucos, não fazendo nada para mudar seus pré-conceitos), mas sim demonstrar que, existindo ele ou não, todos sofrem com a ignorância, exista(m) ou não deus(es). Portanto, devemos fazer alguma coisa a respeito. Esta “alguma coisa” o Buddha já nos mostrou como é há mais ou menos de 2.600 anos atrás... Carlos Lessa
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O primeiro Mandamento é inequívoco: “Eu sou o Senhor
seu Deus, que os libertou das terras do Egito, que os libertou do cativeiro.
Vocês não terão por Deus ninguém mais além
de mim”. Quando eu tinha 13 anos, eu recitava esta passagem em hebraico
e em inglês como parte de meu barmitzvah. Por nove meses eu estudei
os Dez Mandamentos, que eram a parte da Bíblia mosaica a mim designada
para estudar e ler.
Mas já naquela época uma ponta de dúvida já havia se insinuado. Era-nos ensinado que “não deveríamos ter nenhum outro Deus que não o Senhor”, mas isto não negava a existência de outros deuses. “Será que, abaixo deste grande Deus - Jeová - o poderoso rei, existiam outros deuses?”. Eu imaginava que tais crenças eram próprias de um mundo tribal, com seus deuses conflitantes, cada um deles demandando tributos e sacrifícios, guerreando por adeptos, lançando barganhas, alianças e pactos. “Nenhum outro Deus, nenhuma imagem gravada. Não prosternarás diante deles ou os servirá, porque Eu, o Senhor seu Deus, sou um Deus ciumento, e perpetuo as iniquidades de pai para filhos daqueles que me odeiam, até a terceira e quarta gerações...” A aliança ou pacto judeu, a fé cristã e a submissão muçulmana oferecem, cada, uma barganha com o divino. Obedeça a Deus, e Ele o protegerá nesta vida e na próxima; desobedeça-O e trema. Todas estas fés não são possíveis sem esta predisposição à barganha ou ao temor. Eu não precisei me descartar de efeitos psicológicos opressivos causados por ter acreditado em Deus, já que meus professores da escola dominical não punham muita ênfase na necessidade da fé. Assim, minha crença em Deus diminuiu gradualmente ou foi esquecida, enquanto as influências seculares cresciam mais fortes do que as religiosas. Eu vim a pensar em Deus como uma ilusão gigante que demandava fé das pessoas, assim como o Mágico de Oz, devido à ilusão de seu poder... Como eu, muitos ocidentais consideram os ensinamentos centrais das religiões tradicionais do ocidente como impossíveis e paralisantes mentais - a existência de Deus, a verdade literal da Bíblia, a autoridade das igrejas... Ainda assim, para aqueles que tem um interesse no desenvolvimento espiritual, as alternativas seculares materialistas e sociais também são limitadas. Nós sentimos que há uma dimensão da experiência humana que não pode ser reduzida às equações das ciências materiais ou aos dogmas das religiões convencionais. Mas como então encontrar a saída? Não há nenhum Deus Criador no Budismo. Isto foi parte do que me atraiu, como também tem acontecido com outras pessoas. O artigo de Sagaramati (Grandes Ilusões) explica como o Budismo rejeita a crença neste tipo de Deus, central para muitas tradições religiosas do ocidente, e como isto torna o Budismo um tipo de religião fundamental- mente diferente. O Budismo oferece um contexto espiritual viável para além de Deus, livre de dogma e do autoritarismo. A última coisa que o mundo precisa é mais intolerância religiosa. Além disso, nós somos profundamente influenciados pelas culturas nas quais nascemos, de forma que não podemos negar nossa conexão com elas. Ao invés de nos portamos como um adolescente, que se rebela contra seus pais, melhor reconhecer sua influência e profundos laços. Existe mais no Judaísmo do que aquilo que aprendi quando criança. Da mesma forma, existe um grande valor na tradição cristã. E muitos cristãos modernos estão tentando desenvolver uma versão não-dogmática de sua religião, aprendendo de muitas outras tradições religiosas, como a budista, por exemplo. Os budistas não devem nada (espiritualmente falando) a ninguém. Cristianismo e Budismo derivam de quadros diferentes da existência e tem idéias diferentes do que é ser humano. O Budismo enfatiza a natureza fluida e mutante da mente e o potencial humano para a transformação que a própria natureza mutante habilita. Do ponto de vista budista, as tradições teístas são construídas sobre as realidades externas; elas fixam e transformam experiências espirituais universais em dogmas e doutrinas. A prática espiritual budista nos treina no descondicionamento das tendências de impor padrões conceituais à a realidade. Como parte disto, o Budismo tem insistido, tradicionalmente, que nossos pontos de vista - nossas idéias e nosso entendimento de mundo - devem também ser submetidos ao escrutínio crítico. Pontos de vista são expressões de emoções e tem um efeito profundo sobre nossas ações. O Buddha insistia em que devíamos examinar nossos pontos de vista para discernir quais tendem a nos aprisionar e quais tendem a nos liberar. Somente quando aprendemos a fazer isto, somente quando tivermos totalmente desaprendido as maneiras cristãs e judaicas de pensar, poderemos novamente travar um diálogo com as nossas próprias tradições - sem nos enredarmos pelo poder sedutor que elas tem. Para muitas pessoas hoje em dia existe um sentimento de distância
da cultura ocidental. Existem, contudo, outras conexões que podemos
fazer com as nossas raízes. Para aqueles que acham problemático
fazer conexões culturais através da religião, a arte
pode prover-nos de significado e riqueza, que de outra forma nos faltaria.
Nós também somos herdeiros das tradições artísticas
ocidentais, que sempre coexistiram com as correntes religiosas, e que podem
ser uma alternativa para elevar a consciência. Como o Budismo, tais
tradições podem nos ajudar a refinar nossa imaginação
que, na qualidade de opostas à necessidade de racionalizar tudo,
é uma chave para aqueles que procuram uma vida espiritual após
Deus.
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À medida que nos aproximávamos da casa - minha mãe,
meu irmão e eu - eu ficava cada vez mais irrequieta. Uma bruxa saiu
da casa, usando um vestido longo preto com capuz. Ela fingiu ser amigável,
e nos convidou para entrar. Eu me recusei, mas minha mãe disse que
a bruxa era realmente amiga. “Ela é uma freira”. Então entramos
- atravessamos um longo corredor que davva numa grande sala, cheia de crianças.
Sentei-me ao lado de meu irmão. A freira veio e conversou conosco.
Parecia que ela gostava de nós - pensei - e talvez ela não
seja tão ruim assim. Ela tinha muitas contas pretas amarradas na
cintura.
Uma das coisas que eu mais gostava na escola eram as histórias. A freira contou-nos sobre nosso anjo guardião, que sempre andava atrás de nosso ombro direito. A freira era capaz de ver o demônio, também, e nos avisava que ele estava sempre no fundo da sala, ora num canto, ora noutro. “Ele nunca chegará perto de vocês se forem bonzinhos, mas no momento que forem maus, ele se aproximará de vocês”. O nome da freira era Irmã Annunciata, mas nós a chamávamos de “Tomatinho”. Um dia a Irmã Annunciata nos contava o quanto os pecados do mundo fizeram o Cristo ser crucificado. Ela nos contou como ele fora pregado na cruz, e como sofreu terrivelmente, embora ele mesmo fosse Deus. Nós nos levantamos para o Ato de Contrição. Por acaso, eu estava de pé ao lado da imagem do Cristo crucificado, com sangue escorrendo de suas mãos e pés, com espinhos furando sua cabeça. Eu me senti terrivelmente horrorizada e entristecida. “A vida deve ser realmente terrível; todos nós devemos ser muito maus para uma coisa terrível como essa acontecer”, pensei... Irmã Annunciata não sabia porque eu não parava de soluçar. Em breve nos prepararíamos todos nós para confessar pela primeira vez com Irmã Annunciata todos os pecados que fôssemos capazes de cometer. Como toda noiva de Cristo, ela tinha íntimos conhecimentos dos mistérios da vida após a morte. Ela revelou para nós os tormentos dos infernos, e isto me colocou num verdadeiro frenesi religioso. Eu passei a me forçar a ficar acordada até bem tarde da noite, para poder rezar cada vez mais e mais. Eu sacrifiquei cada prazer que eu podia me lembrar a fim de persuadir a Deus a ajudar a todos os sofredores em todos os lugares. Isto tornou-se uma tarefa urgente e sem-fim, à medida que me conscientizava que o pecado estava em toda parte. O pecado estava no corpo e estava na mente. Estava na língua ferina, nos vestidos de nossas mães, no trabalho duro de nossos pais. O pecado era onipresente em nossas vidas, e por trás disto havia uma grande razão (equivocada): o Pecado Original, o qual manchava a essência de nossos seres. Após minha confissão e primeira comunhão, tornei-me escrupulosa e inexorável com minhas orações. Para diversão da minha mãe, eu chamava a sua atenção quando usava um vestido muito curto. Ela claramente beirava os limites da impureza, o pecado de Eva, que foi a causa de toda catástrofe. Minha mãe ria e me dizia que eu estava ficando muito séria. Mas eu havia decido tornar-me uma freira, uma missionária como a Madre Teresa, e via meu futuro nas favelas da índia, ou nas florestas da África. A cultura da Irlanda, a cultura na qual me criei, era baseada no Catolicismo. O Catolicismo ditava nossos pensamentos e idéias, nossos costumes e instituições. Coloria nossos sonhos e aspirações. Assim como as procissões em honra da Virgem enchiam as ruas com suas bandeiras e hinos, e haviam para ela pequenas grutas escavadas nas rochas ao longo das estradas, da mesma forma as parábolas bíblicas moldava nossa linguagem, criava nossas metáforas, e determinava nosso relacionamento com o Universo. À noite, o pavilhão de estrelas era o manto da Virgem; as luzinhas distantes e piscantes ao redor do porto eram a de um rosário dourado, e um bando de aves era o halo natural de S.Francisco. De acordo com a Bíblia - da qual eu havia memorizado muitas passagens, - o homem era senhor da Natureza. O munddo natural e tudo que ele contém (incluindo animais)foram colocados por Deus para usufruto e vontade do homem. Mas ao mesmo tempo, muito do mundo natural permanecia intocado e indomável. Seguindo seus ciclos, respondia somente às suas próprias leis. Nenhuma oração a Deus faria a natureza mudar seu rumo. E, com a adolescência, este conflito começou a tomar forma em minha psique. Com o passar dos anos, uma certa visão espiritual gradualmente surgiu em mim, bem como uma desilusão com a religião organizada. Desde meus primeiros anos de adolescência, eu apaixonadamente acreditava que cada ser humano tinha uma faculdade divina, soterrada debaixo das distrações e desilusões. Acreditava que esta faculdade poderia ser desenvolvida com consciência ilimitadamente, mas que isto não ocorreria automaticamente. Acreditava que a pessoa tinha de um caminho para atingir tal fim. A pessoa necessitaria de métodos práticos e guia. Tinha inspirado-me no ideal cristão de amor e compaixão, e pela união mística com Cristo; e eu senti que na falta de tal união estava a causa de minha triste alienação. Mas como eu poderia entrar em tal caminho, como o sonhado? No que ele consistia? Como eu poderia realizar aquela união mística com o Cristo? Eu só presenciava o hábito de não pensar em minhas companheiras. Ao meu redor só via crença cega e submissa. Eu tinha perguntas ardentes, e elas pareciam assustar e indignar os padres. Li a Bíblia de ponta à ponta e não me senti nem um pouco mais sábia. Um senso de dúvida crescia em mim e isto me aterrorizava. Talvez eu tenha tido sorte de que o mais altamente treinado e preparado teólogo católico viesse regularmente para ficar entre nós. Eu pude presenciar discussões adultas, e comecei a travar diálogos com intelectuais católicos e dignitários de igrejas. Meu pai interessava-se pelos escritos de Teilhard de Chardin, de forma que havia um certo toque de misticismo romântico. Meu irmão era um comunista, de forma que havia conversas sobre a igreja e a política, especialmente na América Latina. Eu estava muito confusa nesta época, muito fervilhante e era muito tímida para formular adequada- mente meus pensamentos. Porém eu simpatizava com o padre X que, com seu tufo de cabelo ruivo, não era aceito em qualquer paróquia por causa de suas crenças marxistas. Eu também simpatizava com o Arcebispo da Irlanda, que de alguma forma conseguia conjugar obediência à Roma com a sua natureza compassiva. Ele e eu éramos muito próximos desde a minha infância. Ele reconhecia a legitimidade das minhas dúvidas e via que uma crise espiritual estava me entristecendo. Para ele eu coloquei minhas questões angustiadas a respeito da natureza da crença cristã na existência de um Deus e a divindade do Cristo; a respeito da atitude cristã para com outros credos; sobre a eternidade dos céus e dos infernos, e a natureza irremediavelmente má de Satã. E, o mais importante, eu perguntei: “como posso eu me desenvolver mais espiritualmente?”. Ele comparou a crença cristã àquela pessoa que nunca tinha viajado ao exterior, mas acreditava na existência da Itália. Ele se referiu a documentos cristãos mais esotéricos, assegurando-me que eu poderia acreditar na sabedoria do clero que os estudou. Ele falou na Revelação Divina e o papel que tinha na Igreja. Assegurou-me de que poderia por minha fé na oração, na devoção e na obediência à vontade de Deus, como elucidada pelos seus representantes na terra, particularmente o Papa. Tanto quanto eu respeitava o Arcebispo, estranhamente eu não me dei por convencida por seus argumentos. Eu reli atentamente a Bíblia mais uma vez; li Chardin e Nietszche. Tentei contemplar o Cristianismo de forma bem serena, embora parecia beirar a blasfêmia. Eu sabia que no Cristianismo tudo aquilo que fosse bom e desejável, saudável e amável, era projetado numa figura onipotente chamada “Deus”. “Deus” é o bem último, e já que o homem não pode tornar-se “Deus”, a bondade no homem resume-se a refletir a bondade de Deus através da obediência. Se um cristão for tomado pela dúvida, ele deve redobrar suas orações, a fim de aumentar sua fé no “Deus que trabalha de maneiras misteriosas”. Desobediência a Deus é condenada como orgulho e blasfêmia. A antítese à bondade de Deus é a maldade de Satã. Em Satã projeta-se tudo o que é vil, destrutivo e não-saudável. Ele é o arquétipo da maldade, o que contrasta e polariza com o arquétipo da bondade e virtude. E estes são as bases do Cristianismo. Eu comecei a compreender que se as pessoas vêem o mundo em termos de uma bondade inquestionável e de uma maldade irremediável, e se considera que o homem é impotente frente à onipotência de Deus, então a pessoa fatalmente cai numa posição de insegurança, medo e dependência crônicas. Sabia disso através de minha própria experiência. E podia reconhecer o mesmo nos outros à minha volta. Isto é, suponho, o ideal cristão de humildade - levar cada um sua cruz de cada dia. Eu aceitaria este tipo de desafia com alegria se tivesse indicações de que funcionariam. Mas a mim só levaram a um sentido de inadequação e frustração. Necessitava exercitar minha razão. Não podia vender minha alma a ninguém, nem mesmo a Deus. Mudei-me para Londres e descobri o que viria a ser minhas novas catedrais - as galerias de arte, que me abrigavam como os portos abrigam navios. Lá eu descobri a união mística que eu procurei tanto: a união da beleza com a verdade. Por vezes estas qualidades saíam cantando dos quadros, por outras eram somente sussurros. Eu amava Picasso e Braque, Matisse e Rembrandt, e as figuras dançantes de Degas, tão diferentes das estátuas mortificadas que tinha visto nos conventos. Elas transbordavam um mundo de vida e vitalidade. E entrei aliviada nesta vida. Comecei a pintar coisas com traços grossos e coloridos, através do que todas as minhas frustrações enclausuradas pareciam fluir. “Estou livre!”, cantaria meu coração diversas vezes...Tinha dado um adeus a Deus, a Jesus, à Virgem Maria e a todo séquito de freiras e padres que haviam moldado meu mundo. A arte torneou-se minha ferramenta para o crescimento espiritual. Ela trazia minha emoções à tona e proveu-me com insights. Determinei-me a passar um verdadeiro testemunho da minha experiência e insights, como eles surgiam, já que o hábito de auto-censura havia sido suprimido. Enquanto absorvida em minha arte, experimentava uma alta consciência, semelhante às experiências místicas de infância, com um senso de não-eu no qual parecia voar direto para o reino dos anjos. Entretanto, enquanto a arte que me inspirava era refinada e bela, minha
própria ate era turbulenta e revoltada. Eu era muito rica em simbolismos,
mas os símbolos eram privados, relatando somente meus significados
e emoções. As pinturas tinham uma presença misteriosa
e compulsiva. Na escola de arte, meus tutores achavam meu trabalho tanto
interessante como perturbador. Figuras atormentada permaneciam isoladas
ante uma paisagem desolada. Estas imagens pareciam-se com as de Munch,
ou as de Van Gogh em seu estado mais depressivo. Minhas telas tornaram-se
um espelho onde surgiam as figuras de minha infância cristã.
Quanto mais exatamente eu as pintava segundo minhas visões, tanto
mais eu me sentia livre delas. De início, então, a pintura
foi uma terapia. Era um grande alívio dar forma e cor a estas figuras,
e comisso exorcizar as realidades que simbolizavam, que eram, afinal, as
realidades psicológicas, culturais e religiosas que havia sempre
conhecido. Eu estava refazendo o mundo “segundo minha própria imagem”.
Minha arte começava a mudar. Tornou-se mais filosófica, menos preocupada com a auto-expressão; e eu lia ostensivamente, travando conhecimento com as teorias ocidentais da arte e da cultura, bem como com o misticismo oriental. Eu tateava adiante intuitivamente, seguindo uma direção já sugerida em meus sonhos. Era uma procura vaga e não verbalizada, mas tinha uma certa urgência. A idéia de retornar à moralidade cristã era tão banal e irrelevante quanto permanecer ao sabor do niilismo que me envolvia. Eu tinha uma intensa convicção de que o mundo era penetrado pela impermanência. Nem as pessoas nem as coisas, nem a arte nem a filosofia, poderiam fazer frente à inexorável impermanência. Por trás de tudo estava um esqueleto fantasmagórico. Ele dizia: “Dê-me uma chance, e nem eu nem você, nem nada mais existirá”. Longe de ser mórbida, esta visão despertava em mim uma faculdade interna vital, e consequentemente fazia-me agir. Meditação, eu? Não. Eu já era suficientemente devaneadora. Ainda assim, após minha primeira experiência com a meditação budista eu achei que tinha finalmente encontrado a base da minha busca. Então, comecei a estudar o Nobre Caminho Óctuplo de Buddha e senti que tinha encontrado uma maneira de fazer frente à impermanência e abrir as portas à Realidade maior. A ética budista me impressionava com sua ênfase na motivação e com seus níveis de habilidade. Fui inspirada pela amizade espiritual, e através da meditação aprendi a cultivar aqueles estados de alta consciência que sempre procurava na vida. Comecei a preocupar-me tanto comigo quanto os outros; tornei-me mais criativa e consciente. O Budismo não somente oferece uma Visão da beleza e da verdade, mas também oferece um Método, passível de completa realização na vida cotidiana. Muito mais uma arte do que uma religião, os Ensinamentos do Buddha vão além destas duas coisas. É uma alternativa àquela submissão a um Deus inventado; não é uma promessa vaga de salvação, nem um lampejo ilusório que aparece na vida e depois some. Sentia uma realidade diferente surgindo das profundezas de meu ser. Eu havia deixado o Catolicismo, havia deixado Deus para trás. Tinha finalmente chegado “em casa”. A maioria dos budistas ocidentais vem de um background cristão, no qual a noção de um Deus eterno, onipotente e todo-amor, criador do cosmos e suas leis, é central à crença. Hoje em dia muitos teólogos não mais preconizam exatamente esta visão de Deus. Alguns vêem Deus simplesmente como a urgência para o crescimento espiritual, ou como Ser. Mas a maioria de nós não fomos criados com este tipo de orientação espiritual, que é sofisticada, nem o cristão comum adere a estas noções - se ele ou ela algum dia já ouviu falar delas. Uma pesquisa recente nos EUA mostrou que a maioria dos americanos crêem na interpretação literal da Bíblia. A visão que muitos budistas ocidentais herdaram, conscientemente ou não, é portanto a de um Deus criador, que coloca as leis morais para suas criaturas, julga e condena aqueles que as transgridem. Quando os cristãos e outros que aderem à visão monoteísta perguntam como os budistas vêem os credos monoteístas, os budistas ocidentais tendem a uma das seguintes reações: ou saem polidamente pela tangente, tentando evitar atritos com outros credos nesta área, ou então usam esta diferença (freqüentemente com pouca compreensão) para dar vazão aos seus ressentimentos contra a autoridade religiosa deixada para trás e na qual agora não acreditam mais - colocando a crença do outro abaixo, no processo. Vi estas reações algumas vezes. De fato, eu também fiz desta forma quando me iniciei no Budismo. Como exemplo da primeira reação, lembro-me de um monge Theravada, um bikkhu, respondendo às perguntas num encontro de estudantes de Teologia e Estudos Religiosos na Universidade de Londres. Como a maioria dos presentes eram cristãos, pensei em avivar a discussão perguntando o que os budistas pensavam da noção cristã de um deus criador. O bikkhu respondeu que tais assuntos eram apenas pontos de vistas, e a intenção do Budismo era ir além dos pontos de vistas. A implicação era que se a pessoa acreditasse ou não num deus criador não importava. Entretanto, contrapus que o Budismo diz que existem pontos de vistas corretos e errôneos, e somente os primeiros são ditos levar além de todos os pontos de vistas. Em que tipo de ponto de vista se encaixava um deus criador? Não consigo me lembrar da resposta, a não ser que ela foi um tanto inadequada e evasiva - talvez o monge estivesse sendo diplomático - então deixei o assunto morrer. O Budismo enfatiza o Caminho do Meio o qual, como uma aproximação à prática religiosa, evita todos os extremos, como por exemplo, do sensualismo e do estrito ascetismo. Com relação à vida após a morte, o ensinamento budista é o caminho do meio entre o eternalismo (crença numa alma eterna que vive para sempre) e a aniquilação (crença na morte como um final à existência). O Budismo expressa sua alternativa na doutrina da Originação Dependente, a qual é expressão do Caminho do Meio. Expressa de maneira simples, a Originação Dependente ensina que todas as coisas vêm à existir devido a causas e condições, em dependência de causas e condições. Sendo assim, nada (manifestado) pode ser dito possuir uma natureza eterna e essencial, inclusive o homem. [Tudo é um fluxo psico-físico de agregados, que surgiram devido à causas e condições passadas e projetam causas e condições para o futuro. O que existe são fenômenos, processos ou acontecimentos, como fluxos, e a morte não passa de uma etapa dentro de um fluxo, que de certa forma é cíclico para os budistas ; a Roda da Vida e da Morte - o Samsara]. Devido à pró;pria natureza impermanente e cambiante que uma radical transformação (consciente) espiritual torna-se possível. [Se existisse o destino, ou a vontade de Deus, ou alma eterna, isto é, coisas fixas e imutáveis, não haveria a possibilidade de mudança, fosse qual fosse]. O Caminho do Meio é como os Despertos vêem as coisas, mas não é como nós, seres não-acordados vemos ou percebemos as coisas, mesmo embora possamos ter uma compreensão intelectual do assunto. Os “não-acordados”, em suas ações e atitudes, tenderão a cair num extremo ou noutro. Porém, não apreender o Caminho do Meio e cair num extremo não é uma mera questão de qual posição filosófica acalentamos. Na medida em que os pontos de vistas ou idéias são expressões também do que somos, não perceber o Caminho do Meio é evidente em nossas atitudes, incluindo em nossas atitudes com relação à noção de um Deus Criador. O que então a tradição budista tem a dizer sobre tais pontos de vistas monoteístas? O Budismo Primitivo teve de interagir com diversas formas de teísmo, encontradas expressas nas escrituras da religiosidade hindu, tais como os Upanishads e os Vedas. Os deuses bramânicos, tais como Prajapati, Varuna, Indra, Ishvara, Brahma etc, são mencionados nas escrituras budistas, nos Sutras em Páli (mas num contexto e funções diferentes do Hinduísmo). Estas referências não são relevantes para as nossas concepções modernas de Deus, porque o teísmo bramânico é uma mistura inextricável de panteísmo (identificação de deus e natureza), panenteísmo (similar, mas com deus não somente imanente, mas transcendente), e henoteísmo (onde existem muitos deuses, mas um é supremo). Portanto, não é bem a condição cultural-religiosa judaico-cristã do ocidente. Entretanto, nos Sutras em Páli encontramos umas poucas referências a Ishvara (deus como criador e governante) e a Brahma ou Mahabrahma, que funciona como uma espécie de deus criador no Hinduísmo. No Sutra Brahmajala do Digha-Nikaya, o Buddha nos conta que existem alguns mestres que ensinam que tudo começou devido a um deus criador. O Buddha nos diz como a noção de um deus criador surgiu entre as pessoas em algum ponto da história do homem. Na cosmologia hindu, o universo inteiro passa por ciclos infindáveis de criação e destruição, e surge um ponto onde o universo começa a girar. Diz-se que os únicos seres existentes então são os brahmas, ou seres das mais altas esferas. Um desses seres cai num plano mais baixo que é vazio, devido ao fim de seu tempo de vida natural ou devido ao seu mérito. Após viver por lá por um tempo, este brahma começa a sentir-se só e deseja companhia. Neste exato momento, outros brahmas também caem no plano do brahma solitário, o qual começa a pensar que os outros seres surgiram devido ao seu desejo. Ele “conclui: “Eu sou Brahma, o Grande Brahma, o Conquistador, o Invencível, o que tudo vê, o Todo-Poderoso, o Senhor, o Ordenador, Pai de tudo o que é e será”. Os outros brahmas concordam, porque vêem que ele estava lá primeiro. A crença num deus criador começa quando um desses seres renasce em nosso mundo e, em meditação, relembra que em vida prévia foi um brahma (agora caído), e nada mais antes disso, e relembra de quando sentia e pensava como um Grande Brahma, que nos cria e é eterno. O Buddha não nega a existência de seres, nem a existência de um ser que pensa que é o “Pai de tudo o que é e será”, mas sugere que tal ser está sofrendo de uma profunda auto-ilusão. Assim, a crença num deus criador surge como resultado da ignorância devido à uma experiência espiritual limitada. Portanto, quando vemos neste mito do Bhradaranyaka Upanishad hindu, que todo o processo de criação é devido a Brahma (o Absoluto impessoal, que mais parece pessoal aqui) sentir-se sozinho no mundo, podemos nos perguntar se este relato budista em cima do mito não passa de uma sátira em cima da classe sacerdotal hindu. Se foi uma sátira ou não, a mensagem é inequívoca: a crença num deus criador surge devido às limitações impostas pela mente não-iluminada. É uma visão errônea e, portanto, deve ser eliminada. Em outra parte do Digha-Nikaya, o Kevaddha Sutra, Brahma é de novo presa do humor budista. É a história de um monge que sai em busca de “onde os quatro grandes elementos cessam” - o que é uma maneira de dizer “eem busca do Nirvana”. Ele medita, e atinge um estado no qual os vários céus da cosmologia hindu surgem à sua frente. À medida que vai subindo, de céu em céu, vai perguntando aos habitantes de cada plano se eles sabem “onde os quatro grandes elementos cessam”. Mas cada habitante admite sua ignorância, e sugerem que o deva (“deus”) do plano mais alto deva saber. Finalmente o monge chega ao plano onde vive o Grande Brahma. Quando ele pergunta ao Brahma se ele sabia “onde os quatro grandes elementos cessam”, o Brahma tenta dissimular tornando-se bombástico, declarando “Eu sou o Grande Brahma, o criador”. O monge não se intimida e pergunta novamente “onde os quatro grandes elementos cessam”. O Grande Brahma leva o monge para longe do alcance dos outros brahmas - que acham que Ele sabe tudo - e confessa ao seu ouvido que não sabe. E para recuperar sua autoestima, e Ele repreende o monge por não ter perguntado isso ao Buddha. Somente um Buddha sabe a resposta a esta pergunta. Mais uma vez o Budismo faz humor com o deus criador Brahma. Nestes exemplos não se tentou estabelecer argumentos racionais contra a existência de um deus criador, a fim de dissuadir as pessoas de tal ponto de vista. Na verdade não houve tentativas de duelar com a idéia de um deus criador. Os budistas primitivos achavam a idéia uma grande piada. As únicas sérias objeções a um deus criador nos Sutras em Páli encontram-se nos Anguttara-Nikaya e o Majjhima-Nikaya, onde se diz que se se acredita que toda experiência seja causada pela vontade e criação de Ishvara, então é devido a Ishvara que as pessoas cometem assassinatos, roubos, etc. Como o poeta Ashvaghosha do século I da Era budista pergunta, em seu Buddhacharita: “Se Ishvara é a causa de tudo o que acontece, para que o esforço humano pelas coisas?”. Um ponto de vista similar a esta visão fatalista encontra-se no Corão muçulmano e na doutrina Calvinista da predestinação. A maioria dos cristãos argumentaria que Deus provê o homem com livre arbítrio, e portanto, com responsabilidade pelos seus atos, mas isto levanta outra questão de que se ao homem foi dada liberdade de escolha, e esta liberdade foi criada ou proporcionada por um outro que, como se diz, é dito onipotente e onipresente, quanto se pode dizer que o homem é livre, ou tenha livre escolha? Antes de mais nada, o homem não deu seu palpite nesta matéria! [Pensemos o quanto o Cristianismo é ambíguo, oferecendo visões conflitantes com o livre arbítrio, como por exemplo, na história do Pecado Original de Adão e Eva, os quais tiveram a liberdade de escolher dada por Deus, mas que foram castigados pelo mesmo Deus por terem feito uma escolha! Além do mais, onde fica o livre arbítrio com a doutrina de que nós - seres ainda não existentes na época - somos impuros por herdar esta escolha desobediente e pecaminosa de Adão e Eva? Não são eles responsáveis pelo que fizeram? Porque eu é que tenho de ser responsável por eles?] Surge aqui uma questão ainda mais fundamental: por que Deus nos criou, em primeiro lugar? Alguns cristãos que eu perguntei disseram que é porque Deus deseja ser amado [carente?] por suas criaturas através da livre escolha delas. Podemos pensar que tipo de Deus é este que cria um universo repleto de dores e sofrimentos, que condena à danação eterna bilhões e bilhões de almas de seres que não agem como Ele deseja, a fim de que Seu desejo de ser amado seja satisfeito! Como o Ivan em “Os Irmãos Kamarazov” de Dostoyevsky sugere, mesmo embora se tema tal Deus, a pessoa acaba considerando-o com desdém, com apatia. No Abhidharmakosha, Vasubandhu, um mestre budista do século
IV, levanta a mesma questão:
Um tema parecido pode ser visto no Bhuridatta Jataka: “Se Brahma é o senhor do mundo e criador de uma multidão de seres, por que ele criou sofrimentos para o mundo, e com que propósito ele fez o mundo cheio de injustiças, falsidades, fraudes, e vaidades? Se é assim, o senhor dos seres é tão mau quanto sua criação, já que ele pôs injustiça onde deveria haver justiça. Isto é o que se conhece na filosofia ocidental como teodícia: como pode uma causa dita onisciente, onipotente, toda-amorosa e justa criar seres capazes de atos tão vis e cruéis? Nas tradições mais posteriores do Budismo, existem outras objeções mais intelectuais à existência de um deus criador. Por exemplo, como o filósofo Dharmakirti, do século VII, coloca, “se Deus é dito ser permanente, como pode uma coisa permanente criar coisas impermanentes?” O simples ato de criar implica em uma mudança de estado no criador. Contudo, nos trabalhos de grandes mestres da tradição budista, tais como Nagarjuna e Shantideva, encontramos poucas passagens devotadas a refutar a noção de um deus criador. Diferentemente do ocidente, onde tais argumentos foram sempre centrais à filosofia religiosa, na Índia eles sempre tiveram importância secundária. Por que isto é assim, só podemos especular. Voltando ao Caminho do Meio, o Budismo Primitivo considera o ponto de vista da crença num deus criador como extremo, e sua contrapartida é o ponto de vista extremo de que tudo surge fortuitamente. Como ponto de vista extremo, é errôneo, e pontos de vista errôneos não compõem o Caminho budista. Portanto, o monge que disse que manter tais pontos de vista não importam estava representando mal sua própria religião. Então o que é este Caminho do Meio? Talvez possamos depreender alguma coisa dos textos primitivos, os quais, enquanto não negavam a existência de seres que achavam que criaram o mundo, consideravam-nos como sofrendo de alguma auto-ilusão. Este ser, como qualquer fenômeno, seja um grão de poeira, ou um brahma, surge dependente de condições. Este é o Princípio da Originação Dependente ou Condicionada, o Caminho do Meio budista. A verdade deste assunto é vista com um grande bom humor. Humor no Caminho do Meio budista! |