Existem pelo menos duas maneiras de abordar a relação entre música e vontade em O Nascimento da Tragédia. A mais comum é aquela que interpreta esta primeira obra publicada de Nietzsche à luz da filosofia de Arthur Schopenhauer. A interpretação que desenvolveremos aqui não seguirá este caminho, em vez disso avaliaremos alguns pontos de divergência entre este primeiro Nietzsche e o filósofo pelo qual ele manifestou ter sido influenciado na juventude. A partir das divergências entre Nietzsche e Schopenhauer, nosso objetivo é marcar uma diferença fundamental entre suas estéticas, tendo como ponto central o acesso direto à vontade que a arte musical teria em ambas.
No jovem Nietzsche, a arte das Musas é apresentada como sendo dotada de uma capacidade especial, a saber, de acessar o que, dentro da filosofia alemã (em Kant e Fichte), ficou conhecido como coisa em si e que, especialmente em Schopenhauer, foi identificado como vontade (Wille). A música seria então uma arte privilegiada diante das demais modalidades artísticas; mas também seria privilegiada diante da própria Ciência, à medida em que é, tanto para o jovem Nietzsche quanto para Schopenhauer, a única via de acesso à verdade do mundo; a única linguagem (Sprach) capaz de comunicar o em si do mundo. Estaria configurada assim o que o próprio Nietzsche chamou de "metafísica do artista".
Todavia -tal como pretendemos demonstrar-, enquanto a relação entre música e vontade em Schopenhauer se dá por via direta , em Nietzsche esta relação nunca é direta (direktem) ou imediata (unmittelbar), em vez disso ela é simbólica (symbolische). Deste modo, ao aprofundarmos nosso entendimento sobre o caráter mediador do simbolismo (symbolik) em Nietzsche, nos colocamos finalmente diante de um profundo distanciamento entre os dois filósofos, o que por fim nos levaria, obrigatoriamente, a rever o estatuto metafísico do pensamento do jovem Nietzsche -delineando, nestes termos, o viés de uma possível transição da "metafísica do artista" (propriamente schopenhaueriana) em direção ao germe de uma "psicologia da arte" (notadamente nietzscheana).
Em sua obra principal, O mundo como vontade e representação, Schopenhauer, mantendo a distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si (1), nos apresenta um mundo sob dois aspectos: (a) como fenômeno (MVR I), o mundo é para ele apenas aparência: representação que obedece ao princípio de razão suficiente (2); (b) como coisa em si (MVR II), porém, o mundo é pura vontade: uma força cega, sem razão (grundlos) e caótica, a qual nosso pensamento não pode acessar. O homem, como parte do mundo, é concebido como produto da coisa em si, ele é o que é querido pela vontade; ele é impulso e objetivação da vontade (MVR 25) (3), que existe, segundo Schopenhauer, para além de toda explicação racional. Por este motivo, o fio da causalidade, do pensamento racional, não nos permite qualquer acesso a coisa em si que é a vontade. Ela se encontra, portanto, fora do domínio do "princípio de razão", muito embora suas manifestações fenomênicas sejam submetidas a este princípio. Isto é possível apenas porque a própria razão é produto da vontade e, ainda que tal produto se encontre no interior da esfera do conhecimento, os mecanismos de produção permanecem, à luz da razão, uma completa incógnita.
Entretanto, para Schopenhauer, a vontade se objetiva em diversos graus, não apenas na forma dos entes grosseiros que existem no mundo (-tal como o homem); mas também sob a forma de idéias, as quais correspondem ao grau mais imediato de objetivação da vontade. Platonicamente, Schopenhauer nos apresenta tais idéias como "formas e propriedades invariáveis originárias de todos os corpos naturais, orgânicos e inorgânicos" (MVR 30). E por não experimentar pluralidade nem mudança, a idéia está por sua vez fora do âmbito da representação, i.e. do fenômeno, não se submetendo, portanto, ao princípio de razão, o que consequentemente distancia Schopenhauer do "otimismo socrático". Mesmo assim, ainda que através da razão não se tenha acesso à idéia, esta interdição não se faz total em Schopenhauer; pois, em sua filosofia, a arte seria capaz de nos levar até a idéia e assim, por intermédio dela, chegaríamos finalmente a esta verdade primordial e sem sentido que é a própria vontade cega do mundo. Isto só é possível porque, para ele, a arte "é a contemplação das coisas independente do princípio de razão" (MVR 36). Nesse estado de contemplação estética, o homem se torna "sujeito puro do conhecimento". Desta forma, ainda que de modo indireto, nos é oferecido "um claro espelho do ser do mundo" (MVR 36).
Há, no entanto, uma arte em especial para Schopenhauer: -a música. Nela,
mais do que em qualquer outra manifestação artística, se faz possível o acesso
ao cerne do mundo (MVR 52); não mais por intermédio das idéias, mas de
modo imediato. "Porque a música é uma reprodução e uma objetivação tão imediata
de toda a vontade [...] como o são as idéias" (MVR 52). Isto
porque "Ela nos dá sua essência sem qualquer acessório, e, por
conseqüência, sem qualquer motivo." (MVR 52) Por isso, para
Schopenhauer - aqui parafraseando Leibniz (4)
-, "a música é um exercício de metafíísica inconsciente, no qual o espírito
não sabe que faz filosofia." (MVR 52) Ou ainda, "uma linguagem
[Sprach] universal do mais alto grau" (5).
I) Em O Nascimento da Tragédia, muito embora a música seja também considerada a arte mais privilegiada dentre as demais, encontramos apenas 3 passagens em que o autor se refere à arte musical como sendo capaz de acessar diretamente a vontade, todas as três concentradas na seção 16 e todas sob a sombra de Schopenhauer. Na primeira passagem, Nietzsche cita a idéia que "se tornou manifesta a apenas um dos grandes pensadores" (Schopenhauer), de que a música é "reflexo imediato da vontade mesma". Na segunda, citando entre aspas O Mundo como Vontade e Representação, Nietzsche repete que a música é "reflexo imediato da própria vontade". Por último, concluindo logo após a citação, diz ele: "Entendemos portanto, segundo a doutrina de Schopenhauer, a música como linguagem imediata da vontade". São estas, porém, as palavras de um filósofo enunciando as idéias de outro, já que em vários momentos desta sua primeira obra, Nietzsche se refere à música como sendo arte simbólica:
Agora a essência da natureza deve expressar-se por via simbólica; um novo mundo de símbolos se faz necessário, todos os gestos bailantes dos membros em movimentos rítmico. Então crescem as outras forças simbólicas, as da música, em súbita impetuosidade, na rítmica, na dinâmica e na harmonia. Para captar esse desencadeamento simultâneo de todas as forças simbólicas, o homem já deve ter arribado ao nível de desprendimento de si próprio que deseja exprimir-se simbolicamente naquelas forças [...] (NT 2. V. também NT 5, 6, entre outros)
Eis a expressão do ser interno do mundo em O Nascimento da Tragédia: um símbolo e não - tal como em Schopenhauer- a objetivação imediata da vontade sob a forma musical. A vontade, portanto, se manifestaria através da música; mas apenas porque a arte musical é um "mundo de símbolos", ou, mais precisamente, porque ela é dotada de "forças simbólicas". Cabe, portanto, compreender isto que Nietzsche chama de força simbólica e então verificar em que medida a relação simbólica se distancia da relação direta ou imediata. -Devemos então determinar em que sentido e por que razão a relação simbólica não pode ser considerada imediata.
Para isso, antes de tudo, faz-se necessário inverter a relação entre música e vontade. Pois, em Nietzsche, a própria música não é vontade, mas aparece como vontade: "pois é impossível que a música, segundo a sua essência, seja vontade, já que ela, como tal, deveria ser completamente banida do domínio da arte - porquanto a vontade é em si o inestético; porém [ela] aparece como vontade." (NT 6). Dito de outro modo: a música não é a aparência da vontade, e sim é a vontade a aparência da música. (6) Ao dizer isso, Nietzsche se separa consideravelmente da metafísica schopenhaueriana, ao mesmo tempo que separa seu Dionísio (verdadeira essência da música) da vontade de Schopenhauer. - O deus Dionísio, já não pode mais ser identificado com a vontade, visto que a vontade é considerada agora como mera aparência, manifestação da arte dos tons. A vontade, portanto, não se manifesta através da música. O que temos aqui é justamente o movimento oposto, pelo qual a música dá à luz a vontade. Neste sentido, Nietzsche não trilha exatamente o caminho de Schopenhauer, (7) o que nos obriga a ver a relação entre música e vontade em Nietzsche por um outro viés, e assim talvez encontrar este "novo mundo de símbolos".
II) Embora Nietzsche afirme que a música não é a aparência da vontade, e sim o inverso, poderíamos nos perguntar se em O Nascimento da Tragédia não há uma transposição onde Dionísio assume o lugar da vontade schopenhaueriana. Seria o caso de uma apropriação terminológica, pela qual Nietzsche diz Dionísio para não dizer vontade, ao passo que diz vontade para não se referir àquilo que ele chama de fatos mais universais [alleruniversalsten Tatsachen] (8). Essa transposição seria possível porque de fato há uma relação íntima entre a vontade de Schopenhauer e o deus Dionísio de Nietzsche. Afinal, para este último, a essência da música é o próprio deus grego. Paralelamente, em Schopenhauer, a música é objetivação da vontade. Dionísio e vontade se encontram, portanto, de maneira bastante relevante aqui. Ambos são instâncias exteriores à cena, (9) se encontram sempre em outro plano e não se manifestam senão através de uma materialização da e na arte musical. Sendo assim, Dionísio e vontade são transcendentes, (10) i.e. são realidades propriamente metafísicas, que existem para além de toda aparência. Deste modo, Nietzsche, tal como Schopenhauer, permanecerá preso a um pensamento metafísico; muito embora, ao avaliarmos o papel que a música assume em cada autor, verificamos por fim que tais metafísicas se constituem de modo totalmente diferente.
a) Em Schopenhauer, a música é focalizada como um instrumento de contemplação da vontade porque ela é, ao mesmo tempo, a materialização da vontade (tal como um código pelo qual a vontade se manifesta), mas também é um anestésico (que nos permite ler esse código). Em Nietzsche, porém, a música é focalizada em seu aspecto produtivo: como elemento fundamental para a realização da tragédia. Deste modo, é na obra de arte dionisíaca que encontramos o verdadeiro fundamento da tragédia Ática. Por esta razão dirá Nietzsche: "a melodia incessantemente geradora lança à sua volta centelhas de imagens" (NT 6). Ou ainda, "A força hercúlea da música: é ela que, chegando na tragédia à sua mais alta manifestação, sabe interpretar o mito com nova e mais profunda significação; de tal modo que já tivemos antes de caracterizar isso como a mais poderosa faculdade da música." (NT 10) Ou mais adiante: "Esse mito moribundo é agora capturado pelo gênio recém-nascido da música dionisíaca: e em suas mãos floresce ele mais uma vez, em cores como jamais apresentara, com um aroma que excita o pressentimento nostálgico de um mundo metafísico." (Idem) -Percebemos este caráter predominantemente produtivo da música não apenas ao longo da obra, mas também a partir, inclusive, do seu título, onde se lê: O nascimento da tragédia a partir do espírito da música.
b) Notamos ainda que estes diferentes papéis assumidos pela música se correspondem com os também diferentes sentidos que a tragédia encontra nos dois filósofos. Deste modo, delineamos duas perspectivas bastante diversas: por um lado a de Nietzsche, que vê na tragédia a expressão de uma alegria (11) -perfeitamente compatível com o caráter produtivo da música nietzscheana; e por outro a perspectiva de Schopenhauer, que vê na tragédia apenas a "renúncia à vontade de viver" (12), o "caminho da resignação" (13) -também compatível com o caráter contemplativo que encontramos em sua música. Por isso, somos levados a considerar as palavras de Charles Andler: "Nietzsche tentou ser um interprete rigoroso e um adversário leal. Mas ele nunca foi servo do pensamento schopenhaueriano." (14)
Vemos, portanto, que a metafísica no jovem Nietzsche adquire um sentido diferente da de Schopenhauer. Conforme vimos, não há qualquer caráter contemplativo na música nietzscheana. Não se trata, portanto, de conhecer nem a vontade interna do mundo, nem Dionísio. Nietzsche não está interessado em constituir "um puro sujeito do conhecimento" como Schopenhauer (MVR 34). O que encontramos em Nietzsche é uma dimensão psicológica da música, a qual tem o poder de afetar o ouvinte, destruindo sua consciência individual, tal como no êxtase produzido pela embriaguez. Não nos referimos aqui à psicologia que Nietzsche desenvolverá em sua obra de maturidade; já que Nietzsche ainda não está interessado em avaliar os tipos psicológicos (forte ou fraco, ativo ou reativo) que comporiam uma determinada obra. Em vez disso, a dimensão psicológica que aqui se estabelece se explica através do "conforto metafísico" produzido pela música. Nas palavras de Richard Schacht: "Nós podemos ser confortados (mais ainda) pela transformação de nossa identidade psicológica que nos habilita a alcançar um senso de unidade com esta indestrutível e inexaurível realidade subjacente, da qual nós somos manifestações verdadeiramente." (15) Neste sentido, a "força simbólica" da música é uma força de amálgama, uma força que une o homem a esta realidade subjacente (16), produzindo com isso o conforto metafísico. Esta união, entretanto, não é nada mais que uma experiência psicológica, na qual o homem é destituído de uma consciência individual e passa a assumir uma postura de aquiescência feliz com relação à falta de sentido original do mundo, i.e. com relação à força cega, sem razão (grundlos) e caótica, a qual nosso pensamento não pode acessar. Através da experiência oferecida pela música, a falta de sentido original do mundo, transfigurada simbolicamente em dissonância musical, passa agora a ser inscrita no próprio homem. Temos assim, por intermédio da dissonância, a repetição de uma força caótica originária no próprio homem, o que de modo algum é uma representação ou contemplação da vontade ou de Dionísio. E é neste sentido que compreendemos o caráter simbólico da música: esta reprodução da dissonância no ouvinte, tal como se escreve simbolicamente toda dissonância sobre um pentagrama. Por isso, repetimos com Nietzsche, "o homem deixa de ser artista e passa a ser obra de arte", lugar onde se resolve a dissonância original.
III Concluímos, portanto, que, ainda que se manifeste em O Nascimento da Tragédia a mesma dicotomia metafísica de Schopenhauer (a mesma separação entre coisa em si e fenômeno), a filosofia do jovem Nietzsche não compartilha em momento algum com a solução schopenhaueriana. Pois a música em Nietzsche não é capaz de acessar a verdade interna do mundo. Dito de outro modo, embora Dionísio seja para a música nietzscheana o que a vontade de Schopenhauer também é para a arte dos tons, a música em Nietzsche se concentra em seu caráter produtivo, o que de modo algum garante o conhecimento da instância originária da qual esta mesma arte partiu. A música, em vez disso, exprime a vontade tal como se exprime um objeto, i.e. tal como se constitui um objeto que emana de si próprio. Isto porque a música, como já foi dito, não é a aparência da vontade, e sim é a vontade a aparência da música. Vontade aqui significando não mais o caos originário (como em Schopenhauer), mas as sensações de prazer e desprazer que acompanham todas as representações. (17) Vemos, portanto, que a sutil distinção entre relação simbólica e relação direta somente pode ser compreendida a partir desta já não tão sutil diferença entre o caráter contemplativo e o caráter produtivo da música - onde até a própria vontade passa a ser um produto da arte musical. O que por fim nos leva a encontrar, no pensamento metafísico do jovem Nietzsche, o viés de uma possível transição, localizando este primeiro Nietzsche em algum ponto entre Nietzsche e Schopenhauer.