Os
juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais, são a priori, isto é independentes dos azares da
experiência, sempre particular e contigente. À primeira vista, parece evidente
que esses juízos a priori são juízos analíticos. Juízo analítico é aquele
cujo predicado está contido no sujeito. Um triângulo é uma figura de três
ângulos: basta-me analisar a própria definição desse termo para dizê-lo. Em
compensação, os juízos sintéticos,
aqueles cujo atributo enriquece o sujeito (por exemplo: esta régua é verde),
são naturalmente a posteriori; só
sei que a régua é verde porque a vi. Eis um conhecimento sintético a posteirori que nada tem de necessário (pois
sei que a régua poderia não ser verde) nem de universal (pois todas as réguas
não são verdes).
Entretanto, também existem (este enigma é o ponto de
partida de Kant) juízos que são, ao mesmo tempo, sintéticos
e a priori! Por exemplo:a soma dos ângulos de um triângulo equivale
a dois retos. Eis um juízo sintético
(o valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à idéia de triângulo) que, no
entanto, é a priori. De fato eu não
tenho necessidade de uma constatação experimental para conhecer essa
propriedade. Tomo conhecimento dela sem ter necessidade de medir os ângulos com
um transferidor. Faço-o por intermédio de uma demonstração rigorosa. Também em
física, eu digo que o aquecimento da água é a causa necessária de sua ebulição
(se não houvesse aí senão uma constatação empírica, como acreditou Hume, toda
ciência, enquanto verdade necessária e universal, estaria anulada). Como se
explica que tais juízos sintéticos
e a priori sejam possíveis?
Eu demonstro o valor da soma dos ângulos do triângulo
fazendo uma construção no espaço. Mas por que a demonstração se opera tão bem
em minha folha de papel quanto no quadro negro... ou quanto no solo em que Sócrates traçava figuras
geométricas para um escravo? É porque o espaço, assim como o tempo, é um quadro
que faz parte da própria estrutura de meu espírito. O espaço e o tempo são
quadros a priori, necessários e
universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira parte da Crítica da Razão Pura, denominada Estética transcendental. Estética significa
teoria da percepção, enquanto transcendental significa a priori, isto é, simultaneamente anterior à
experiência e condição da experiência). O espaço e o tempo não são, para mim,
aquisições da experiência. São quadros a priori
de meu espírito, nos quais a experiência vem se depositar. Eis por
que as construções espaciais do geômetra, por mais sintéticas que sejam, são a priori, necessárias
e universais. Mas o caso da física é mais complexo. Aqui, eu falo
não só do quadro a priori da
experiência, mas, ainda, dos próprios fenômenos que nela ocorrem. Para dizer
que o calor faz ferver a água, é preciso que eu constate. Como, então, os
juízos do físico podem ser a priori,
necessários e universais?
É porque, responde Kant, as regras, as categorias,
pelas quais unificamos os fenômenos esparsos na experiência, são exigências a priori do nosso espírito. Os fenômenos,
eles próprios, são dados a posteriori,
mas o espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de
unificação dos fenômenos entre si, uma exigência de explicação por meio de
causas e efeitos. Essas categorias são necessárias e universais. O próprio
Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença na causalidade, não
emprega necessariamente a categoria a priori
de causa na crítica que nos oferece? "Todas as intuições sensíveis estão
submetidas às categorias como às únicas condições sob as quais a diversidade da
intuição pode unificar-se em uma consciência". Assim sendo, a experiência
nos fornece a matéria de nosso conhecimento, mas é nosso espírito que, por um lado,
dispõe a experiência em seu quadro espacio-temporal (o que Kant mostrará na Estética transcendental) e, por outro,
imprime-lhe ordem e coerência por intermédio de suas categorias (o que Kant
mostra na Analítica transcendental).
Aquilo a que denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera
mole, receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas
estruturas a priori, constrói a
ordem do universo. Tudo o que nos aparece bem relacionado na natureza, foi
relacionado pelo espírito humano. É a isto que Kant chama de sua revolução copernicana. Não é o Sol, dissera
Copérnico, que gira em torno da Terra, mas é esta que gira em torno daquele. O
conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objeto exterior. É o próprio
espírito humano que constrói - com os dados do conhecimento sensível - o objeto
do seu saber.
Na terceira parte de sua Crítica
da Razão Pura, na dialética
transcendental, Kant se interroga sobre o valor do conhecimento
metafísico. As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o conhecimento,
limitam o seu alcance. O que é fundamentado é o conhecimento científico, que se
limita a por em ordem, graças às categorias, os materiais que lhe são
fornecidos pela intuição sensível.
No entanto, diz Kant, é por isso que não conhecemos o
fundo das coisas. Só conhecemos o mundo refratado através dos quadros
subjetivos do espaço e do tempo. Só conhecemos os fenômenos e não as coisas em
si ou noumenos. As únicas intuições
de que dispomos são as intuições sensíveis. Sem as categorias, as intuições
sensíveis seriam "cegas", isto é, desordenadas e confusas, mas sem as
intuições sensíveis concretas as categorias seriam "vazias", isto é,
não teriam nada para unificar. Pretender como Platão, Descartes
ou Spinoza
que a razão humana tem intuições fora e acima do mundo sensível, é passar por
"visionário" e se iludir com quimeras: "A pomba ligeira, que em
seu vôo livre fende os ares de cuja resistência se ressente, poderia imaginar
que voaria ainda melhor no vácuo. Foi assim que Platão se aventurou nas asas
das idéias, nos espaços vazios da razão pura. Não se apercebia que, apesar de
todos os seus esforços, não abria nenhum caminho, uma vez que não tinha ponto
de apoio em que pudesse aplicar suas forças".
Entretanto, a razão não deixa de construir sistemas
metafísicos porque sua vocação própria é buscar unificar incessantemente, mesmo
além de toda experiência possível. Ela inventa o mito de uma
"alma-substância" porque supõe realizada a unificação completa dos
meus estados d'alma no tempo e o mito de um Deus criador porque busca um
fundamento do mundo que seja a unificação total do que se passa neste mundo...
Mas privada de qualquer ponto de apoio na experiência, a razão, como louca,
perde-se nas antinomias, demonstrando, contrária e favoravelmente,
tanto a tese quanto a antítese (por exemplo: o universo tem um começo? Sim pois
o infinito para trás é impossível, daí a necessidade de um ponto de partida.
Não, pois eu sempre posso me perguntar: que havia antes do começo do
universo?). Enquanto o cientista faz um uso legítimo da causalidade, que ele
emprega para unificar fenômenos dados na experiência (aquecimento e ebulição),
o metafísico abusa da causalidade na medida em que se afasta deliberadamente da
experiência concreta (quando imagino um Deus como causa do mundo, afasto-me da
experiência, pois so o mundo é objeto de minha experiência). O princípio da
causalidade, convite à descoberta, não deve servir de permissão para inventar.