Ser corintiano é ter atração pelo abismo

José GERALDO COUTO

da Equipe de Articulistas

O tropeço do Corinthians diante do Racing, depois de uma gloriosa série invicta, talvez seja apenas um acidente de percurso. Mas, para quem conhece bem a alma alvinegra, a derrota traz à tona uma característica atávica do time: a vocação para o sofrimento.

Corintiano que se preze não pode relaxar nunca, e sabe disso. A felicidade cômoda e burguesa que terão talvez os torcedores de outros clubes é vedada ao fiel alvínegro. Quando tudo está indo bem para o seu time, o corintiano sabe que, na primeira esquina, a desgraça está à espreita. Cada rodada é um sobressalto. O time vence muito, claro, eventualmente conquista títulos e glórias, mas sempre com algum elemento de drama, de risco, de suspense.

Daí a tradição das vitórias "de virada"; dos gols milagrosos no último minuto - e também das derrotas inesperadas, dos títulos jogados fora por desequilíbrio emocional, das brigas e das crises.

Os corintianos mais antigos tiveram seu hábito de sofrer fortalecido por 23 anos de fila (de 1954 a 1977), período no qual a fiel torcida só fez aumentar, em número e intensidade. O que explica tamanho masoquismo?

Como corintiano forjado nos anos de chumbo da "longa fila" (só vi meu time campeão aos 20 anos), tendo a ver o lado positivo dessa atração pelo abismo que nos caracteriza.

Ser corintiano é encarar a vida como uma aventura plena, é rejeitar a segurança medrosa

 

das cadeiras numeradas, é sobretudo desafiar o bom senso e as conveniências do dia-a-dia.

Ser corintiano é meter os pés pelas mãos, invocar divindades sinistras, apaixonar-se sempre pela mulher errada, andar pelo mundo como um anarquista com uma bomba-relógio escondida.

Ser corintiano é saber que o sofrimento é necessário para dar mais sabor aos triunfos. A vitória corintiana não é uma alegria qualquer: é uma embriaguez, uma vertigem, uma festa dionisíaca.

Mas talvez todo esse papo seja só uma tentativa desajeitada de expurgar a dor-de-corno da derrota para um timeco, ainda por cima argentino.

e-mail: jgcouto@uol.com.br

FOLHA DE São PAULO esporte

quinta-feira, 20 de agosto de 1998

 

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