LIBERDADE E IMPUTABILIDADE NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA

Aguinaldo Pavão*

Resumo: Esse texto analisa o tratamento dado por Kant na Primeira Crítica à imputabilidade moral, concentrando-se basicamente na III parte do capítulo II do livro segundo da Dialética Transcendental, denominado “Solução das idéias cosmológicas da totalidade da divisão dos eventos a partir das suas causas”. Nesta parte da Crítica da razão pura, Kant apresenta, dentro de sua estratégia argumentativa que visa resolver o problema da terceira antinomia, a distinção entre caráter empírico e caráter inteligível. A partir da dupla maneira de consideração do sujeito agente, procura-se entender a tese de Kant sobre a imputabilidade moral. É questionada a posição de Kant defendida em B 583 de que um juízo de imputação requer o desprezo pelas condições empíricas, sejam estas internas ou externas.

Palavras-chave: caráter inteligível, liberdade, responsabilidade, causalidade da razão.

 

Com a distinção na CRP entre caráter empírico e caráter inteligível e a atribuição de ambos ao mesmo sujeito agente, Kant pretende destacar que o determinismo causal natural é o ponto de vista legítimo e necessário para a explicação das ações humanas, dada a condição destas de eventos empíricos e de produtos de seres sensíveis como são os seres humanos. Todos os eventos empíricos caem dentro das condições espaço-temporais e categoriais, unicamente mediante as quais nós podemos conhecê-los. Ora, sendo as ações humanas eventos empíricos, é forçoso que as consideremos dentro dos quadros epistêmicos apresentados por Kant na Estética e na Analítica.

Se o determinismo causal natural é o ponto de vista legítimo e necessário para a explicação de todos os eventos empíricos, nos quais se incluem as ações humanas, parece não haver razões para que tal ponto de vista impeça compreensões alternativas caso estas não levantem as mesmas pretensões que aquela assegura para si com exclusividade.

É necessário, portanto, uma dupla consideração do sujeito agente, na medida em que o ser humano é compreendido como algo radicalmente distinto do resto da natureza. Diz Kant:

 

Exclusivamente o homem que de outra maneira conhece toda a natureza somente através dos sentidos, se conhece a si mesmo mediante uma pura apercepção [...] para si mesmo, ele certamente é, de uma parte fenômeno, mas de outra, ou seja no que se refere a certas faculdades um objeto puramente inteligível porque a sua ação de modo algum pode ser computada na receptividade da sensibilidade. Denominamos estas faculdades de entendimento e razão (CRP, B 574-575)[1].

 

Quer dizer, as ações humanas, dada a singularidade dos seres humanos, seres dotados de razão e entendimento (sobretudo de razão), requerem um outro ponto de vista possível, o qual seja capaz de justificá-las praticamente[2]. Assim, faz-se necessário considerar o caráter empírico do sujeito agente como uma sinalização sensível, através das ações, de seu caráter inteligível como causas destes enquanto fenômenos (CRP, B 567 e B 574).

Todavia, uma questão aqui parece se impor. Dada a “natureza” numênica da liberdade e supondo, como é razoável supor, que nem todas as ações são livres, como podemos nos certificar que determinadas ações, isto é, certos eventos empíricos, expressem a presença ou a ausência da liberdade? Trata-se de saber como podemos imputar moralmente – ato que pressupõe a atribuição de liberdade ao agente – se o caráter inteligível do ser humano, unicamente mediante o qual nós podemos considerá-lo livre, nos é inacessível? Diz Kant:

[...] a moralidade própria das ações (mérito e culpa), mesmo a de nosso próprio comportamento, permanece-nos totalmente oculta. As nossas responsabilidades só podem ser referidas ao caráter empírico. Mas quanto disto se deve imputar ao efeito puro da liberdade, quanto à simples natureza e quanto ao defeito de temperamento do qual não se é culpado, ou à natureza feliz (merito fortunae) do mesmo, eis algo que ninguém pode perscrutar e conseqüentemente, também não julgar (richten) com toda a justiça (CRP, B 579, nota)[3].

 

Com a frase “as nossas responsabilidades só podem ser referidas ao caráter empírico”, ao que parece, Kant quer dizer que as responsabilizações que fazemos partem do caráter empírico do agente – pois nesta esfera é que nos deparamos com ações, “sinais sensíveis”, que julgamos dignas de louvor ou de censura –, mas são referidas (atribuídas) ao caráter inteligível, uma vez que é em referência a esta “lei da causalidade” que estamos autorizados a imputar. Na discussão do exemplo da mentira maldosa (que veremos na seqüência), a atribuição de responsabilidade será dirigida ao caráter inteligível do homem. Diz Kant: “A ação é atribuída ao caráter inteligível do homem e agora, no momento em que mente, ele é totalmente culpado” (die Handlung wird seinem inteligibeln Charakter beigemesen, er hat jetzt, in dem Augenblicke, da er lügt, gänzlich Schuld) (CRP, B 583).

Pode-se dizer que a afirmação “As nossas responsabilidades, ainda que só possam ser referidas ao caráter empírico, têm de ser, contudo, atribuídas/imputadas ao caráter inteligível” expressaria corretamente a relação que o caráter empírico e inteligível mantém com os juízos de imputabilidade.

Na linha dessas reflexões, alguém poderia interpretar Kant como o fez Schopenhauer, dizendo que “a responsabilidade moral do homem refere-se, em primeiro lugar e ostensivamente, àquilo que ele faz, mas no fundamento, àquilo que ele é” (Schopenhauer 1995: 92). Ora, aquilo que o homem faz, sendo para nós acessível pela experiência, é expressão do seu caráter empírico. Assim, o operari humano, sujeito à lei da natureza, é o alvo inicialmente visado por nossos juízos de imputabilidade – poder-se-ia dizer que é nesse sentido que “as nossas responsabilidades só podem ser referidas ao caráter empírico”. Porém, de acordo com a leitura de Schopenhauer, a incidência precisa de um juízo de imputabilidade deve recair sobre o que o homem é, ou seja, sobre o que o homem pode ser de acordo com a sua essência. Ora, se o caráter inteligível, “presente [...] em todos os atos do indivíduo e impresso em todos eles, como o carimbo em mil selos [...] determina o caráter empírico deste fenômeno [as ações exteriorizadas pela lei da causalidade – AP] que se manifesta no tempo e na sucessão dos atos” (Cf. Schopenhauer 1995: 91)[4], então deve ser a ele propriamente imputada a ação humana. Assim, Schopenhauer diária que “as nossas responsabilidades só podem ser referidas ao operari, mas têm de ser atribuídas ao esse”.

Acontece que, com base em Schopenhauer, a liberdade não pode mais ser entendida como um poder que o agente possui de agir de outro modo. O meu agir é determinado necessariamente, seja do ponto de vista exterior por motivos (isto é, uma espécie de causalidade empírica), seja do ponto de vista interno pelo caráter inteligível. Como a liberdade só pertence ao caráter inteligível, e o caráter inteligível apenas diz respeito ao ‘esse’ e não ao ‘operari’, ela só pode ser entendida como um poder de ser de outro modo, ou melhor, um poder que homem possui de ter sido outro[5].

Ora, essa limitação da liberdade a uma escolha, mediante um ato inteligível, do nosso ser parece chocar-se com o pensamento de Kant. De fato, Kant afirma que a “ação (Handlung) é atribuída ao caráter inteligível do homem” e, na seqüência, parece tornar-se mais difícil a compatibilização com Schopenhauer quando lemos: “e agora, no momento em que mente, ele é totalmente culpado; portanto, desconsiderando todas as condições empíricas do ato, a razão era integralmente livre, e a mentira é de todo imputável a sua omissão” (CRP, B 583). Para o meu interesse nessa discussão, importa sublinhar nessa passagem a parte “no momento em que ele mente” e “a razão era inteiramente livre”. Parece ser clara a sugestão de Kant de que a ação particular (no exemplo, a mentira maldosa) resultou de uma razão que era livre para mentir ou não mentir.

No parágrafo seguinte ao da citação acima, Kant argumenta que a razão, embora estando presente e sendo “sempre a mesma em todas as ações do homem em todas as circunstâncias temporais”, não é, contudo, “no tempo nem atinge um novo estado no qual não estava”[6], uma vez que, em relação a este novo estado, “ela é determinante, mas não determinável”. Assim sendo, não cabe perguntar por que a razão não se determinou de outro modo. Poder-se-ia indagar por que a razão “mediante a sua causalidade [...] não determinou diversamente os fenômenos”. Porém, em relação a isto, “qualquer resposta é impossível. Com efeito, um outro caráter inteligível teria dado um outro caráter empírico” (CRP, B 584). Se esta última frase de Kant é isolada, pode-se tomá-la como significando que se um homem que mente maldosamente tivesse um outro caráter moral, isto é, tivesse um outro “sinal distintivo [...] enquanto ser racional dotado de liberdade” (Antropologia, p. 135) que comportasse princípios práticos proibitivos do mentir teria, então, um caráter empírico, isto é, um comportamento diverso, sempre dizendo a verdade. Embora isso até possa ser considerado verdadeiro, o que Kant quer dizer é que um outro caráter inteligível daria um outro caráter empírico porque de uma outra lei da causalidade não-empírica resultaria, como efeito, um outro fenômeno. Schopenhauer interpreta a frase em pauta no primeiro sentido com a agravante de compreender o caráter inteligível como caráter moral imutável (no sentido antropológico; cf. Schopenhauer 1995: 89).

Ora, o contraste entre caráter inteligível e empírico na Crítica da razão pura não tem sentido psicológico ou antropológico (cf. Allison 1992: 484-485), mas sim a função de distinguir os modos de operar da causalidade, na medida em que esta pode ser duplamente considerada como causalidade empírica e inteligível.

No entanto, Schopenhauer poderia resistir a essa leitura. A base textual mais forte contra a sua tese parece estar em outro lugar, a saber, na seguinte advertência de Kant:

Mas porque o caráter inteligível resulta nas circunstâncias existentes, exatamente nestes fenômenos e neste caráter empírico é uma questão que ultrapassa tão de longe a faculdade de nossa razão para responder, e até todo o direito de ela sequer perguntar, como se se indagasse porque o objeto transcendental de nossa intuição sensível externa só dá uma intuição no espaço e não em qualquer outro tipo de intuição (CRP, B 585).

 

Assim, quando se quer defender a tese de que o caráter inteligível, entendido como o ‘esse’ do homem, se está tentando sustentar, senão exatamente o porquê de o caráter inteligível resultar num determinado caráter empírico (teria de se responder porque o homem é o que é), algo que ultrapassa os limites legítimos do poder de nossa razão para responder. Afirmar que Kant, com a distinção entre caráter empírico e inteligível, nos retirou “do erro fundamental que deslocava a necessidade para o ‘esse’ e a liberdade para o ‘operari’” (Schopenhauer 1995: 92) e nos fez perceber que a relação é inversa, isto é, ‘operari sequitur esse’, é supor-se autorizado a perscrutar o imperscrutável. Na verdade, Kant, ao distinguir caráter empírico do caráter inteligível, nos retirou do erro fundamental de considerar o operari como o faz Schopenhauer, ou seja, como suscetível de uma única leitura, não sendo possível de ser considerado senão sob o ponto de vista da causalidade natural.

Deve-se notar, ainda, que o não ter direito de indagar sobre por que o caráter inteligível resulta num determinado caráter empírico está vinculado à não autorização de se perguntar sobre de onde surge a ação livre e quando ela é iniciada. De fato, visto que condições espaço-temporais só podem ser referidas ao caráter empírico, a causalidade livre da razão “em seu caráter inteligível não surge, nem começa por volta de um certo tempo a fim de produzir um efeito. Pois, do contrário ela mesma ficaria submetida a lei natural dos fenômenos” (CRP, B 579-580).

Voltemos a questão sobre a responsabilidade de nossas ações. Somente pode haver imputabilidade (Zurechnungskeit) onde há liberdade. Ora, se não há condições de saber (kennen) da existência ou não da liberdade, não se cairia talvez na seguinte situação: ou nós abdicamos qualquer juízo de imputabilidade ou expomo-nos ao risco da injustiça nos julgamentos que fazemos? Pareceria que o não poder “julgar com toda a justiça” neste caso significaria não poder julgar com nenhuma justiça, visto que sugeriria um julgamento cego? Nesta perspectiva, diz Jonathan Bennett, comentando a citação de Kant em pauta:

Dizer que não se pode ‘julgar com plena justiça’ é pouco. De fato, não temos a menor base para crer que qualquer juízo de imputabilidade tenha a mínima justiça ... Visando apoiar a noção ordinária de responsabilidade moral, a teoria de Kant a aniquila (Bennett 1981: 223).

 

Todavia, examinando bem a nota da CRP, B 579, pode-se perceber que Kant não está tornado impossível todo o julgamento prático. Ele acredita que o caráter empírico possa sinalizar sensivelmente ações de agentes racionais, ainda que jamais possamos saber o quanto deve ser imputado à liberdade ou à natureza[7]. Desse modo, seria possível uma interpretação favorável a Kant. De fato, a afirmação de Kant não impede totalmente o juízo moral, ela apenas restringe a sua acribia. Neste sentido, pode-se admitir que ninguém julga com toda a justiça, o que não significa eliminar todo o julgamento. A tese simplesmente introduziria cláusulas de reservas quanto ao caráter peremptório de um juízo moral.

Para entender melhor a compreensão de Kant sobre a imputabilidade moral na CRP é preciso ainda cuidar de um outro ponto. Refiro-me ao exemplo, apresentado por Kant, da mentira maldosa, causadora de uma certa confusão para a sociedade. Em primeiro lugar, segundo Kant, esta ação deve ser examinada “quanto às motivações a partir das quais emergiu” para em seguida a julgarmos “como ela pode ser imputada ao agente juntamente com as suas conseqüências” (CRP, B 582). A primeira questão diz respeito ao caráter empírico da ação, exigindo que compreendamos a mentira maldosa dentro de uma série de causas que a determinam naturalmente. Assim, encontramos como fatores determinantes uma “educação defeituosa, [...] más companhias, [...] índole insensível à vergonha, [...] leviandade, [...] irreflexão”, bem como “causas ocasionais que a tal ato deram azo” (CRP, B 582). Tais fatores, que expressam tanto traços de caráter (sentido antropológico) quanto determinações do ambiente, apenas explicam como a ação ocorreu, não permitindo, portanto, julgá-la moralmente. Ora, a imputação é garantida pelo segundo procedimento de exame. Neste procedimento, “apesar de se crer que a ação esteja determinada mediante tal [série de causas que determinam um efeito natural dado – AP], nem por isso admoesta-se menos o agente” (CRP, B 582-583). Mas como podemos justificar uma censura a um agente se consideramos que sua ação resulta de uma causalidade natural? Conforme Kant esta censura está baseada numa “lei da razão por meio da qual se encara esta última como uma causa que, sem levar em conta todas as condições empíricas mencionadas, poderia e deveria determinar diversamente o comportamento do homem” (CRP, B 583). Para Kant, ainda que adversidades empíricas se coloquem, a causalidade da razão é completa. Nesse sentido, entende-se a afirmação já referida segundo a qual “a ação é atribuída ao caráter inteligível do homem, e agora, no momento em que mente, ele é totalmente culpado” (id.).

Assim sendo, a culpabilidade de um homem que mente maldosamente requer um desprezo pelas condições empíricas, sejam estas internas ou externas. Kant diz ainda, no mesmo parágrafo, que nós temos de considerar tal ato, na perspectiva de censura do agente, de um lado, como se a série decorrida das condições não tivesse ocorrido[8] e, de outro lado, como se se tratasse de início espontâneo, por parte do agente, de uma série de conseqüências. Parece um tanto difícil aceitar que, quando se propõe a avaliar a culpabilidade ou não de um ser humano, seja necessário desconsiderar condições empíricas passadas. Se uma pessoa teve uma educação defeituosa, más companhias e cometeu uma ação censurável por leviandade, parece que, nestes casos, seria plausível a possibilidade de que esta pessoa determinasse, mediante a causalidade de sua razão, um comportamento diverso do praticado. Mas, em sendo assim, seria preciso sustentar que tais condições não são relevantes, na medida em que não determinam necessariamente a ação. Tal irrelevância das condições deve resultar da avaliação que se faz das mesmas, não de uma desconsideração prévia por qualquer condição empírica. Considere-se o caso, mencionado por Kant, de que se verifique no agente, conjugadamente a outros fatores, a “malignidade de uma índole insensível à vergonha”.

Vamos supor que essa “malignidade de uma índole insensível à vergonha” pudesse ser entendida como um grave distúrbio de personalidade. Nesse caso, parece que seria insustentável qualquer expectativa de comportamento moral do agente. Quer dizer, interviria aqui uma condição empírica relevante. Assim, o agente não estaria sujeito à imputabilidade, uma vez que a causalidade determinante não foi a da razão, mas a causalidade natural que subtrai todo argumento de responsabilização moral. Dessa forma, a argumentação de Kant em torno do exemplo da mentira maldosa poderia ser vista como reveladora da dificuldade que consiste em pensar que todas as ações humanas são livres[9].

A pretensão de Kant é mostrar que liberdade e necessidade natural podem, numa mesma ação, “ocorrer independentemente uma da outra e sem interferências recíprocas” (CRP, B 585). Logo, o argumento principal em favor desta tese é, de fato, a distinção entre fenômeno e númeno com a conseqüente abertura do já referido espaço conceitual que nos permite pensar a possibilidade das ações humanas fora das condições epistêmicas (espaço-temporais e categoriais). Todavia, o recurso a este espaço conceitual, onde se justifica a compreensão das ações humanas como resultado de uma causalidade por liberdade, isto é, numênica, deve ser validado apenas “onde há alguma razão para ir além da causalidade fenomênica, e estas são encontradas apenas na volição humana” (Beck 1966: 189). Com efeito, na natureza inanimada ou meramente animal não existem razões para o recurso a uma compreensão diferente da que nos é oferecida pelo determinismo natural (cf. CRP, B 574). Ora, se o recurso a uma causalidade numênica somente se justifica onde existe alguma razão para irmos além da causalidade fenomênica, e mesmo que este apelo à causalidade numênica só seja justificado quando se tratar de volições humanas, poder-se-ia considerar que, nas ações humanas, tendo em vista a avaliação de responsabilidade das mesmas, o apelo à causalidade numênica pode ser impugnado na medida em que inexistam razões para se ir além da causalidade fenomênica. Tome-se novamente o exemplo da mentira maldosa. É razoável supor que um tal ato resulte de certas condições empíricas que afetem completamente (necessitariamente) a volição humana (consideremos, mais uma vez, o fator da “malignidade de uma índole insensível à vergonha” no sentido mais forte). Assim, em casos semelhantes a este, não existiria razão para irmos além da causalidade fenomênica. Convém que se atente que o que está em questão aqui não é em primeiro lugar a precisão dos exemplos, mas sim a de perceber que a liberdade não está sempre presente nas ações humanas, não se justificando, portanto, um desprezo das condições empíricas do agente quando visamos juízos de imputabilidade.

Nesse sentido, pode-se buscar um aval no próprio Kant. Com efeito, ele considera que a primeira infância e a loucura, incluindo nesta última estados psicológicos como uma melancolia extrema ou depressão, representam condições empíricas que nos levam a considerar um agente como não livre[10]. Ainda, na Crítica da faculdade do juízo, vemos Kant, ao distinguir afetos (Affekten) de paixões (Leidenschaften)[11], sinalizar a possibilidade de um impedimento empírico da liberdade[12], ao afirmar que as paixões “são inclinações que dificultam ou tornam impossível toda determinabilidade do arbítrio por princípios”[13]. Logo, as paixões podem limitar e inclusive suprimir a liberdade[14].

Assim sendo, pode-se dizer que certas ações podem ser computadas na receptividade da sensibilidade, demarcando-se assim alguma fronteira entre o imputável e o não imputável, entre as ações livres e as não livres. Mas para isso, é preciso que nós não tenhamos razões para considera-las ações de um agente racional.

De todo modo, seria abusivo afirmar que Kant despreze completamente as condições empíricas do agente quando se visa a juízos de imputabilidade. Kant diz que o caráter empírico é o sinal sensível do caráter inteligível (CRP B 574). Ora, de algum modo, está a se admitir que o domínio da experiência serve para delimitamos o campo do imputável do não imputável. Esse caso seria justamente aquele em que o caráter empírico sinaliza ações de agentes racionais, isto é, de seres que agem com base em imperativos. É preciso advertir que isso não implica afirmar um critério de decisão para discriminar ações livres de ações naturalmente determinadas. Jamais podemos saber se uma ação particular é resultado de uma causalidade livre ou causalidade natural, pois não temos um tal poder de conhecimento. Assim, a possibilidade de nos enganarmos ao atribuir a liberdade a uma certa ação nunca pode ser afastada. Assim, fica de pé o que Kant disse em CRP B 579.n.

[...] a moralidade própria das ações (mérito e culpa), mesmo a de nosso próprio comportamento, permanece-nos totalmente oculta. As nossas responsabilidades só podem ser referidas ao caráter empírico. Mas quanto disto se deve imputar ao efeito puro da liberdade, quanto à simples natureza e quanto ao defeito de temperamento do qual não se é culpado, ou à natureza feliz (merito fortunae) do mesmo, eis algo que ninguém pode perscrutar e conseqüentemente, também não julgar (richten) com toda a justiça (CRP, B 579, nota).

 

 

Bibliografia

 

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* Professor de Filosofia UEL (PR), mestre em Filosofia pela UFRGS e doutorando em Filosofia na UNICAMP.

[1] Ver também Fundamentação da Metafísica dos Costumes (FMC), III seção, p. 153, § 13 / BA 108; Tugendlehre, § 3, p. 276, Ak 418.

[2] Kant, CRP, B 577-578: “Todas as ações do homem no fenômeno estão determinadas segundo a ordem da natureza, por seu caráter empírico... Mas se ponderarmos justamente estas mesmas ações com relação à razão, e não à especulativa a fim de explicar aquelas segundo a sua origem, mas exclusivamente na medida em que a razão é a causa de sua produção, numa palavra, se compararmos estas ações com a razão tendo em vista um propósito prático, então encontraremos uma regra ou uma ordem que são totalmente diversas da ordem da natureza” (grifos de Kant).

[3] O que mostra também que nos é impossível saber qual a nossa verdadeira motivação. Isto se liga ao chamado “agnosticismo moral” da FMC (II, § 2 e 3) (ver meu texto sobre imputabilidade na FMC, pois aí eu toco nesse ponto.

[4] Sobre a “interpretação” de Schopenhauer acerca da distinção kantiana entre caráter inteligível e caráter empírico, veja também Schopenhauer (s/d: II, § 20, p. 142; § 28, p. 203-7; IV, § 55, p. 379-85); Schopenhauer (1925: 117 s e 191-5).

[5] Schopenhauer (1995: 91): “tudo o que [o homem] faz acontece necessariamente. Mas no seu ‘esse’, aí está a liberdade. Ele poderia ter sido outro: e naquilo que ele é estão culpa e mérito”.

[6] Veja nota anterior.

[7] No original: “Wie viel aber davon reine Wirkung der Freiheit, wie viel der blossen Natur” (grifo meu).

[8] Para Allison, a pretensão de Kant seria a de que “a disponibilidade de uma explicação empírica-causal de uma ação por si mesma não exlcui a possibilidade de supor que o agente poderia ter agido de outro modo e, portanto, de sustentar que o agente é responsável” (Allison 1990: 42).

[9] Esta questão é assinalada por Jonathan Bennett (Bennett 1981: 233) e Lewis White Beck que, embora numa perspectiva de argumentação diferente da de Bennett, afirma: “Todos os fenômenos têm duas dimensões de relações, uma para o fenômeno anterior, uma para o númeno. A segunda dimensão ou relação não é o que se quer significar por liberdade num sentido interessante, porque ela é indiscriminadamente universal. Liberdade como um predicado universal é destituída de interesse” (Beck 1966: 188). Embora Beck não esteja se referindo à universalidade indiscriminada quanto às ações humanas (o que faz Bennett), a sua ponderação a meu ver pode valer também nesse sentido, uma vez que o conceito de liberdade como predicado de toda e qualquer ação humana, ao desconsiderar a possibilidade do arbítrio humano ser necessitado patologicamente, apresenta-se com interesse reduzido, dada a sua miopia quanto às ocorrências patológicas suscetíveis ao agir humano.

[10] Cf. Kant. Metaphisik L., edição da Academia, v. 28, p. 254-7, citado em Allison (1990: 59, 74).

[11] Diz Kant: “Afetos são especificamente distintos de paixões. Aqueles referem-se meramente ao sentimento; estas pertencem à faculdade de apetição e são inclinações que dificultam ou tornam impossível toda determinabilidade do arbítrio (Willkür) por princípios. Aqueles são impetuosos e impremeditados; estas, duradoras e refletidas” (Crítica da Faculdade do Juízo, B 121, n. 128). O exemplo fornecido por Kant nesta nota é o da indignação (Unwille) que, sendo um afeto, é cólera (Zorn) e, sendo paixão, é ódio (Hass), sede de vingança.

[12] Referência no mesmo sentido à Crítica da Faculdade do Juízo é feita por Allison (1990: 260, n. 12).

[13] Cf. nota 17.

[14] Também nas Lecciones de ética (De Imputatione): “Podemos atribuir algo a uma pessoa sem chegar a imputar-lhe; por exemplo, podemos atribuir suas ações a um louco ou a um ébrio, mas não imputar-lhes. Na imputação, a ação tem de ter sua origem na liberdade. Certamente, não se podem imputar suas ações ao ébrio, senão à própria embriaguez” (Lecciones de ética, p. 97, cf. também p. 101).