LIBERDADE
E IMPUTABILIDADE NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA
Aguinaldo Pavão*
Resumo: Esse texto analisa
o tratamento dado por Kant na Primeira
Crítica à imputabilidade moral,
concentrando-se basicamente na III parte do capítulo II do livro segundo da Dialética Transcendental, denominado
“Solução das idéias cosmológicas da totalidade da divisão dos eventos a partir
das suas causas”. Nesta parte da Crítica
da razão pura, Kant apresenta, dentro de sua estratégia argumentativa que
visa resolver o problema da terceira antinomia, a distinção entre caráter
empírico e caráter inteligível. A partir da dupla maneira de consideração do
sujeito agente, procura-se entender a tese de Kant sobre a imputabilidade
moral. É questionada a posição de Kant defendida em B 583 de que um juízo de
imputação requer o desprezo pelas
condições empíricas, sejam estas internas ou externas.
Palavras-chave: caráter
inteligível, liberdade, responsabilidade, causalidade da razão.
Com a distinção na CRP entre caráter
empírico e caráter inteligível e a atribuição de ambos ao mesmo sujeito agente,
Kant pretende destacar que o determinismo causal natural é o ponto de vista
legítimo e necessário para a explicação
das ações humanas, dada a condição destas de eventos empíricos e de produtos de
seres sensíveis como são os seres humanos. Todos os eventos empíricos caem
dentro das condições espaço-temporais e categoriais, unicamente mediante as
quais nós podemos conhecê-los. Ora, sendo as ações humanas eventos empíricos, é
forçoso que as consideremos dentro dos quadros epistêmicos apresentados por
Kant na Estética e na Analítica.
Se o determinismo causal natural é o ponto de vista
legítimo e necessário para a explicação de todos os eventos empíricos, nos
quais se incluem as ações humanas, parece não haver razões para que tal ponto
de vista impeça compreensões alternativas caso estas não levantem as mesmas
pretensões que aquela assegura para si com exclusividade.
É necessário, portanto, uma dupla consideração do
sujeito agente, na medida em que o ser humano é compreendido como algo
radicalmente distinto do resto da natureza. Diz Kant:
Exclusivamente o homem que de outra
maneira conhece toda a natureza somente através dos sentidos, se conhece a si
mesmo mediante uma pura apercepção [...] para si mesmo, ele certamente é, de
uma parte fenômeno, mas de outra, ou seja no que se refere a certas faculdades
um objeto puramente inteligível porque a sua ação de modo algum pode ser
computada na receptividade da sensibilidade. Denominamos estas faculdades de
entendimento e razão (CRP, B 574-575)[1].
Quer
dizer, as ações humanas, dada a singularidade dos seres humanos, seres dotados
de razão e entendimento (sobretudo de razão), requerem um outro ponto de vista
possível, o qual seja capaz de justificá-las
praticamente[2]. Assim, faz-se
necessário considerar o caráter empírico do sujeito agente como uma sinalização
sensível, através das ações, de seu caráter inteligível como causas destes
enquanto fenômenos (CRP, B 567 e B 574).
Todavia, uma questão aqui parece se impor. Dada a
“natureza” numênica da liberdade e supondo, como é razoável supor, que nem
todas as ações são livres, como podemos nos certificar que determinadas ações,
isto é, certos eventos empíricos, expressem a presença ou a ausência da
liberdade? Trata-se de saber como podemos imputar moralmente – ato que
pressupõe a atribuição de liberdade ao agente – se o caráter inteligível do ser
humano, unicamente mediante o qual nós podemos considerá-lo livre, nos é
inacessível? Diz Kant:
[...] a moralidade própria das
ações (mérito e culpa), mesmo a de nosso próprio comportamento, permanece-nos
totalmente oculta. As nossas responsabilidades só podem ser referidas ao
caráter empírico. Mas quanto disto se deve imputar ao efeito puro da liberdade,
quanto à simples natureza e quanto ao defeito de temperamento do qual não se é
culpado, ou à natureza feliz (merito
fortunae) do mesmo, eis algo que ninguém pode perscrutar e
conseqüentemente, também não julgar (richten)
com toda a justiça (CRP, B 579, nota)[3].
Com a frase “as nossas responsabilidades só podem
ser referidas ao caráter empírico”, ao que parece, Kant quer dizer que as
responsabilizações que fazemos partem
do caráter empírico do agente – pois nesta esfera é que nos deparamos com
ações, “sinais sensíveis”, que julgamos dignas de louvor ou de censura –, mas
são referidas (atribuídas) ao caráter inteligível, uma vez que é em referência a
esta “lei da causalidade” que estamos autorizados a imputar. Na discussão do
exemplo da mentira maldosa (que veremos na seqüência), a atribuição de
responsabilidade será dirigida ao caráter inteligível do homem. Diz Kant: “A
ação é atribuída ao caráter inteligível do homem e agora, no momento em que
mente, ele é totalmente culpado” (die
Handlung wird seinem inteligibeln Charakter beigemesen, er hat jetzt, in dem
Augenblicke, da er lügt, gänzlich Schuld) (CRP, B 583).
Pode-se dizer que a afirmação “As nossas
responsabilidades, ainda que só possam ser referidas
ao caráter empírico, têm de ser, contudo, atribuídas/imputadas
ao caráter inteligível” expressaria corretamente a relação que o caráter
empírico e inteligível mantém com os juízos de imputabilidade.
Na linha dessas reflexões, alguém poderia
interpretar Kant como o fez Schopenhauer, dizendo que “a responsabilidade moral
do homem refere-se, em primeiro lugar e ostensivamente, àquilo que ele faz, mas
no fundamento, àquilo que ele é” (Schopenhauer 1995: 92). Ora, aquilo que o
homem faz, sendo para nós acessível pela experiência, é expressão do seu
caráter empírico. Assim, o operari
humano, sujeito à lei da natureza, é o alvo inicialmente visado por nossos
juízos de imputabilidade – poder-se-ia dizer que é nesse sentido que “as nossas
responsabilidades só podem ser referidas ao caráter empírico”. Porém, de acordo
com a leitura de Schopenhauer, a incidência precisa de um juízo de
imputabilidade deve recair sobre o que o homem é, ou seja, sobre o que o homem
pode ser de acordo com a sua essência. Ora, se o caráter inteligível, “presente
[...] em todos os atos do indivíduo e impresso em todos eles, como o carimbo em
mil selos [...] determina o caráter empírico deste fenômeno [as ações
exteriorizadas pela lei da causalidade – AP] que se manifesta no tempo e na
sucessão dos atos” (Cf. Schopenhauer
1995: 91)[4],
então deve ser a ele propriamente imputada a ação humana. Assim, Schopenhauer
diária que “as nossas responsabilidades só podem ser referidas ao operari, mas têm de ser atribuídas ao esse”.
Acontece que, com base em Schopenhauer, a liberdade
não pode mais ser entendida como um poder que o agente possui de agir de outro
modo. O meu agir é determinado necessariamente, seja do ponto de vista exterior
por motivos (isto é, uma espécie de causalidade empírica), seja do ponto de
vista interno pelo caráter inteligível. Como a liberdade só pertence ao caráter
inteligível, e o caráter inteligível apenas diz respeito ao ‘esse’ e não ao ‘operari’, ela só pode ser entendida como um poder de ser de outro
modo, ou melhor, um poder que homem possui de ter sido outro[5].
Ora, essa limitação da liberdade a uma escolha,
mediante um ato inteligível, do nosso ser parece chocar-se com o pensamento de
Kant. De fato, Kant afirma que a “ação (Handlung)
é atribuída ao caráter inteligível do homem” e, na seqüência, parece tornar-se
mais difícil a compatibilização com Schopenhauer quando lemos: “e agora, no
momento em que mente, ele é totalmente culpado; portanto, desconsiderando todas
as condições empíricas do ato, a razão era integralmente livre, e a mentira é
de todo imputável a sua omissão” (CRP, B 583). Para o meu interesse
nessa discussão, importa sublinhar nessa passagem a parte “no momento em que
ele mente” e “a razão era inteiramente livre”. Parece ser clara a sugestão de
Kant de que a ação particular (no exemplo, a mentira maldosa) resultou de uma
razão que era livre para mentir ou não mentir.
No parágrafo seguinte ao da citação acima, Kant
argumenta que a razão, embora estando presente e sendo “sempre a mesma em todas
as ações do homem em todas as circunstâncias temporais”, não é, contudo, “no
tempo nem atinge um novo estado no qual não estava”[6],
uma vez que, em relação a este novo estado, “ela é determinante, mas não
determinável”. Assim sendo, não cabe perguntar por que a razão não se
determinou de outro modo. Poder-se-ia indagar por que a razão “mediante a sua
causalidade [...] não determinou diversamente os fenômenos”. Porém, em relação
a isto, “qualquer resposta é impossível. Com efeito, um outro caráter
inteligível teria dado um outro caráter empírico” (CRP, B 584). Se esta
última frase de Kant é isolada, pode-se tomá-la como significando que se um
homem que mente maldosamente tivesse um outro caráter moral, isto é, tivesse um
outro “sinal distintivo [...] enquanto ser racional dotado de liberdade” (Antropologia,
p. 135) que comportasse princípios práticos proibitivos do mentir teria, então,
um caráter empírico, isto é, um comportamento diverso, sempre dizendo a
verdade. Embora isso até possa ser considerado verdadeiro, o que Kant quer
dizer é que um outro caráter inteligível daria um outro caráter empírico porque
de uma outra lei da causalidade não-empírica resultaria, como efeito, um outro
fenômeno. Schopenhauer interpreta a frase em pauta no primeiro sentido com a
agravante de compreender o caráter inteligível como caráter moral imutável (no
sentido antropológico; cf. Schopenhauer 1995: 89).
Ora, o contraste entre caráter inteligível e
empírico na Crítica da razão pura não
tem sentido psicológico ou antropológico (cf. Allison 1992: 484-485), mas sim a
função de distinguir os modos de operar da causalidade, na medida em que esta
pode ser duplamente considerada como causalidade empírica e inteligível.
No entanto, Schopenhauer poderia resistir a essa
leitura. A base textual mais forte contra a sua tese parece estar em outro
lugar, a saber, na seguinte advertência de Kant:
Mas porque o caráter inteligível
resulta nas circunstâncias existentes, exatamente nestes fenômenos e neste
caráter empírico é uma questão que ultrapassa tão de longe a faculdade de nossa
razão para responder, e até todo o direito de ela sequer perguntar, como se se
indagasse porque o objeto transcendental de nossa intuição sensível externa só
dá uma intuição no espaço e não em qualquer outro tipo de intuição (CRP, B 585).
Assim,
quando se quer defender a tese de que o caráter inteligível, entendido como o ‘esse’ do homem, se está tentando
sustentar, senão exatamente o porquê de o caráter inteligível resultar num
determinado caráter empírico (teria de se responder porque o homem é o que é),
algo que ultrapassa os limites legítimos do poder de nossa razão para responder.
Afirmar que Kant, com a distinção entre caráter empírico e inteligível, nos
retirou “do erro fundamental que deslocava a necessidade para o ‘esse’ e a liberdade para o ‘operari’” (Schopenhauer 1995: 92) e nos
fez perceber que a relação é inversa, isto é, ‘operari sequitur esse’, é supor-se autorizado a perscrutar o
imperscrutável. Na verdade, Kant, ao distinguir caráter empírico do caráter
inteligível, nos retirou do erro fundamental de considerar o operari como o faz Schopenhauer, ou
seja, como suscetível de uma única leitura, não sendo possível de ser
considerado senão sob o ponto de vista da causalidade natural.
Deve-se notar, ainda, que o não ter direito de
indagar sobre por que o caráter inteligível resulta num determinado caráter
empírico está vinculado à não autorização de se perguntar sobre de onde surge a
ação livre e quando ela é iniciada. De fato, visto que condições
espaço-temporais só podem ser referidas ao caráter empírico, a causalidade
livre da razão “em seu caráter inteligível não surge, nem começa por volta de um certo tempo a fim de produzir um
efeito. Pois, do contrário ela mesma ficaria submetida a lei natural dos
fenômenos” (CRP, B 579-580).
Voltemos a questão sobre a responsabilidade de
nossas ações. Somente pode haver imputabilidade (Zurechnungskeit) onde há liberdade. Ora, se não há condições de
saber (kennen) da existência ou não
da liberdade, não se cairia talvez na seguinte situação: ou nós abdicamos
qualquer juízo de imputabilidade ou expomo-nos ao risco da injustiça nos julgamentos
que fazemos? Pareceria que o não poder “julgar com toda a justiça” neste caso
significaria não poder julgar com nenhuma justiça, visto que sugeriria um
julgamento cego? Nesta perspectiva, diz Jonathan Bennett, comentando a citação
de Kant em pauta:
Dizer que não se pode ‘julgar com
plena justiça’ é pouco. De fato, não temos a menor base para crer que qualquer
juízo de imputabilidade tenha a mínima justiça ... Visando apoiar a noção
ordinária de responsabilidade moral, a teoria de Kant a aniquila (Bennett 1981:
223).
Todavia,
examinando bem a nota da CRP, B 579, pode-se perceber que Kant não está
tornado impossível todo o julgamento prático. Ele acredita que o caráter
empírico possa sinalizar sensivelmente ações de agentes racionais, ainda que
jamais possamos saber o quanto deve
ser imputado à liberdade ou à natureza[7].
Desse modo, seria possível uma interpretação favorável a Kant. De fato, a
afirmação de Kant não impede totalmente o juízo moral, ela apenas restringe a
sua acribia. Neste sentido, pode-se admitir que ninguém julga com toda a justiça, o que não significa
eliminar todo o julgamento. A tese simplesmente introduziria cláusulas de
reservas quanto ao caráter peremptório de um juízo moral.
Para entender melhor a compreensão de Kant sobre a
imputabilidade moral na CRP é
preciso ainda cuidar de um outro ponto. Refiro-me ao exemplo,
apresentado por Kant, da mentira maldosa, causadora de uma certa confusão para
a sociedade. Em primeiro lugar, segundo Kant, esta ação deve ser examinada
“quanto às motivações a partir das quais emergiu” para em seguida a julgarmos
“como ela pode ser imputada ao agente juntamente com as suas conseqüências” (CRP,
B 582). A primeira questão diz respeito ao caráter empírico da ação, exigindo
que compreendamos a mentira maldosa dentro de uma série de causas que a
determinam naturalmente. Assim, encontramos como fatores determinantes uma
“educação defeituosa, [...] más companhias, [...] índole insensível à vergonha,
[...] leviandade, [...] irreflexão”, bem como “causas ocasionais que a tal ato
deram azo” (CRP, B 582). Tais fatores, que expressam tanto traços de
caráter (sentido antropológico) quanto determinações do ambiente, apenas explicam como a ação ocorreu, não
permitindo, portanto, julgá-la moralmente.
Ora, a imputação é garantida pelo segundo procedimento de exame. Neste
procedimento, “apesar de se crer que a ação esteja determinada mediante tal
[série de causas que determinam um efeito natural dado – AP], nem por isso
admoesta-se menos o agente” (CRP, B 582-583). Mas como podemos
justificar uma censura a um agente se consideramos que sua ação resulta de uma
causalidade natural? Conforme Kant esta censura está baseada numa “lei da razão
por meio da qual se encara esta última como uma causa que, sem levar em conta
todas as condições empíricas mencionadas, poderia e deveria determinar
diversamente o comportamento do homem” (CRP, B 583). Para Kant, ainda
que adversidades empíricas se coloquem, a causalidade da razão é completa.
Nesse sentido, entende-se a afirmação já referida segundo a qual “a ação é
atribuída ao caráter inteligível do homem, e agora, no momento em que mente,
ele é totalmente culpado” (id.).
Assim sendo, a culpabilidade de um homem que mente
maldosamente requer um desprezo pelas
condições empíricas, sejam estas internas ou externas. Kant diz ainda, no
mesmo parágrafo, que nós temos de considerar tal ato, na perspectiva de censura
do agente, de um lado, como se a série decorrida das condições não tivesse
ocorrido[8]
e, de outro lado, como se se tratasse de início espontâneo, por parte do
agente, de uma série de conseqüências. Parece um tanto difícil aceitar que,
quando se propõe a avaliar a culpabilidade ou não de um ser humano, seja
necessário desconsiderar condições empíricas passadas. Se uma pessoa teve uma
educação defeituosa, más companhias e cometeu uma ação censurável por
leviandade, parece que, nestes casos, seria plausível a possibilidade de que
esta pessoa determinasse, mediante a causalidade de sua razão, um comportamento
diverso do praticado. Mas, em sendo assim, seria preciso sustentar que tais
condições não são relevantes, na medida em que não determinam necessariamente a
ação. Tal irrelevância das condições deve resultar da avaliação que se faz das
mesmas, não de uma desconsideração prévia por qualquer condição empírica.
Considere-se o caso, mencionado por Kant, de que se verifique no agente,
conjugadamente a outros fatores, a “malignidade de uma índole insensível à
vergonha”.
Vamos supor que essa “malignidade de uma índole
insensível à vergonha” pudesse ser entendida como um grave distúrbio de
personalidade. Nesse caso, parece que seria insustentável qualquer expectativa
de comportamento moral do agente. Quer dizer, interviria aqui uma condição
empírica relevante. Assim, o agente não estaria sujeito à imputabilidade, uma
vez que a causalidade determinante não foi a da razão, mas a causalidade
natural que subtrai todo argumento de responsabilização moral. Dessa forma, a
argumentação de Kant em torno do exemplo da mentira maldosa poderia ser vista
como reveladora da dificuldade que consiste em pensar que todas as ações
humanas são livres[9].
A pretensão de Kant é mostrar que liberdade e
necessidade natural podem, numa mesma ação, “ocorrer independentemente uma da
outra e sem interferências recíprocas” (CRP, B 585). Logo, o argumento
principal em favor desta tese é, de fato, a distinção entre fenômeno e númeno
com a conseqüente abertura do já referido espaço conceitual que nos permite
pensar a possibilidade das ações humanas fora das condições epistêmicas (espaço-temporais
e categoriais). Todavia, o recurso a este espaço conceitual, onde se justifica
a compreensão das ações humanas como resultado de uma causalidade por
liberdade, isto é, numênica, deve ser validado apenas “onde há alguma razão
para ir além da causalidade fenomênica, e estas são encontradas apenas na
volição humana” (Beck 1966: 189). Com efeito, na natureza inanimada ou
meramente animal não existem razões para o recurso a uma compreensão diferente
da que nos é oferecida pelo determinismo natural (cf. CRP, B 574). Ora,
se o recurso a uma causalidade numênica somente se justifica onde existe alguma
razão para irmos além da causalidade fenomênica, e mesmo que este apelo à
causalidade numênica só seja justificado quando se tratar de volições humanas,
poder-se-ia considerar que, nas ações humanas, tendo em vista a avaliação de
responsabilidade das mesmas, o apelo à causalidade numênica pode ser impugnado
na medida em que inexistam razões para se ir além da causalidade fenomênica.
Tome-se novamente o exemplo da mentira maldosa. É razoável supor que um tal ato
resulte de certas condições empíricas que afetem completamente
(necessitariamente) a volição humana (consideremos, mais uma vez, o fator da
“malignidade de uma índole insensível à vergonha” no sentido mais forte).
Assim, em casos semelhantes a este, não existiria razão para irmos além da
causalidade fenomênica. Convém que se atente que o que está em questão aqui não
é em primeiro lugar a precisão dos exemplos, mas sim a de perceber que a
liberdade não está sempre presente
nas ações humanas, não se justificando, portanto, um desprezo das condições
empíricas do agente quando visamos juízos de imputabilidade.
Nesse sentido, pode-se buscar um aval no próprio
Kant. Com efeito, ele considera que a primeira infância e a loucura, incluindo
nesta última estados psicológicos como uma melancolia extrema ou depressão,
representam condições empíricas que nos levam a considerar um agente como não
livre[10].
Ainda, na Crítica da faculdade do juízo,
vemos Kant, ao distinguir afetos (Affekten)
de paixões (Leidenschaften)[11],
sinalizar a possibilidade de um impedimento empírico da liberdade[12],
ao afirmar que as paixões “são inclinações que dificultam ou tornam impossível
toda determinabilidade do arbítrio por princípios”[13].
Logo, as paixões podem limitar e inclusive suprimir a liberdade[14].
Assim sendo, pode-se dizer que certas ações podem ser computadas na receptividade da sensibilidade,
demarcando-se assim alguma fronteira entre o imputável e o não imputável, entre
as ações livres e as não livres. Mas para isso, é preciso que nós não tenhamos
razões para considera-las ações de um agente racional.
De todo modo, seria abusivo afirmar que Kant
despreze completamente as condições empíricas do agente quando se visa a juízos
de imputabilidade. Kant diz que o caráter empírico é o sinal sensível do
caráter inteligível (CRP B 574). Ora, de algum modo, está a se admitir
que o domínio da experiência serve para delimitamos o campo do imputável do não
imputável. Esse caso seria justamente aquele em que o caráter empírico sinaliza
ações de agentes racionais, isto é, de seres que agem com base em imperativos.
É preciso advertir que isso não implica afirmar um critério de decisão para
discriminar ações livres de ações naturalmente determinadas. Jamais podemos
saber se uma ação particular é resultado de uma causalidade livre ou
causalidade natural, pois não temos um tal poder de conhecimento. Assim, a
possibilidade de nos enganarmos ao atribuir a liberdade a uma certa ação nunca
pode ser afastada. Assim, fica de pé o que Kant disse em CRP B 579.n.
[...] a moralidade própria das
ações (mérito e culpa), mesmo a de nosso próprio comportamento, permanece-nos
totalmente oculta. As nossas responsabilidades só podem ser referidas ao
caráter empírico. Mas quanto disto se deve imputar ao efeito puro da liberdade,
quanto à simples natureza e quanto ao defeito de temperamento do qual não se é
culpado, ou à natureza feliz (merito
fortunae) do mesmo, eis algo que ninguém pode perscrutar e
conseqüentemente, também não julgar (richten)
com toda a justiça (CRP, B 579, nota).
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_____(1925): Essai sur le
libre arbitre. 13a. ed. Tradução
de S. Reinhach. Paris: Félix Alcan.
*
Professor de Filosofia UEL (PR), mestre em Filosofia pela UFRGS e doutorando em
Filosofia na UNICAMP.
[1]
Ver também Fundamentação da Metafísica dos Costumes (FMC), III seção,
p. 153, § 13 / BA 108; Tugendlehre, §
3, p. 276, Ak 418.
[2]
Kant, CRP, B 577-578: “Todas as ações do homem no fenômeno estão
determinadas segundo a ordem da natureza, por seu caráter empírico... Mas se
ponderarmos justamente estas mesmas ações com relação à razão, e não à
especulativa a fim de explicar
aquelas segundo a sua origem, mas exclusivamente na medida em que a razão é a
causa de sua produção, numa palavra,
se compararmos estas ações com a razão tendo em vista um propósito prático, então encontraremos uma regra
ou uma ordem que são totalmente diversas da ordem da natureza” (grifos de
Kant).
[3]
O que mostra também que nos é impossível saber qual a nossa verdadeira
motivação. Isto se liga ao chamado “agnosticismo moral” da FMC (II, § 2 e 3) (ver meu texto sobre imputabilidade
na FMC, pois aí eu toco nesse ponto.
[4]
Sobre a “interpretação” de Schopenhauer acerca da distinção kantiana entre
caráter inteligível e caráter empírico, veja também Schopenhauer (s/d:
II, § 20, p. 142; § 28, p. 203-7; IV, § 55, p. 379-85); Schopenhauer (1925: 117
s e 191-5).
[5]
Schopenhauer (1995: 91): “tudo o que
[o homem] faz acontece necessariamente. Mas no seu ‘esse’, aí está a liberdade.
Ele poderia ter sido outro: e naquilo
que ele é estão culpa e mérito”.
[6]
Veja nota anterior.
[7]
No original: “Wie viel aber davon
reine Wirkung der Freiheit, wie viel der blossen Natur”
(grifo meu).
[8]
Para Allison, a pretensão de Kant seria a de que “a disponibilidade de uma
explicação empírica-causal de uma ação por si mesma não exlcui a possibilidade
de supor que o agente poderia ter agido de outro modo e, portanto, de sustentar
que o agente é responsável” (Allison 1990: 42).
[9]
Esta questão é assinalada por Jonathan Bennett (Bennett 1981: 233) e Lewis White Beck que, embora
numa perspectiva de argumentação diferente da de Bennett, afirma: “Todos os
fenômenos têm duas dimensões de relações, uma para o fenômeno anterior, uma
para o númeno. A segunda dimensão ou relação não é o que se quer significar por
liberdade num sentido interessante, porque ela é indiscriminadamente universal.
Liberdade como um predicado universal é destituída de interesse” (Beck 1966:
188). Embora Beck não esteja se referindo à universalidade indiscriminada
quanto às ações humanas (o que faz Bennett), a sua ponderação a meu ver pode
valer também nesse sentido, uma vez que o conceito de liberdade como predicado
de toda e qualquer ação humana, ao desconsiderar a possibilidade do arbítrio
humano ser necessitado patologicamente, apresenta-se com interesse reduzido,
dada a sua miopia quanto às ocorrências patológicas suscetíveis ao agir humano.
[10]
Cf. Kant. Metaphisik L., edição da
Academia, v. 28, p. 254-7, citado em Allison (1990: 59, 74).
[11]
Diz Kant: “Afetos são especificamente distintos de paixões. Aqueles referem-se
meramente ao sentimento; estas pertencem à faculdade de apetição e são
inclinações que dificultam ou tornam impossível toda determinabilidade do
arbítrio (Willkür) por princípios.
Aqueles são impetuosos e impremeditados; estas, duradoras e refletidas” (Crítica
da Faculdade do Juízo, B 121, n. 128). O exemplo fornecido por Kant nesta
nota é o da indignação (Unwille) que,
sendo um afeto, é cólera (Zorn) e,
sendo paixão, é ódio (Hass), sede de
vingança.
[12]
Referência no mesmo sentido à Crítica da
Faculdade do Juízo é feita por Allison (1990: 260, n. 12).
[13]
Cf. nota 17.
[14]
Também nas Lecciones de ética (De
Imputatione): “Podemos atribuir algo a uma pessoa sem chegar a imputar-lhe;
por exemplo, podemos atribuir suas ações a um louco ou a um ébrio, mas não
imputar-lhes. Na imputação, a ação tem de ter sua origem na liberdade.
Certamente, não se podem imputar suas ações ao ébrio, senão à própria
embriaguez” (Lecciones de ética, p.
97, cf. também p. 101).