Editora Universitária Edunioeste – Cascavél-Pr. ISBN 85-86571-19-9 ANO 1998
AUTOR: Daniel
Omar Perez
TÍTULO:
Kant Pré-crítico. “A desventura filosófica da pergunta
....”.
(Breve introdução a alguns textos pré-críticos
kantianos, onde se apresentam questões de significação na formulação e
resolução de problemas metafísicos, e a passagem para o tratamento crítico).
Kant, I; História da Filosofia, Metafísica, Teoria do
Conhecimento, Linguagem, Semântica
SUMÁRIO
Advertência
Pre-texto
Parte I: Problemas de significação nos textos
pré-críticos
1.1- Introdução
1.2- A dobradiça entre o pré-crítico e o crítico
1.3- O mal-estar filosófico (acerca dos problemas da
metafísica).
1.4- Relações conflituosas (acerca da ciência da
natureza e da metafísica)
1.5- A razão da existência (acerca da distinção entre
o lógico e o real)
1.6- História de um esquecimento (acerca de posição e
contradição)
1.7- Os ventos hipocondríacos (acerca do mal-estar e a
ironia)
1.8- O mal-estar declarado (acerca da terapia)
1.9- Conclusão
Parte II: A interpretação crítica do problema da
metafísica
2.1- Introdução
2.2- Os sentidos da metafísica
2.3- Os problemas necessários
2.4- A ilusão transcendental
2.5- A história da metafísica
2.6- A tarefa crítica
2.7- Conclusão
CONCLUSÃO FINAL
Pós-Texto
Apêndice
BIBLIOGRAFIA
Advertência
O presente texto é uma parte, em versão diferente, das
minhas pesquisas desenvolvidas, no mestrado e atualmente no doutorado, na
Universidade Estadual de Campinas (com bolsa Capes de 1994 até começo de 1998).
Alguns tópicos foram apresentados em distintos congressos ou publicados em
forma de artigos aprofundando em questões técnicas. Ainda continuo trabalhando
nas mesmas. Aqui só tentei apresentar uma leitura do problema, trata-se de um
ensaio de introdução.
Agradeço o confronto de aqueles com quem tive
oportunidade de polemizar. Especialmente com quem o fizera desinteressadamente,
como os professores Marcus Lutz Müller e Oswaldo Giacoia Jr.. Minha gratidão ao
Professor Zeljko Loparic de quem tenho o orgulho de ser seu orientando.
Desejo destacar o apoio da atual gestão da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, especialmente do Diretor do Centro de
Ciências Humanas e Estudos Sócio-Econômicos, Professor Pedro Gambin, que
tornaram possível esta publicação. Agradeço ao Prof. José Atílio Pires da
Silveira e a Jane pelas correções do português e também pelo seu afeto.
Finalmente, gostaria de agradecer a minha família que
às vezes compartilha e às vezes suporta, mas sempre está comigo.
Toledo, junio
de 1998.
para Ana
e
para Felipe que não precisa de filosofia
Dios!!! Adonde
estás??
(Da última cena do filme El Juguete rabioso,
baseado no romance de igual nome de Roberto Arlt)
Pré-texto
Antes de apresentar o texto. Antes de
percorrer o texto propriamente dito. Antes de assinalar os tópicos mais
importantes, ressaltar as “minhas contribuições” ao tema, em resumo, antes de
introduzir-nos no corpo do texto, tentarei realizar um breve exercício
“introdutor”. Uma introdução da introdução.
Antes de abordar o texto procurarei
abordar o pré-texto, com toda a ambigüidade que esse termo carrega. Pré-texto
como aquilo que é anterior ao texto no duplo sentido de estar fora do texto e
ser o motivo do texto.
Meu pré-texto tem, como todo pré-texto,
paradoxalmente, uma localização precisa no interior do texto e, sem rodeios,
denomina-se “epígrafe”.
A cena à qual remete a epígrafe é
dramática[1].
No final do filme o ator parado sobre um monte de lixo abre seus braços, olha
para o alto do horizonte e grita: Dios adonde estás!?.... . Essa é uma
pergunta que no decorrer do texto, do texto de Roberto Arlt[2],
de meu texto sobre o texto kantiano, não é respondida senão a modo de retalhos.
É em forma de fragmentos disseminados no texto que é possível colher uma
resposta à pergunta por Deus.
Esta pergunta não é respondida
inteiramente na primeira parte de meu
texto, onde trato várias vezes o tema em questão, como também não é
respondida na segunda parte, onde a metafísica como tal é colocada como
problema. Já que é no interior da filosofia kantiana que estamos nos
movimentando a tentativa de um tratamento apurado desta pergunta deveria levar
em conta textos kantianos que aqui nem mesmo foram mencionados. Deveríamos nos
envolver, quiçá, em uma pesquisa sobre temas práticos, lições sobre ética,
textos de religião, etcétera, e mesmo assim, caberia a dúvida acerca de saber
se é possível formular adequadamente essa pergunta no interior de uma “Teologia
Crítica”. Mas um tratamento deste tipo nos permitiria, antes de dar qualquer
resposta, saber se aquele enunciado é mesmo uma pergunta.
Dios,
adonde estás!?.... Será que é
uma pergunta para se fazer...?
No interior do texto arltiano não, e de
fato não é explicitamente colocada. Arlt apenas circunda as condições em torno
das quais o protagonista erra permanentemente. O filme consegue recriar
essa situação. O ator representa muito bem o sentido desse enunciado, que surge
como pergunta retórica, e apenas retórica, na encruzada do grito do desesperado
e a ironia do cético. A rigor, a enunciação cinematográfica mostra que o
enunciado não é uma pergunta. Toda a escritura arltiana apresenta a
impossibilidade dessa pergunta. Mas essa impossibilidade não é apresentada em
forma de tratado, e sim através de “retalhos”, fragmentos de respostas
espalhados pelos textos. É essa a forma da resposta a uma pergunta que nada
pergunta. É uma resposta que, mais que responder, indica o nosso próprio
limite, a impossibilidade de abordá-la diretamente. Nesse déficit da resposta à
pergunta por Deus desenha-se, aos poucos, nossa própria finitude. Mas, não como
a relação da criatura com seu criador, senão, melhor, como o rasgo do
“arrojado”.
E é esse
nosso pré-texto, nossa pré-compreensão, aquilo que motiva e desenha o
texto.
A epígrafe indica, deste modo, nossa
preocupação: “o alcance de uma resposta possível”; ao mesmo tempo em que revela
uma inquietação: “Por quê é que não me é dado responder diretamente sem nada
responder? Por quê é que essa epígrafe, ou melhor, essa cena arltiana, assinala
a impossibilidade da pergunta? Por quê é que se trata de uma pergunta
impossível”?
Para avançar sobre isto, que antes de ser
uma pergunta é um estado, mais do que uma questão é uma condição, é que
abordarei o texto kantiano. O texto arltiano, lido nestes termos, nos coloca,
como pré-texto, frente ao texto kantiano, onde, assumindo de raiz esse estado,
problematizando a fundo essa condição, desenvolvemos um labor filosófico. Esse
labor (a saber: a questão do limite, o problema da impossibilidade, ... sem
mais rodeios: a nossa própria finitude) pode ser lido, em Kant, em termos
semânticos. É em termos semânticos que podem colocar-se racionalmente essas
questões. Para esclarecer este nó e sem mais jogos de palavras, além dos
estritamente necessários, abandonamos o pré-texto para ir ao texto...
Sendo assim então... Qual é a questão dos
textos pré-críticos kantianos? Que relação têm aqueles textos com a nossa
preocupação? Por que recorrer a textos esquecidos, marginalizados e até mesmo
ignorados, para abordar uma questão tão importante? Em que medida esses textos
podem nos ajudar, auxiliar, orientar? Mas, será que um texto pode nos orientar?
Será que é possível ser orientado de outro modo que não seja através da leitura?
Para entrar no campo que é aberto por
essas perguntas nossa tese deve ser declarada logo, só assim daremos passo à
demonstração, pios, é na medida em que surgem inconveniências na formulação e
resolução de problemas científicos e metafísicos que o Kant pré-crítico
defronta-se com problemas de semântica e de finitude, é esse o eixo de nossa
interpretação e o modo em que desenvolveremos nossa leitura.
Este texto não visa procurar a gênese da
filosofia transcendental. Ainda que o objetivo não seja menor, é diferente. O
que este trabalho tenta é, na sua primeira parte, apresentar a problemática da
significação que se encontra nos textos pré-críticos kantianos; e na segunda
reconsiderar a passagem dos textos pré-críticos para os textos críticos.
Deste modo demonstraremos que,
primeiramente, são problemas de significação os que fazem abortar o projeto
kantiano de redigir uma boa metafísica; e, como conseqüência, são
problemas de significação os que situam a atividade filosófica em termos
críticos. E significar aqui é ler de algum modo.
Através de uma breve introdução a alguns
destes textos pré-críticos observaremos como a questão da significação dos
conceitos aparece como decisiva na constituição dos tópicos ali colocados. Não
se trataria já apenas de “textos de juventude” ou “textos mais ou menos
dogmáticos ou empíricos”, e sim de trabalhos a levar em conta na hora de
compreender a natureza da filosofia crítica.
Para desenvolver esta proposta tentarei
então, primeiramente, a reconsideração de alguns textos kantianos do denominado
período "pré-crítico", que estejam vinculados especialmente com
problemas de conhecimento teórico. A partir deles demonstrarei que, já nesses
textos, Kant assinala que o modo dogmático de formular e resolver
problemas metafísicos (empregado por parte do escolasticismo e da tradição) faz
um uso abusivo das regras lógicas, trazendo como conseqüências:
a) a confusão do modo de conhecimento
matemático com o modo de conhecimento filosófico (conhecimento por construção
de conceitos e conhecimento por conceitos respectivamente) e:
b) a mistura do âmbito das relações
lógicas abstratas (que independem de toda e qualquer experiência) com o campo
das coisas existentes (que devem ser determinadas em relação a uma experiência
possível), sem fazer qualquer distinção clara que permita, depois, vinculá-las
adequadamente.
Isto faz com que as afirmações dogmáticas
sobre problemas metafísicos, sejam totalmente desprovidas de sentido
objetivo por carecerem, justamente, de um fundamento que lhes outorgue
validez.
Com efeito, na sua etapa "pré-crítica",
Kant, na tentativa de procurar uma boa metafísica que permita estender o
conhecimento com certeza (e isto o sabemos pelas suas declarações explícitas em
vários textos publicados em vida de Kant, e, sobretudo pela sua correspondência
com Lambert), encontra-se permanentemente defrontado com problemas de
significação nas questões colocadas. Assim sendo, é possível achar, nesses
textos, sinais muito específicos da preocupação semântica de Kant com
relação à formulação e resolução de problemas.
Essa preocupação vai se tornando uma
exigência temática no desenvolvimento das pesquisas kantianas até se converter
em um verdadeiro "mal-estar filosófico". É assim que vão se colocando
em evidência, no modo dogmático de formulação e resolução de problemas
metafísicos, os seguintes tópicos:
a) o uso abusivo de alguns princípios de
experiência, que não tendo garantias fora desta, são aplicados a objetos que
não pertencem a nenhuma experiência possível, carecendo de qualquer fundamento
objetivo;
b) o uso abusivo de regras lógicas, que
tendo validade para as formações proposicionais, não é, por isso, a origem da
própria existência das coisas sensíveis.
c) a cláusula metafísica de "razão
suficiente" que é usada, na metafísica tradicional, sem qualquer restrição
em relação às coisas existentes.
Todos estes tópicos são tratados por Kant
de diversos modos ao longo de mais de vinte anos de trabalhos. Algumas vezes
eles ocupam um lugar de destaque, indicados de maneira específica como o
objetivo explícito da pesquisa empreendida, e em outras são só assinalados
marginalmente, mas mesmo assim possuem uma importância nuclear para o conteúdo
do texto.
É oportuno esclarecer, antes de mais nada,
que esta "temática da significação" kantiana da etapa pré-crítica não surgiu sem inconveniências,
teve seus progressos e também seus retrocessos. Por causa desses movimentos
“textuais” foram necessários alguns rodeios e caminhos indiretos para chegar à
sua formulação decisiva.
Portanto, podemos observar como, por
exemplo, em um conjunto daqueles escritos da primeira época, a saber: História
Universal da Natureza e Teoria do Céu Onde se Trata do Sistema e da Origem Mecânica
do Universo Segundo os Princípios de Newton (1755), Breve Esboço de
Algumas Meditações Sobre o Fogo (1755, b), Monadalogia Fisicae
(1756), Investigação Acerca da Evidência dos Princípios da Teologia Natural
e da Moral (1764), a preocupação semântica surge a partir do tratamento das
relações entre a ciência da natureza e a metafísica. Aqui Kant procura mostrar:
a) a necessidade de autonomia das leis
físicas em relação a qualquer explicação ou intervenção não científica, e
b) a necessidade de seguir um método
experimental e construtivo na explicação científica.
Isto é desenvolvido por Kant no tratamento
de problemas concretos da ciência da sua época (física, química, astronomia e
matemática). Entretanto, no mesmo período, também é possível observar as dificuldades
que Kant tem para explicitar e aplicar claramente os resultados da problemática
da significação na própria metafísica, voltando dessa maneira, a cometer o
mesmo erro “dogmático” que tinha sido questionado anteriormente. A Monadalogia
Fisicae (1756) é o exemplo disso. Aqui Kant pretende demonstrar a
existência real das mônadas por um simples raciocínio lógico, sem qualquer
referência sensível na sua operação.
Essa distinção do campo da lógica em
relação ao âmbito do real sensível é aprofundada noutros textos, tais como: Nova
Dilucidatio (1755, c) e Acerca da Falsa Sutileza das Quatro Figuras do
Silogismo (1762); ali é questionado
o estatuto da demonstração lógica no que se refere ao conhecimento objetivo da
existência das coisas elas mesmas. O tratamento do princípio de razão
suficiente e da teoria do silogismo revela-nos as dificuldades
semânticas envolvidas tanto na indagação dos primeiros princípios do
conhecimento como na interpretação das operações lógicas. No primeiro caso é
preciso restringir o uso do princípio de razão suficiente conhecendo suas
limitações. Entretanto, no segundo caso, Kant nos adverte que é necessário
adequar os resultados da dedução silogística ao conhecimento efetivo da
realidade.
A distinção das relações lógicas e do campo
das coisas sensíveis traz conseqüências semânticas importantíssimas com relação
à aplicação e reconhecimento dos
limites da lógica. Por exemplo, em Ensaio Para Introduzir o Conceito de
Magnitudes Negativas... (1763) Kant tentará distinguir a oposição real
(de dois predicados de uma mesma coisa que dão um resultado afirmativo) da
contradição lógica (que impede qualquer resultado válido) destacando a
necessidade de levar em conta o conteúdo da expressão formal.
Contudo, em Único Fundamento Para a
Demonstração da Existência de Deus (1763), seguindo a mesma linha de
demarcação, Kant não vai considerar a existência como um predicado
ou determinação lógica, mas sim como “posição” absoluta do
objeto. Nos dois textos está em jogo a existência como efetividade, impossível
de ser reduzida à mera determinação lógica.
Todas essas pesquisas trazem como
resultado o verdadeiro fracasso daquele projeto empreendido por Kant nos seus
primeiros trabalhos, a saber: procurar uma boa metafísica que alcance
conhecimentos certos. A cada passo encontra-se com contradições e
obscuridades semânticas na formulação e resolução de problemas. Devido a isto
Kant chega a afirmar que a metafísica não existe, e se existe é tão só o sonho
de um visionário.
É assim como a longa procura de uma
metafísica certa torna-se “crítica dos sonhos” (Sonhos de um visionário...
1766). Esta crítica tem duas partes, uma semântica, onde trata das
significações dos sonhadores da razão, e uma empírica, onde trata de
possíveis perturbações físicas dos sonhadores dos sentidos. Nela se demonstra a
impossibilidade de qualquer conhecimento teórico objetivo de entidades
metafísicas como “espíritos” e a necessidade de um procedimento de doação de
sentido aos conceitos usados na formulação de proposições com validez objetiva.
Deste modo o termo “metafísica”
adquire dois sentidos, um é aquele no qual a metafísica deve ser
questionada, isto é o dogmatismo teórico; o outro é uma tarefa por se
fazer, que não nos fornece nenhum
novo conhecimento, mas, nos evita a ilusão dogmática de pretender
conhecer objetivamente aquilo que é inatingível pela nossa experiência. Assim,
Kant começa a apresentar a idéia de uma filosofia crítica. Não se
trata agora de resolver problemas metafísicos em cada caso, mas sim de saber se
a metafísica ela mesma é possível como conhecimento válido.
Os textos pré-críticos, deste modo
reconsiderados, permitem-nos assinalar as falhas contidas na empresa da
metafísica tradicional, como também indicar uma tarefa a seguir, que já não é a
de simples questionamento, mas sim de “crítica” dessa mesma metafísica. Para
esclarecer esta passagem à etapa crítica será necessário determinar os sentidos
em que o termo metafísica é utilizado por Kant, mostrando como a metafísica,
ela mesma, se torna problema. Passa-se, deste modo, de uma reflexão
no interior da metafísica, no tratamento fragmentado de temas parciais dos
textos pré-críticos, para uma reflexão sobre a metafísica, em um tratamento
sistemático dos seus problemas no labor crítico. Por tal razão considero
que não é pertinente interpretar o conceito de “metafísica” em um só sentido,
dependendo este, em cada caso, do contexto no qual é usado por Kant. Esta
advertência de leitura evita-nos o erro de pensar em uma mera substituição de
uma metafísica tradicional por uma “metafísica transcendental”, tal como
tentarei mostrar, ao menos parcialmente.
Esta reflexão sobre a metafísica,
desenvolvida na etapa crítica, permite-nos observar como esta classe de
“problemas metafísicos”, eles mesmos, não são uma “invenção arbitrária e
extravagante de mentes ociosas”, mas sim são gerados necessariamente pela
própria natureza da razão de acordo com um princípio de funcionamento
lógico, que diz: dado o
condicionado, é necessário procurar a série das condições até atingir sua
totalidade. O aparelho cognitivo funciona de tal modo que nos pede para
progredir ou regressar nas condições do dado. Essa região de problemas da
razão, denominada “metafísica”, é constituída a partir das perguntas pelas
totalidades absolutas de condições de objetos dados, e é totalmente natural e
até necessário deparar com essas perguntas. Neste sentido se destacará a
importância da mudança kantiana de interpretação na teoria do silogismo. Com
efeito, a mudança da interpretação do silogismo, determinada na sua premissa
maior a partir do conceito de “característica” para o conceito de ‘regra”
(entre o texto pré-crítico de 1762 e a CRP), desempenha uma função essencial
para a formulação dos problemas necessários da razão.
Mas assim como esses problemas são
colocados necessariamente pela razão, também é possível cairmos em uma “ilusão
da razão”, ao se entender um princípio subjetivo de funcionamento da razão
(que pede para continuar à pesquisa das condições até o incondicionado) como
lei objetiva de constituição dos objetos. Deste modo, os problemas metafísicos
tornam-se insolúveis, devido ao uso transcendental (extravagante, excessivo)
dos princípios da experiência, que colocam aquela (a razão) em contradição
consigo mesma ou conduzem às obscuridades semânticas. As proposições surgidas
de tais contradições e obscuridades carecem de qualquer fundamento que permita
decidir a validade dos problemas; desta maneira a “história da metafísica”
será a história dos dois modos de enfrentar estes problemas, a saber: dogmática
ou ceticamente. A tentativa dogmática desenhará inúmeras propostas sem um
resultado certo. Enquanto que no ceticismo,
assinalando a falta de
fundamento válido no dogmatismo, acabar-se-á rejeitando a própria
possibilidade dos problemas metafísicos, através do apelo a uma ignorância
necessária da parte do conhecimento humano.
Frente a esta dicotomia (dogmatismo
teórico versus ceticismo) Kant tentará investigar a própria razão, seus problemas
necessários; assim como também procurar as condições de possibilidade da
sua resolução ou determinar sua insolubilidade. Essa será a tarefa crítica. A
passagem da etapa pré-crítica para a etapa crítica será a passagem da reflexão
no interior da metafísica à reflexão sobre a metafísica, sob a forma da
indagação acerca das condições e limites do nosso conhecimento.
A pergunta aqui é:
Como é que a nossa razão pode estender o
nosso conhecimento objetivamente?
Que posso conhecer?
Que me está dado conhecer?
Os problemas da metafísica são,
portanto, problemas necessários da razão que exigem uma solução válida.
Como observamos, não é legítimo nem a mera afirmação dogmática, que carece de
um fundamento sólido, nem a rejeição cética que diretamente abandona a
pesquisa. Para poder fornecer algum tipo de resposta é preciso saber, antes de
mais nada, até que ponto pode avançar no conhecimento sem cair na mera
afirmação sem fundamento.
A nossa exposição se deterá na colocação
do problema como tal, sem avançar no desenvolvimento do mesmo. Este último
seria o aspecto positivo do labor crítico. A nossa problemática é a de olhar
para o limite, indicar apenas o aspecto negativo do resultado das pesquisas
kantianas.
Para levar adiante a nossa interpretação
foi necessário entender a filosofia kantiana como uma permanente
polêmica com outros filósofos antecessores e contemporâneos ao nosso autor,
como Hume, Descartes, Leibniz, Jacobi, Eberhard entre tantos outros. No fundo
destas polêmicas devemos considerar que a metafísica toda é a que está em jogo.
Nesse sentido, tentamos tratar a questão como um problema filosófico e não
apenas como uma raridade do passado. A metafísica não é um problema
ultrapassado, nos atravessa. Ainda hoje o logicismo e o matematicismo ocultam,
sob a forma do “rigor” e da “efetividade” da sua demonstração, o gesto metafísico
de pretender o que é impossível conseguir, a saber, a demonstração da
demonstração. A metafísica não acabou no surgimento da ciência e da técnica,
muito pelo contrário, é ali onde aparece com toda sua força, quando se instaura
como gesto instalador, ou, como disse J.L.Borges, com sua maior claridade.
A metafísica como problemática, no
interior do texto kantiano, é explicitada à luz da questão semântica. É isto o
que nos permite expor a desarticulação
crítica do projeto da metafísica e a finitude de nosso alcance.
A metafísica é um modo do pensamento que
procura esquecer, evitar, reprimir a finitude a partir da qual se abre sua
própria possibilidade.
A metafísica é um modo de operar contra a
finitude.
As operações metafísicas pretendem
controlar a totalidade do mundo a partir do além e instaurar finalmente o
império do infinito.
Contrariamente, a minha tarefa aqui foi
apenas a de um peregrino que colhe alguns ensinamentos mundanos nessas terras
metafísicas....
Parte 1
Problemas de significação nos textos
pré-críticos.
1.1- Introdução.
No dia 21 de setembro de 1798, em uma
extensa carta dirigida a Garve, Kant queixa-se da “vegetativa mais do que
escolar condição”[3]
à qual ele foi reduzido por alguns comentadores. Ali ele se incomoda pelo modo
em que é tratado pela crítica. Também na carta a Herz de 11 de maio de 1781[4] escreve
que sua obra não é “popular” e, portanto, exige um esforço de compreensão
diferente. Problemas desse tipo prolongam-se, por exemplo, na polêmica com
Eberhard, tal como pode ser constatado na resposta kantiana[5]
e na correspondência da época. Essa classe de “más interpretações” não ficou
apenas reduzida à primeira crítica, também a segunda encontrou essas
inconveniências. Assim o indica, por exemplo, o prefacio à Crítica da Razão
Prática onde Kant reproduz o questionamento que um crítico teria feito em
tom de indignação, para indicar que era exatamente esse o objetivo de seu
trabalho[6].
Até o ano da sua morte (1804), a quantidade dos escritos pró e contra a
filosofia transcendental era de dois mil[7],
fato que o preocupou muito. É bem sabido que Kant não temia ser refutado, mas
sim não ser compreendido[8]
em relação ao significado das suas teses. Certa ocasião, olhando para as mais
adversas reações que a crítica tinha originado, afirmou que, quiçá, sua
filosofia fosse entendida em cem anos[9].
Essa mesma visão otimista, na qual
prognosticara que a passagem do tempo permitiria melhores interpretações,
mostra-se também na reflexão 5015. Ele escreve: ”uma vez que se tenha
esfriado a efervescência dos espíritos dogmáticos, creio que esta doutrina é a
única que subsistirá a ir adiante”[10].
O otimismo kantiano parece apoiar-se em uma superação filosófica do ceticismo,
mas, ainda restaria superar a teimosia do dogmatismo, que com a força das suas
escolas impediria qualquer avanço da razão.
A essa tentativa malograda de profecia
sucederam-se duzentos anos das mais variadas leituras. Assim foi como as
interpretações malsucedidas de então, que perturbaram Kant no esclarecimento da
sua escrita, caíram no esquecimento, para que novas interpretações ruins
tomassem o lugar das antigas. Isto não é uma paráfrase retórica, é um exercício
constante. Deste modo re-escrever a crítica tornou-se, sem dúvida, uma
tarefa do dia a dia no Ocidente, e, devido a isso, poderíamos dizer que Kant já
conseguiu perder (ou talvez apenas esquecer) o medo de não ser compreendido.
Entretanto, naquela carta a Garve,
Kant, no seu afã de explicar-se mais um pouco sobre seu labor, aproveita a
oportunidade para fazer uma observação esclarecedora sobre a origem da Crítica
da Razão Pura. Nesse texto Kant nos diz que seu ponto de partida foram os problemas
da razão, e mais especificamente as Antinomias. Estas o acordaram do sonho
dogmático e o empurraram à crítica da razão a fim de acabar com o
escândalo da filosofia, a saber, a contradição da razão consigo mesma[11].
Tratar-se-ia, pois, de aprofundar os problemas oriundos da própria razão e, por
conseguinte, de saber até onde posso ir com ela sem me contradizer. Isto é,
determinar quais são seus limites em relação consigo mesma. Porém, não se
procura aqui alcançar, por exemplo, o limite da razão em relação com a loucura,
para, deste modo, determinar o que é verdadeiro na primeira e o que é “errante”
na segunda; nem mesmo colocá-la em relação com a paixão para justificar a mesma
operação de oposição. Essa empresa tinha sido feita pelos seus antecessores, e
agora não era isso o que se procurava. A idéia é radicalmente distinta. É a
própria razão -diz Kant- a que gera suas “ilusões”, e é ela, sem ajuda de mais
nada, a que deverá desembaraçar-se daquele engano. Aqui a filosofia não tem,
como noutras oportunidades, a ajuda de um Deus salvador.
Neste sentido, é possível dizer que a Crítica
da Razão Pura é fundamentalmente uma teoria da solubilidade dos problemas
necessários da razão. Esta afirmação, como resulta evidente, pode estar
apoiada no estudo da própria tarefa crítica, iniciada com a obra de 1781
(CRP), na qual Kant pesquisa explicitamente a capacidade ou incapacidade
da razão para resolver seus problemas necessários.
Tal é o trabalho desenvolvido em Loparic
(1982)[12],
onde os problemas necessários da razão estão colocados em estreita relação com
a questão lógico-semântica da sua formulação. Na sua pesquisa Loparic
propõe que a crítica é uma teoria da decidibilidade dos problemas
inevitáveis da razão especulativa, e a metafísica da natureza, uma
teoria da pesquisa científica no campo da natureza. De acordo com esta leitura
a tese básica da crítica consiste no seu teorema de decidibilidade,
“segundo o qual, com respeito a uma questão qualquer que nos seja proposta pela
natureza da nossa razão, uma das duas alternativas vale: ou sua
indecidibilidade é demonstrável ou existe um procedimento para dar-lhe uma
resposta definida”[13].
Este teorema é formulado em relação à possibilidade ou impossibilidade das
proposições sintéticas. A concepção kantiana da possibilidade das proposições
sintéticas requer:
a) uma teoria da referência e da
significação dos conceitos utilizados nessas proposições; e
b) uma teoria das condições de verdade
ou falsidade de tais proposições.
Quer dizer que, para poder estabelecer a
possibilidade das proposições sintéticas é preciso, de acordo com Loparic, de
uma semântica transcendental ou a priori (este será o conceito
chave em Loparic para poder entender a teoria dos problemas e a significação
dos conceitos).
Esta semântica pode ser formulada em duas
condições básicas:
a) todos os conceitos não-lógicos que
ocorram em uma proposição sintética devem ter referência e significado
objetivos;
b) as formas proposicionais, surgidas pela
combinação de operações lógicas, devem poder ser interpretadas por formas
sensíveis[14].
A primeira condição é enunciada em relação
à interpretação sensível dos conceitos (procedimento de doação de
significação) desenvolvida basicamente no esquematismo transcendental da CRP,
enquanto a segunda se explicita em relação à possibilidade de verdade ou
falsidade das proposições usadas na formulação destes problemas, e que é
enunciada nos princípios do entendimento.
Trata-se então, de uma teoria dos
problemas baseada em uma semântica que permita decidir acerca dos problemas
solúveis diferenciando-os da classe de problemas teórica e objetivamente
insolúveis[15].
Uma teoria a priori da referência e da verdade deve ser o fundamento de
solubilidade dos problemas.
Neste sentido, poder-se-ia dizer que as
investigações desenvolvidas em Lebrun (1970)[16]
e em Allison (1983)[17]
compartilham com Loparic, fundamentalmente,
uma leitura da CRP a partir dos problemas necessários da razão.
Por sua vez, Allison entende o idealismo
transcendental de Kant quase que essencialmente, em oposição direta ao realismo
transcendental, como uma metafilosofía ou metodologia[18]
a partir da qual é possível começar a formular problemas e resolvê-los. A
posição do “realismo transcendental” é a origem do “escândalo da
filosofia” (a contradição da razão consigo mesma). O realismo se refere ao
mundo como existindo em si mesmo independente das nossas representações,
enquanto que o idealismo transcendental se refere aos objetos como eles
aparecem. Deste modo o primeiro conduz a formulações contrapostas sobre o mesmo
objeto, e o segundo tenta resolvê-las fornecendo as condições da sua validade.
Para diferenciar estas duas posições
claramente é preciso uma interpretação cuidadosa da distinção kantiana entre aparência
ou aparecimento (Erscheinung) e coisa em si mesma (Ding
an sich selbst). Freqüentemente esta distinção é estabelecida como sendo
entre dois tipos de objetos, isto é, como entidades dependentes da mente e
entidades independentes da mente, das quais só podemos conhecer as primeiras,
enquanto que as últimas são inacessíveis para nós. Assim sendo, tudo sucede como
se o idealismo transcendental fosse um “mero idealismo” que só pode
conhecer “meras entidades mentais”
enquanto que a “realidade” fica incognoscível. Allison, distanciando-se desta
proposta de leitura, elabora uma estratégia interpretativa chamada de “dois
aspectos” (two aspect). A partir dela tenta interpretar a distinção
de aparência (appearence) e coisa em si mesma (thing in themselves)
como uma distinção de dois modos de considerar os objetos. A saber, como eles
aparecem, isto é, sujeitos às condições humanas para a possibilidade da
experiência, e como eles são em si mesmos considerados hipoteticamente
independentemente destas condições[19].
Estabelecido isso, é preciso achar as condições da experiência possível
daqueles objetos. Quer dizer, as “condições epistêmicas” (epistemic
conditions) ou transcendentais do conhecimento humano[20],
pelas quais será possível ordenar a
formulação e resolução adequada dos problemas da razão.
Lebrun, por sua vez, coloca os problemas
da metafísica especial, como problemas necessários da razão,
em relação com o problema da significação dos conceitos usados na sua
elaboração. É interessante observar -nas sugestões de nosso comentador- como
Kant nas Reflexionen medita sobre a linguagem da ontoteologia
tradicional e destaca os sentidos dos termos metafísicos. Estas meditações
vinculadas à tarefa crítica conduzem Lebrun a declarar que “não existem
respostas kantianas a problemas tradicionais, mas apenas falsos problemas
tradicionais”[21].
Quer dizer, frente aos antigos problemas da metafísica tradicional (seja em
relação aos objetos da metafísica especial como da geral) não é correto
fornecer mais uma resposta, ainda sendo esta inovadora. O que está em jogo é a
própria problemática enquanto tal, a possibilidade dos problemas mesmos. A
tarefa crítica é entendida como uma análise semântica, uma leitura das
significações, e não mais uma nova resposta aos antigos problemas da metafísica
dogmática.
Embora seja a partir de pontos de vista
diferentes e, portanto, com conseqüências de leitura também diferentes (que
aqui não interessa destacar), as
perspectivas destes autores indicam um ponto comum: a questão da problematização
na filosofia crítica. Quer dizer, a razão enquanto “razão problematizante”.
Esta questão torna quase que inevitável a preocupação semântica, qualquer que
seja o modo em que se trata. Os problemas gerados pela razão devem poder ser
formulados em certo campo semântico, isto é, respondendo a certos
requisitos semânticos que constituam uma ordem de sentido, para poder ter
referência e significação e assim terem a possibilidade de ser verdadeiros ou
falsos. Partindo deste tipo de abordagens do texto crítico se faz necessária
uma releitura dos textos pré-críticos.
Sua reconsideração é urgente.
Se a crítica já não é a mesma reiteração
do gesto dogmático, se não é apenas mais uma metafísica, então devemos destacar
os elementos que fazem possível esse novo modo de colocar problemas. Esta
tarefa não só é possível de se levar adiante nos textos posteriores à
Dissertação de 1770, senão que, tal como demonstraremos neste texto, torna-se
pertinente identificar sinais muito
específicos da preocupação semântica de Kant, com respeito à formulação e
resolução de problemas já existentes nos textos pré-críticos.
1.2- A dobradiça entre o pré-crítico e
o crítico
Tem-se geralmente estabelecida uma ruptura
intransponível entre os chamados períodos pré-crítico e crítico,
até o ponto de desacreditar o primeiro como dogmático ou meramente empirista,
segundo seja o ano de edição do texto pré-crítico em questão. Uma classificação
muito conhecida comanda desde o fundo quase que todas as leituras dos textos
kantianos antepondo, de maneira não-crítica, o resultado à pesquisa.
Primeiramente haveria um Kant crítico e
outro pré-crítico. Pela sua vez, alguns comentadores arriscam que o crítico
deveria ser subdividido entre aquele das duas primeiras críticas e o da última,
não discutirei esses argumentos aqui. Por outra parte o Kant pré-crítico
deveria ser seccionado em:
a) o momento do racionalismo dogmático
que se estenderia desde o começo da obra até inícios de 1760, este subperiodo
estaria caracterizado pela física de Newton e a metafísica de Leibniz e Wolff,
determinando as grandes linhas de pesquisa e pensamento;
b)
o momento do empirismo, que se prolongaria por toda a década de 1760,
ali Kant teria sustentado as influências de Locke e Hume, como também de
Rousseau e Shafterbury.
Uma pesquisa biográfica, mostrar-nos-ia
que efetivamente Kant estudava intensamente esses autores naquelas épocas.
Contudo, o inconveniente surge quando daqui se deduz abruptamente que Kant
estaria apenas exercitando a mesma operação de escritura que os autores que
lia.
Este ponto foi utilizado como fundamento
da classificação tradicional argumentando que, por exemplo, o pensamento
kantiano no período da Monadalogia é dogmático por que, ainda que oposto a
Leibniz, ele propôs que o método lógico de análise dos conceitos é suficiente
para atingir a essência do real; ou que, em outros textos, admite que as provas
da existência de Deus possuem um valor de certeza que não teriam no período
crítico. Mais ainda, continuando esta mesma linha e reiterando o mesmo gesto de
leitura, Kant teria passado pela década de 60 repetindo o empirismo, e até o
bom humor de Hume nos Sonhos de um visionário.. Isso tudo teria se
prolongado até que por fim, um dia, Kant “teria acordado do sonho
dogmático...”.
Como sabemos, a questão do “sonho
dogmático” é uma metáfora que Kant utilizou para se referir à passagem para a
empresa crítica. Entretanto, a classificação tradicional não parece permitir-se
ler esta sentencia como “metafórica” e a toma ao pé da letra[22].
Na classificação tradicional tudo aparece como se Kant “houvesse acordado
mesmo” e no seu estado de semivigilia tivesse sorrido do sonho (contado no
texto de 1766) para que, finalmente, já bem disposto (na Dissertatio) começasse
o verdadeiro trabalho de vigília (da crítica). A noite do dogmatismo kantiano
teria sido superada pela luz da crítica em uma simples questão de tempo. Assim,
a classificação tradicional baseia-se em uma periodização cronológica dos
textos, como também em uma evolução por ruptura da obra kantiana, que determina
toda pesquisa sobre os escritos apagando qualquer exercício de leitura. Assim o
esquema fica organizado e fundamentado sobre os elementos da cronologia e da
pressuposição[23].
Não é esta a nossa avaliação.
Apesar de ter sido o mesmo Kant quem
chamou de dogmático seu primeiro período em vários momentos da etapa crítica,
não é adequado considerar que isso implique diretamente o esquecimento daqueles
textos, muito pelo contrário, é possível encontrar aí o começo da
problematização de vários tópicos que serão sistematizados mais tarde na etapa
crítica. O próprio Philonenko diz, que mesmo quando Kant olha para os escritos
pré-críticos sem agrado, e tal vez desejara não vê-los publicados em suas
obras, a utilidade de estudá-los é importante, já que “se vê formar aos poucos
as noções principais, por exemplo, a distinção entre pensar e conhecer, a
distinção entre razão lógica e razão real, a separação entre matemática e
filosofia”[24].
Deste modo os textos pré-críticos seriam vistos como pré-originários. A importância
do seu valor estaria no seu caráter germinal. Tudo se passa como se as “noções
principais” em estado pré-crítico fossem corrigidas, aos poucos, para serem
transformadas em “críticas”. Dando um passo a mais que Philonenko, nós podemos
dizer que não se trataria da origem germinal daquilo que evoluiria com o passar
do tempo até se converter no fruto maduro da “crítica”, metáfora demasiado cara
para o pensamento de Kant. Contrariamente, podemos afirmar que é através desses
tópicos que os problemas semânticos já aparecem. Não é que a Crítica
esteja escrita nas entrelinhas dos primeiros textos. Nossa leitura propõe-se a
olhar para outro destaque que declaramos logo. Os textos pré-críticos já
apresentam fragmentariamente os problemas semânticos que serão sistematizados
na etapa crítica.
A relação pré-crítico/crítico não
representa nem uma ruptura, nem uma evolução no sentido estrito. O deslocamento
de sentido que ali se produz traz as marcas dos antigos textos. Uma reflexão de
Kant, (Rx 4964) sobre a CRP,
permite pensá-los neste sentido. “Por este trabalho, o valor de meus escritos
metafísicos precedentes é integralmente negado. Eu procurei apenas salvar a
justeza da idéia”[25].
Com efeito, o trabalho crítico choca com a empresa metafísica da
época anterior. É por isso que o valor daqueles escritos, em relação aos seus
resultados, deve ser deixado de lado para os interesses da etapa crítica. Mas,
“a justeza da idéia” que ele procura salvar é aquilo que emerge nos textos
pré-críticos, e que aqui tentarei enunciar como a “preocupação pela
significação dos conceitos e a formulação de problemas com sentido”. Essa será
a problemática a sistematizar a partir dos trabalhos da década de setenta. Em
uma carta a Herz de 20 de agosto de 1777 Kant[26]
é explícito enquanto à sistematização de seu trabalho, a saber: “Desde a época
em que nós nos separamos, minhas investigações parciais de antes, dirigidas a
todos os tipos de objetos da filosofia, tomaram forma sistemática e eu fui pouco
a pouco conduzido à idéia do todo, que é a única a tornar possível o juízo
sobre a natureza de cada parte e sua influência recíproca”. Como é de notar, a sistematização
que Kant procura tem a ver com o modo de colocar os problemas que já tinham
surgido nas décadas passadas. O giro do pensamento kantiano será alcançado com
a realização desse trabalho que, como poderemos observar, não foi tão simples.
Nessa mesma carta Kant reconhece que esse é o obstáculo que detém a finalização
da Crítica da Razão Pura, ele quer apresentar suas idéias com total
claridade e tem todos seus esforços voltados para isso; pensa acabar no
inverno, mas sucederam-se mais dois invernos para poder finalizar a tarefa
empreendida, ou talvez, seja melhor dizer começar a empreendê-la.
Esse novo modo de colocar os problemas é o
que guia Kant na crítica contra Hume (nos Prolegômenos a toda metafísica
futura...[27])
sobre a falta de sistematização deste, ao tratar o fundamento do princípio de
causalidade. Esta falta o leva a um engano, diz Kant. Tal como Hume demonstra
no Tratado da Natureza Humana, a causalidade não está nas coisas elas
mesmas, mas, nos advertirá Kant, também não é um simples habitus. Essa
conclusão errada, segundo Kant, é possível por não ter sido sistematizado
aquele questionamento. Um tratamento desses conduzirá inevitavelmente ao
ceticismo ou ao dogmatismo, o que devemos evitar se não queremos repetir o erro
metafísico. Nesse sentido é que a crítica passa a ser um tratamento sistemático
dos antigos problemas, não por haver criado mais um sistema metafísico a partir
do qual pudesse responder às antigas perguntas, mas sim por tratar com a
formulação mesma do problema, quer dizer, com suas próprias condições de
possibilidade.
Como temos antecipado até o momento, todos
os indícios para a demonstração daquela afirmação (a crítica como teoria
dos problemas baseada na significação dos conceitos) podem ser
procurados nos textos pré-críticos. Isto não implica, necessariamente, que a
origem da CRP esteja na primeira monografia de Kant, propondo deste modo
um estudo da gênese da obra crítica[28].
Nem mesmo, ao contrário, uma leitura teleológica, na qual tudo faria sentido a
partir do fim. Se assim fosse teríamos que começar pela última página escrita
por Kant ou seus últimos minutos de vida.
Longe disso.
Inclusive, quando a tarefa crítica não
aparece como a mesma, quando é lida a partir dos problemas da razão ou da
faculdade judicativa, não é correto, por isso, concluir que há um sentido
da obra partindo do final para o começo. O propósito é apenas mostrar que a
problemática semântica, essencial no período crítico, já aparece repetidamente
nos textos pré-críticos de diversos modos. Não como germe, mas sim como
obstáculo na tentativa de procurar uma metafísica bem-sucedida. Não como a
origem mínima de um desenvolvimento mais abrangente, mas sim como um verdadeiro
mal-estar que aparece a cada passo no tratamento de problemas
específicos. É neste sentido que é preciso reconsiderar os textos pré-críticos.
É claro que uma exegese profunda sobre eles se faz necessária, mas, por
enquanto, aqui somente me deterei naquilo considero ser os limites desta
pesquisa, a saber, os problemas de significação.
1.3- O mal-estar filosófico (acerca dos
problemas metafísicos).
A partir de alguns textos pré-críticos
kantianos um mal-estar começa a se manifestar claramente. Trata-se da formulação
e resolução dos problemas metafísicos. Na procura por resolver problemas, que
permitam alcançar uma metafísica certa, a preocupação pelo erro
lógico-semântico vai se tornando, aos poucos, uma exigência temática no
desenvolvimento das pesquisas kantianas.
Trabalhos monográficos e meditações
parciais, assim como cartas pessoais feitas ao longo de vinte anos, que
trataram temas da lógica, da verdade, da existência (e que foram mais tarde
sistematizados), colocam em evidência, na sua maioria, o uso abusivo de:
1) alguns princípios de experiência, que
não tendo garantias fora desta, são aplicados sobre objetos não “experienciais”[29].
2) regras lógicas, que tendo validade para
as formações proposicionais, não são, por esta razão, a origem da existência
das coisas.
3) a cláusula metafísica da razão
suficiente.
Estes tópicos são, algumas vezes, tratados
especificamente em trabalhos que explicitamente manifestam o descontentamento
com a metafísica dogmática; outras vezes parecem ser o resultado, ora
principal, ora secundário, de longas meditações sobre os temas mais diversos,
começando pela geometria e ciência natural indo até à psicologia e teologia.
Contudo, esta tarefa, realizada por Kant,
mostra que a metafísica dogmática tradicional serve-se de princípios sem
garantias, elevando-se além da experiência, e responde às suas questões (sobre
objetos supra-sensíveis) de modo infundado, colocando a razão em contradição
consigo mesma, e tornando seus problemas, deste modo, insolúveis. Este não é um
problema de tal ou qual metafísico em particular, que, indevidamente,
confundiria os objetos; é a própria razão que no seu funcionamento, permite
este desvario. Noutras palavras, é a própria razão que está doente. Mas é claro
que a doença (o problema kantiano) não será manifestada de uma vez, pois serão
precisas uma série de rodeios, desculpas, evasivas, rejeições, transferências
e, até mesmo, esquecimentos e silêncios para conseguir fazer uma boa (terapia)
crítica à metafísica tradicional[30].
1.4- Relações conflituosas (acerca da
ciência da natureza e da metafísica).
A polêmica das posições teóricas de Newton
e de Leibniz marcou boa parte da literatura científica e filosófica do século
XVIII que tratava das relações entre física e
metafísica. Kant, como é de esperar, não ficou alheio a esta questão. Tal é a
preocupação de Cassirer em mostrar este tópico em vários dos seus textos[31].
De um outro modo, em Lebrun (1970) pode encontrar-se a relação de Kant com a
ciência veiculada pelos paradigmas de Newton e Leibniz, às vezes aderindo a um
ou a outro, às vezes tentando opô-los[32].
Em Torretti (1980) este tópico é visto como uma das origens da filosofia
crítica[33].
Seja como for, a relação entre a ciência da natureza e a metafísica é um dos
tópicos fundamentais da tarefa kantiana já nos primeiros escritos.
Assim, podemos ver na História
Universal da Natureza e Teoria do Céu Onde se Trata do Sistema e da Origem
Mecânica do Universo Segundo os Princípios de Newton (1755)[34],
que Kant tenta mostrar, que não se tem necessidade de supor uma intervenção
divina que prescreva condições precisas aos corpos do sistema planetário.
A origem e constituição deste podem ser
explicadas mecanicamente segundo os princípios newtonianos. Mas, mesmo assim,
ele justifica esta explicação físico-mecânica do Universo, argumentando que
aquela (explicação) não invalida nem rejeita a existência de Deus, pelo
contrário, a existência de leis físicas que possam dar conta do funcionamento
do universo constituem a prova da existência de um fundamento ainda mais
profundo que o da causalidade física. É provável, como afirmam alguns
comentadores, que esta afirmação tenha sido declarada para evitar possíveis
censuras de caráter religioso, mas, ainda assim, fica claro que o teológico
deve ser separado do físico-matemático. Por tal motivo, Kant reprova Newton
quando este apela à intervenção da divindade. Colocando-se em favor da
autonomia das leis físicas, e argumentando que estas independem de qualquer
teologia (já que suas regras e procedimentos têm um registro próprio, que não
precisam da intervenção de elementos alheios, para que possam ser ditos
verdadeiros ou falsos), Kant coloca o problema teológico como um problema de
outro campo. Tratar-se-ia de um tipo de especulação que nada teria a ver com a
demonstração fisico-matemática da regularidade dos movimentos do Universo. A
intervenção desse tipo de especulação não é permitida nem como hipótese para
explicar outros acontecimentos. É por isso que, como Kant faz notar no apêndice
desse texto, tal tipo de especulação não está legitimada nem mesmo para
perguntar pela possibilidade de vida noutros planetas. Esta é uma simples
liberdade da imaginação, que não pode ser demonstrada nem como verdadeira, nem
como falsa.
Nesta perspectiva, e seguindo o exemplo de
Kant, pode supor-se que a matéria com que estão feitos os planetas e cometas
preenchia todo o espaço cósmico em forma de caos e foi ordenando-se segundo as
leis de atração e repulsão. Deste modo, um todo ordenado surge sem intervenção
de invenções inoportunas surgidas a cada hora para explicar tal ou qual
movimento em particular, e sim pela ação de leis mecânicas “previamente”
estabelecidas.
Não se trata de mero ateísmo, todos
sabemos que Kant não era ateu. Aqui não está em jogo a existência de Deus,
melhor ainda, poderíamos acrescentar, “existe um Deus porque a Natureza deve
proceder regularmente”. Mas isso não é ciência da natureza, e é por essa razão
que não é lícito fazer intervir inteligências estranhas para explicar o
movimento dos astros. Kant não rejeita o problema teológico nem o coloca como
fundamento, simplesmente separa campos. O caráter “prévio” das leis físicas
muda o estatuto mesmo da explicação que deve ser elaborada. Desta maneira é
necessário, pelo menos, não confundir os níveis de argumentação para poder
tratar como verdadeiros ou falsos os resultados das hipóteses estabelecidas.
Qualquer argumentação de ordem teológica deve ser separada da demonstração da
ciência da natureza.
Como referência histórica é bom lembrar
que neste trabalho Kant postula o que se denomina de “nebulosa primitiva” ,
mais conhecida hoje como a “hipótese Kant-Laplace”, devido à semelhança de
ambas. Quando Laplace apresentou sua cosmogonia à Napoleão, este perguntou ao
autor qual era a função de Deus no seu sistema e Laplace contestou: “Sire,
j’ai pu me passer cette hypothèse”[35].
Nesta pequena anedota ilustra-se como, a partir do ponto de vista da autonomia
das leis físicas, Deus só podia ser considerado uma hipótese de trabalho
e não um princípio ontológico a partir do qual seria derivado o sistema na sua
totalidade. Como dissemos anteriormente, tanto Deus quanto os habitantes de
outros planetas podem ser considerados apenas hipóteses, e não objetos sobre os
quais possamos predicar alguma coisa possível de ser estabelecida como
verdadeira ou falsa. Mesmo assim a “hipótese” para Laplace foi desnecessária.
Assim sendo, de acordo com Kant, a ciência
da natureza deveria separar-se rigorosamente de qualquer questão
não-científica, isto é, deveria ser separada de qualquer argumentação
teológica ficando só a explicação mecânica, e dar ainda mais um passo,
para que esta explicação científica se torne a base sólida de uma metafísica
que atinja conhecimentos certos (e não meramente arbitrários como até agora),
empresa esta não tão simples.... Kant queria progredir do validamente
estabelecido (de acordo com critérios provados) à problemas (ainda) sem solução
(os problemas metafísicos), e não, pelo contrário, (como no procedimento dos
dogmáticos) partir de hipóteses arbitrárias para explicar o dado na
experiência.
Em Breve Esboço de Algumas Meditações
Sobre o Fogo (1755, b)[36]
Kant volta a opor a ciência natural à metafísica tradicional. Desta vez, ao se
referir ao método utilizado nesse ensaio. O ponto colocado como central,
de acordo com Kant, é o “de não fazer excessivas concessões ao método de
demonstração hipotético e arbitrário, e seguir com toda fidelidade o fio
condutor da experiência e da geometria”[37].
Deste modo Kant tenta demonstrar, com
argumentos mecânicos, que a coesão e elasticidade dos corpos sólidos e fluidos
exigem uma “matéria elástica”, “todo corpo consta de partes sólidas unidas com
uma espécie de matéria elástica”[38].
Isto permite falar de uma atração das partículas elementares ainda quando não
estejam em contato direto. A matéria elástica preencheria os interstícios entre
as partículas simples “redondas” e permitiria sua coesão e contração. Kant
justifica esta formulação explicando que a fluidez não pode ser demonstrada
pela divisão da matéria em partes lisas, pequenas e levemente unidas, assim
sendo apelará para a decomposição de forças das partículas simples e exigirá a
necessidade de uma matéria elástica que “comunique” sua força em todas
as direções.
Na segunda parte do trabalho, com estes
elementos na mão, Kant procederá a explicar alguns fenômenos físicos e químicos
tais como o fogo, a ebulição, o calor, a transparência dos vidros e a natureza
dos vapores.
É claro que as explicações kantianas aqui
desenvolvidas ainda pertencem ao horizonte da metafísica leibniziana (por
exemplo, o recurso à redondeza das partículas simples, ou o próprio
conceito de força); mas o problema da constatação da ciência
(através da experiência e a construção geométrica) frente à especulação da
metafísica (por meras hipóteses) já é colocado na perspectiva do método
e é isso que distingue Kant de Leibniz. As hipóteses devem poder ser
representadas geometricamente e a explicação deve poder ser desenvolvida a
partir dali.
Explicitamente procura-se um método que
seja autorizado pela experiência para poder, deste modo, ampliar o nosso
conhecimento com segurança. Cabe duvidar se tal propósito foi, nesse texto,
alcançado ou não. Mas o que realmente aqui interessa (além de encontrar ou não
um método empírico para a ciência natural) é destacar a necessidade de referir
os elementos envolvidos na questão, e é isso o que constitui um problema de
significação na reflexão kantiana.
Uma leitura semelhante faz Cassirer sobre
o texto de 1746 Idéias Sobre a Verdadeira Apreciação das Forças Vivas.
Segundo o nosso comentador, aquele é um texto que se inscreve no interior do
campo metodológico geral e por isso ele escreve que: “não se tratava de
comprovar determinados fatos concretos, mas de estabelecer um antagonismo
fundamental na interpretação dos fenômenos do movimento já conhecidos e dados,
não se tratava de ponderar os diversos fatos e resultados das observações, mas
de esclarecer os princípios a que está sujeita a investigação da natureza...”[39]. O que o texto kantiano revelaria, e onde se
localizaria o valor daquele escrito, é a preocupação filosófica pela
investigação sobre as forças na natureza. Quer dizer, a preocupação de Kant
teria sido sobre o modo de proceder no conhecimento, sobre o modus
cognoscendi exposto na pesquisa, e não apenas sobre o resultado.
Parafraseando Kant[40]
podemos dizer que, é preciso ter um
método a partir do qual possamos deduzir em cada caso se a natureza das
premissas abrange todo o necessário para derivar às conclusões às quais
chegamos. A metódica preocupação kantiana sobre o método aparece primeiro no
seu aspecto lógico, deve-se cuidar adequadamente que a conclusão seja deduzida
das premissas; mas também será indicado o aspecto semântico na construção da
prova: deve-se escolher adequadamente as funções da construção da prova (der
Construction des Beweises) para que esta seja válida. É através da
construção dessas provas que Kant tenta se separar de Leibniz e atingir uma
metafísica verdadeira. E é por isso que “este método é a Hauptquelle de
todo o tratado” e é aquilo que permitirá à metafísica ultrapassar o umbral do verdadeiro conhecimento. Apesar
disso, vários comentadores concordam em que as pretensões kantianas são maiores
que seus resultados efetivos.
Entretanto, na Monadalogia Fisicae
(1756)[41]
Kant utilizará, sem qualquer restrição, um procedimento que paradoxalmente já
tinha criticado, a saber: o de pretender a existência real (neste caso
das mónadas) demonstrando-a segundo um simples raciocínio lógico. Isto
é, sem ter mostrado sua referência objetiva na experiência. É pelo menos
estranho que depois de ter afirmado a autonomia das leis da física (1755)[42],
garantidas pela experiência através do método (1755 b)[43],
e questionado o princípio de razão suficiente (1755 c)[44],
ele tenha-se voltado para um procedimento dogmático no tratamento da
existência real das coisas sensíveis. Poder-se-ia pensar, sem muita
probabilidade de engano, que essas são também as tentativas de Kant na
elaboração de uma nova metafísica. Nesse sentido o procedimento leibniziano,
concretizado através do caráter em si mesmo legislador do pensamento puro[45],
é inteiramente tentador.
Mais tarde, em um texto de 1764 e no Apêndice
da Anfibologia dos Conceitos... da CRP , Kant retomará o
questionamento e criticará à Leibniz pela intelectualização dos fenômenos feita
através da Monadalogia. Na época crítica o questionamento passa
por não ter diferenciado o que pertence à sensibilidade do que pertence ao
entendimento. O problema da existência encontra-se permanentemente presente no
conjunto da obra kantiana, e por isso é preciso, para esclarecer e abordar de frente
esse tópico, mostrar a trilha sinuosa de idas e vindas que é marcada no
itinerário dos textos.
Ao colocar aquelas questões, a saber: a
autonomia das explicações causais frente à intervenção de inteligências
divinas, a necessidade de um método que leve em conta a experiência e seja
comprovado por esta frente a meras construções hipotéticas, (veiculadas todas
elas pelos problemas da ciência da natureza), Kant, como já temos mostrado,
está procurando uma boa metafísica, que forneça resultados definitivos aos seus
problemas. Mas apesar das tentativas da Monadalogia de encurtar o
caminho, esta pesquisa leva-o a
observar a falta de sentido das especulações da metafísica frente à certeza que
podemos ter da significação das formulações científicas. Assim Kant começa a
compreender que os resultados que a ciência obtém dependem fundamentalmente dos
procedimentos de doação de sentido aos conceitos dos quais esta se serve.
É nesse horizonte que se encontrará a
diferença essencial do método em relação à metafísica.
Na Investigação Acerca do
Esclarecimento dos Princípios da Teologia Natural e da Moral (1764)[46]
Kant coloca o problema da filosofia decididamente como um problema de método:
“nas ciências da natureza, o método de Newton substituiu o conjunto desordenado
de hipóteses físicas por um procedimento seguro de acordo com a experiência e a
geometria”[47].
Segundo Kant, algo análogo deveria acontecer na filosofia. Mas, será necessário
transitar um longo percurso ainda para conquistar essa certeza.
Com efeito, Kant começa estabelecendo a
diferença entre o modo matemático e o modo metafísico de atingir a
verdade. Assim sendo, temos duas vias diferentes para chegar a qualquer
conceito:
a) por ligação arbitraria;
b) por abstração.
As definições das matemáticas são
constituídas pelo primeiro procedimento, enquanto que a metafísica procede da
segunda maneira. Nas matemáticas o conceito não é dado antes da definição, mas
deriva dela. Nesta disciplina a definição procede de modo sintético.
Observemos os exemplos de Kant:
1) a uma figura constituída por quatro
retas que determinam uma superfície plana de tal modo que os lados opostos não
sejam paralelos a denominamos trapézio;
2) a um triângulo retângulo que gira à
volta de um dos seus lados formando uma nova figura o denominamos cone.
Nos dois exemplos, o que está em jogo é a
própria construção da figura. Essa “ligação arbitrária” indica, na
realidade, a relação de construção entre o objeto e o conceito na matemática.
Mesmo no caso da demonstração da divisibilidade do espaço até o infinito, o
geômetra traça uma linha reta perpendicular a duas paralelas e a partir de um
ponto situado em uma delas traça outras linhas que as cortam, e assim a divisão
pode prosseguir indefinidamente. Deste modo os objetos dos conceitos devem
poder ser construídos, sendo a definição uma ordem para construir o objeto.
Poderíamos dizer então que a realidade deve ser demonstrada e não simplesmente
suposta, esta demonstração é dada, na matemática, pelo procedimento de
construção do objeto. A “ligação arbitrária dos conceitos” se apoia no próprio
procedimento de construção, o que faz com que estes tenham referência no campo
dos objetos construídos e não sejam apenas “meras definições”. De acordo
com Kant, os matemáticos não definem um conceito por meio do análise do mesmo,
tal como procede um filósofo. Ou melhor, nesta etapa, Kant considera que o
conceito matemático pode ser analisado em partes simples que, por sua vez podem
ser novamente sintetizadas[48];
entretanto, o procedimento de análise da metafísica não obtêm os mesmos
resultados. É por isso que “a tarefa das matemáticas consiste em reunir e
comparar conceitos dados e grandezas claras e certas a fim de ver o que daí
pode resultar”, e não no simples esclarecimento do conceito.
Por outra parte, na filosofia, o que é
dado previamente não é o objeto, mas o conceito da coisa e de um modo não
suficientemente determinado. Não se trata -diz Kant- de dar uma mera definição
gramatical da palavra tal como no caso em que “Leibniz considerava uma
substância simples da qual tinha apenas representações e a chamava mônada sonolenta. Este nome não
constitui uma definição desta mônada, mas apenas o resultado da imaginação,
pois o conceito não foi dado previamente, mas criado pelo próprio Leibniz”[49].
Deste modo a definição pode ser só um jogo de palavras e a realidade do objeto
que deveria referir apenas um artifício da imaginação.
Vemos então que na matemática se procede
construtivamente. Sendo a relação entre o conceito e o objeto uma relação de
construção. A definição do conceito é, assim, uma operação para obter o objeto.
Entretanto, na filosofia, a definição do conceito não passa de uma “mera
definição” que não permite construir o objeto que deveria apresentar. É deste
modo a filosofia fica falando no vazio, sem qualquer referência a objetos e
nenhuma possibilidade de interpretar suas proposições como verdadeiras ou
falsas.
Esta confusão (de definição e construção)
é devida, fundamentalmente, a não se ter percebido que a natureza dos signos
utilizados na filosofia é diversa da dos signos da matemática. Na filosofia os
conceitos não podem ser decompostos em um pequeno número de conceitos simples,
“na reflexão filosófica os signos (Ziechen) são sempre apenas palavras (Worte)
que no seu conjunto não permitem ver os conceitos parciais (Teilbegriffe)
que constituem a idéia completa (die ganze Idee) designada pela palavra
(Worte), nem podem exprimir, nas suas combinações, as relações entre os
pensamentos filosóficos. É por isso que, neste tipo de conhecimento, é preciso
ter, para cada reflexão, as próprias coisas sob os olhos e é necessário
representar o geral de um modo abstrato, sem nos podermos servir da
considerável facilidade que é a utilização de signos particulares em vez dos
conceitos gerais das coisas”[50].
Desta maneira Kant adverte-nos sobre dois aspectos. Por um lado os conceitos
não devem perder de vista as próprias coisas às quais se referem, isto é, de
alguma maneira devem poder ser apresentadas. E, por outro lado, a argumentação
(a relação entre conceitos) deve poder ser exprimida também por signos
sensíveis. Do contrário nos acontecerá o que sucedeu com Leibniz quando quis
demonstrar que qualquer corpo é composto de substâncias simples. O exemplo foi
oferecido, como já observamos, pelo próprio Kant na tentativa da Monadalogia.
Contudo, neste texto de 1764, Kant
consegue, através da procura de um bom método para a metafísica, atingir a
diferença precisa entre o modo de proceder da filosofia e da matemática. Este
último baseia-se, fundamentalmente, no procedimento de interpretação dos
conceitos. Esta leitura não é trivial, devido a que é necessário dar
atenção à formulação de procedimentos de interpretação (construção, definição)
e à polissemia dos conceitos utilizados por Kant, (é o caso do conceito de
análise), para poder destacar a novidade deste texto. Do contrário, só teremos
em vista mais um escrito dogmático. É neste sentido que encontramos em Ferrarin
(1995)[51]
uma crítica dirigida contra Hintikka que acaba reduzindo o argumento kantiano.
A leitura de Ferrarin questiona uma suposta continuidade na posição de Kant
sobre a matemática, orientada a descobrir nos textos pré-críticos a base para
uma interpretação da intuição como evidência. Esta crítica pode ser totalmente
compartilhada quanto ao estatuto da intuição no texto crítico. Uma análise
apurada sobre o aparelho cognitivo kantiano nos mostraria que a intuição não é
apenas a evidência da qual precisa o nominalista para referenciar
ostensivamente seu conceito, a intuição é um procedimento sintético de
construção, um procedimento construtivo, e não apenas um destaque. No entanto,
quando Ferrarin trata da diferença entre filosofia e matemática no texto do
1764, diz que “Kant não faz menção de construção no que ele chama 'signos
sensíveis' adotados pelos matemáticos: os juízos matemáticos são aqui
analíticos. É verdadeiro que o caráter arbitrário dos signos adotados na
matemática e a origem sintética dos seus conceitos podem ser vistos como o
germe da futura noção de construção na intuição. Apesar disso, a evidência
distintiva que faz da matemática uma ciência exata depende só da univocidade,
imediata verificabilidade e visibilidade dos seus signos, como opostos à indeterminabilidade das palavras que os
metafísicos devem usar, mas não se podem analisar nos seus termos
constituintes”[52].
Na tentativa de se distanciar do nominalismo semântico de Hintikka, Ferrarin
tenta encobrir o caráter construtivo dos exemplos de procedimento matemático
fornecidos pelo próprio Kant. Justamente essa
“univocidade, verificabilidade e
visibilidade” dos signos na matemática não é dada mais do que pela
possibilidade de construir o objeto na “definição” não meramente gramatical do
conceito. É o caráter construtivo o que diferencia a matemática como ciência
exata. Do contrário, se aceitarmos o conceito matemático como mero nome,
deveríamos aceitar também o nominalismo, que de fato Kant rejeita, e com esta a
tese de Hintikka que Ferrarin tenta questionar.
A distinção entre a construção matemática
e a reflexão filosófica, (ou entre a ligação arbitraria de conceitos e a
abstração) conduz a Kant a concluir que
“nada é mais prejudicial à filosofia que as matemáticas, isto é, a
imitação que ela faz do método destas em terrenos onde não tem aplicação”[53].
É justamente este o procedimento que, segundo Kant, teria sido levado adiante
pelos metafísicos dogmáticos, que confundiram a diferença do modo de
conhecimento entre ambas as ciências em detrimento da metafísica. Enquanto na
matemática se encontra presente uma correspondência precisa entre os conceitos
e seus objetos, pelo fato de que o próprio conceito é sua significação, na
metafísica não é possível usar o mesmo procedimento, devido à diferença da
natureza dos signos em questão. Os conceitos usados na metafísica, são
“abstrações” que, segundo Kant, não sã possíveis de se fazer corresponder com
seus objetos do mesmo modo que na matemática. Seria preciso então abrir outro
campo de relações no qual os conceitos e os problemas da metafísica fazem
sentido.
O problema do método na metafísica foi indicado
à Kant, também por Lambert, fato do qual temos conhecimento pela leitura das
suas cartas. O tópico está desenvolvido em uma carta do próprio Lambert de 3 de
fevereiro de 1766[54]
e em um outro rascunho[55]
onde declara que efetivamente o “início da metafísica não são as definições,
mas o que se deve saber para formar definições”. Com efeito, não se trataria de
fazer meras definições apressadas, mas sim de estabelecer as condições pelas
quais essas definições podem ser formuladas. Sendo assim, podemos dizer que os
objetos da matemática são de tal modo que é possível construí-los de acordo com
certas operações. Neste sentido as condições de possibilidade das definições
são as condições de possibilidade de construir os objetos que devem se
apresentar aos conceitos. Lambert coloca em jogo o próprio fundamento do saber
metafísico, sua própria condição. Sabemos que as relações entre Kant e Lambert
foram da maior importância para os destinos dos trabalhos kantianos. Ainda que breve,
devido à morte de Lambert, a correspondência foi muito influente, ao ponto de
Kant se lamentar na década de oitenta dizendo que aquele teria sido o único que
compreenderia verdadeiramente sua obra.
Contudo, então, não é possível usar, na
filosofia, o mesmo procedimento semântico, da matemática, para vincular o
conceito a seu objeto, já que a natureza do próprio objeto não é a mesma.
Poderíamos dizer que esta observação, sobre a natureza do objeto, será decisiva
para a constituição dos campos semânticos que se elaborarão no período
crítico[56].
Afastando a metafísica da matemática Kant tenta aproximá-la à ciência da
natureza. A matemática pode começar
pelas definições, tal como ficou demonstrado, entretanto a “primeira e
principal regra da metafísica é nunca começar pela definição”[57].
Como já mostramos, a significação, neste caso, é sempre imprecisa e não
conseguiríamos mais que uma definição nominal que não forneceria qualquer
procedimento de relação entre o objeto e o conceito. “Devemos começar por
procurar aquilo que no objeto é imediatamente certo antes de qualquer
definição”[58].
Antes de qualquer nominalismo.
Poder-se-ia pensar que Kant está falando
de condições “prévias” dos objetos eles mesmos antes da sua própria
definição? Talvez não seja demasiado
desatino afirmar que sim, sobre tudo quando percebemos as críticas à
Leibniz e uma gradual aproximação da
posição de Newton quando diz que “o verdadeiro método da metafísica é, no
fundo, idêntico ao que Newton introduziu na física...”[59].
Seguindo este exemplo Kant nos dá uma motivação para continuar “Embora não
descobríssemos o fundamento último dos corpos, é todavia certo que eles atuam
de acordo com esta lei e podemos explicar os complicados acontecimentos naturais
se percebermos claramente como eles são submetidos a estas regras bem
estabelecidas”[60].
Uma posição semelhante será colocada por
Kant no texto de 1766[61] em relação ao tratamento da natureza de
uma força, e mesmo da lei de gravitação
newtoniana, definindo-a, como próprio Newton, do seguinte modo: “é um efeito da
atividade universal da matéria sobre si mesma”[62].
Esta definição é posta somente em um sentido ilustrativo e não nos permite
conhecer a natureza da força. Melhor ainda, impede-nos regredir a uma possível
origem da força caindo, desse modo, na armadilha metafísica, isto é procurar
com as ferramentas do conhecimento dos fenômenos aquilo que é impossível de
apresentar na experiência. Por outro lado, o fato de recorrer a qualquer
explicação “espiritualista” dos acontecimentos sensíveis, na tentativa de
explicá-los objetivamente, será visto
como um sinal de uma filosofia preguiçosa[63],
e Kant se não gostava de alguma coisa era justamente da preguiça. Portanto,
primeiramente, será insuficiente qualquer tentativa de definição nominal dos
conceitos que permita criar a ilusão da existência do objeto em questão; e, em
segundo lugar, será também ilícita qualquer invenção artificiosa de forças
últimas ou espíritos voluntariosos na tentativa de encurtar o caminho. Ambas as
alternativas são desconsideradas.
1.5- A razão da existência (acerca da
distinção do lógico e do real).
Outro tópico que é possível destacar na
textualidade kantiana pode ser caracterizado pela relação entre o lógico e o
real. A preocupação kantiana orienta-se aqui para uma delimitação do uso da
lógica na explicação do real. Trata-se de procurar um esclarecimento das regras
lógicas sobre a elucidação da existência. Vejamos os próprios argumentos de
Kant.
Na
Nova Dilucidatio... (1755,c)[64]
a proposta principal enuncia-se da seguinte maneira: indagar “os primeiros
princípios do nosso conhecimento”. Esta tarefa é indicada como o propósito da
metafísica em vários de seus textos,
tanto do período pré-crítico como do período crítico. No texto de 1764
declara-se que “a metafísica não é mais do que uma filosofia que se debruça
sobre os primeiros fundamentos do nosso conhecimento”[65].
Uma afirmação semelhante acharemos no texto de 1766[66]
e na própria CRP[67].
Paralelamente encontraremos também o termo metafísica desenvolvido na definição
de “conhecimento do supra-sensível”[68].
Esta dicotomia, mantida durante vários anos (às vezes sem muita clareza e
causando confusão em alguns leitores), marcará, como veremos, um giro no
pensamento de Kant[69].
Mas, apesar desta multiplicidade, para falar de metafísica neste texto (1755
c), Kant resolve desenvolver somente a primeira definição, e em relação a tal
objetivo se propõe:
1) avaliar a primazia do princípio de
contradição em relação a todas as outras verdades;
2) expor uma compreensão verdadeira do
princípio de razão suficiente;
3) estabelecer dois novos elementos do
conhecimento metafísico.
Dado o propósito de meu trabalho não
abordarei todas as conseqüências deste texto, que supera em muito o objetivo
desta pesquisa. Apenas cuidarei da questão da significação dos conceitos, que é
um tema específico se levarmos em conta o tratamento que Kant faz da metafísica
na sua totalidade, mas também é fundamental se tentarmos assinalar, como é este
o caso, o modo de formulação e resolução dos problemas dessa mesma metafísica.
Por tal razão restringir-me-ei somente
aos dois primeiros tópicos e mais especificamente ao segundo.
No primeiro tópico demonstra-se a
existência de dois princípios primitivos, um que fundamenta as verdades
afirmativas, e outro que fundamenta as verdades negativas. Assim o enuncia a
Proposição II: existem dois princípios absolutamente primeiros de todas as
verdades, um para as afirmativas: “Tudo aquilo que é, é” (quicquid est, est),
e outro para as negativas: “Tudo o que não é, não é” (quicquid non est, non
est). Ambos são geralmente chamados “princípio de identidade”[70]
(Principium identitatis). De acordo com Kant o princípio de
identidade, enquanto princípio supremo, deve ser enunciado nas suas partes
mais simples, “de fato, de todos os termos afirmativos, o mais simples é a
palavra é , e dos negativos a expressão não é”. Quanto ao princípio
de contradição, que é expresso na proposição: “é impossível que a mesma
coisa seja e não seja ao mesmo tempo”, Kant diz que é uma definição do conceito
de impossível que não nos permite deduzir necessariamente a verdade de
um termo pela impossibilidade de seu oposto, para que isso seja possível temos
que dizer que o princípio de contradição tem que supor a proposição “é
verdadeiro tudo aquilo cujo oposto é falso”, o que implica que aquela
proposição é composta e derivada, e não primeira.
Kant diferencia entre o estatuto do
princípio de identidade e o de contradição na lógica geral a partir da
simplicidade do enunciado. O que procura não é apenas um matiz estilístico e
sim a clareza da regra a fim de poder ser aplicada adequadamente. É a aplicação
precisa da regra o que guia esta busca de “simplicidade”. A intervenção do
princípio do terceiro excluído para esclarecer o princípio de contradição
mostra que é impossível aplicar este sem pressupor aquele. Enquanto que o
princípio de identidade pode ser definido nos seus elementos mais simples, o
princípio de contradição precisa ainda de uma outra regra para ser aplicado. O
que está em jogo é o uso dessa regra.
É justamente esta tentativa a que será
radicalizada no período crítico. Poderíamos dizer que é seguindo com esta
advertência de 1755 que Kant faz, na época crítica, uma distinção decisiva
entre lógica geral e lógica transcendental. Ele escreve: “a lógica geral
abstrai de todo o conteúdo do predicado (mesmo quando negativo), e apenas
considera se o predicado é atribuído ou oposto ao sujeito. A lógica
transcendental considera também o juízo quanto ao valor ou conteúdo da
afirmação lógica, mediante um predicado apenas negativo e quanto ao proveito
que daí resulta para o conjunto do conhecimento”(CRP A 72/B97). É desde
este ponto de vista que, por exemplo, o princípio do terceiro excluído, ao qual
se faz menção em 1755 a partir do tratamento do princípio de contradição, terá
seu uso limitado, isto é, restringido
no tópico dos juízos infinitos na crítica da razão pura (CRPA72-3/B
97-8).
A preocupação kantiana sobre o alcance e o
limite das regras da lógica é colocada, no texto crítico, a partir da questão
do conteúdo e, desta forma, se distingue entre lógica geral e lógica
transcendental. Entretanto, essa mesma questão está também expressa no texto de
1755 como um abuso das conseqüências que se derivam do princípio de contradição
quando é usado para afirmar um conhecimento. Enquanto que no texto crítico Kant
adverte sobre o conteúdo da proposição para proveito do conhecimento, no texto
pré-crítico previne sobre as conseqüências indevidas da mera forma
proposicional. O exemplo da CRP é bem esclarecedor, Kant nos diz que,
pela proposição “a alma não é mortal”, é dividida a extensão de todos os seres
possíveis em mortais e não mortais, ficando, a alma, excluída de tudo o que é
mortal. É assim legítimo enunciar então que: é impossível que a alma seja
mortal. Apenas isso. A partir dessa proposição não se tem o direito de afirmar
mais alguma coisa sobre a imortalidade da alma. A classe do não-mortal é
infinita e não permite afirmar, por exemplo, que a alma seja imortal. Uma
afirmação tal estaria asseverando mais do que a operação permite. O único que
nós podemos afirmar é que o sujeito da proposição não pertence à esfera do
conceito do predicado, mas não que pertença à esfera do conceito oposto.
A elucidação desta operação será também
essencial na formulação da antinomia da razão pura. Nesse caso pode se observar
que existe uma diferença muito importante entre a negação predicativa e
a negação proposicional expressa no enunciado. Assim sendo “as
proposições antinômicas violam o princípio do terceiro excluído com negação
predicativa”[71]
ao afirmarem mais do que podem, e pelo qual não são formulações adequadas.
Tem-se ali um uso indevido das operações lógicas para gerar proposições
cognitivas. Este ponto é desenvolvido em Loparic (1990 c)[72]
com a análise da estrutura lógica da primeira Antinomia.
É importante lembrar esta marca de leitura
já que será útil na distinção kantiana entre necessidade lógica
(determinada por meras regras formais) e necessidade real (baseada em um fundamento extralingüístico). É aí
onde começa a crítica ao princípio de razão (suficiente) determinante. A operação é dupla, por um
lado se designam as “insuficiências” do princípio de razão suficiente, e
por outro se questiona o procedimento de determinação lógica para resolver a
existência efetiva do real.
Em razão disso, e contra a definição
wolffiana “a razão é aquilo que permite compreender porque uma coisa é
em vez de não ser”. Kant chama a atenção para a confusão que está
contida nessa proposição.
Para isto, começa por definir dois termos,
a saber:
1) determinar: é considerar um
predicado com exclusão do seu oposto.
2) razão: é a relação de
determinação de um sujeito com respeito a um predicado.
Daqui surge a distinção entre razão
anteriormente determinante e razão posteriormente determinante. A razão
anteriormente determinante é aquela cuja noção precede aquilo que é
determinado. Isto é, a noção do determinado deve ser suposta para que o
predicado seja inteligível. Há uma relação de identidade entre o sujeito
e o predicado. Por outra parte a razão posteriormente determinante é
aquela onde a noção do determinado deve ser dada. É assim que pode se
distinguir razão de ser ou dever ser, que responde ao porquê
(rationem essendi), e aquela que diz respeito à razão de conhecer
e responde ao o quê (rationem cognoscendi)[73].
A proposição wolffiana não permite que esta importante distinção seja feita de forma
clara, motivo pelo qual Kant propõe-se a reformulá-la, pois, por: “a razão é
aquilo que permite compreender porque razão uma coisa é em vez de não
ser”[74].
Do contrário o estatuto do lógico não se distingue do estatuto do
existente. Esta “razão” permite observar só o que é logicamente
determinável e não aquilo que existe efetivamente.
Uma sentença nos enuncia o requisito
lógico formal para qualquer proposição verdadeira, a saber: “Nada é verdadeiro
sem uma razão determinante”; (Prop. V) “qualquer proposição verdadeira indica
que um sujeito é determinado em relação a um predicado”[75].
Este requisito para a verdade de uma proposição é necessário, mas não é
suficiente para explicar a razão de existência. Na sentença se expressa, meramente, um requisito da ordem do
proposicional, e o que Kant indica é a
evidência de que o que está em jogo é mais alguma coisa que a
determinação formal da proposição para encontrar a razão de existência.
Mas, por outro lado e seguindo a argumentação
kantiana, também não é pertinente afirmar o contrário, isto é, “que uma coisa possui em si a razão da sua
própria existência”. Kant explica a contradição dessa afirmação recorrendo ao
conceito de causa como sucessão no tempo: “...tudo aquilo que contém em si a
razão da existência de qualquer coisa é a causa dessa coisa. Se admitirmos a
existência de uma coisa que contém em si a razão da sua própria existência, ela
seria sua própria causa. Mas, uma vez que a noção de causa é naturalmente
anterior à noção de efeito, e a noção de efeito é posterior à causa, a mesma
coisa seria então anterior e posterior a si mesma, o que é absurdo”[76].
De acordo com Kant ser causa de si mesmo não é aplicável ao real porque conduz
a uma contradição lógica. Mas, a contradição aqui (como também se observará
mais adiante), não é somente definida pela lógica formal, mais uma vez, o que
se procura é uma interpretação em relação com o existente. Quer dizer, com
aquilo que é determinado como experiência
real no espaço e no tempo. A contradição surge porque está suposta essa relação
com o real. Apesar de não haver explicitado claramente, ainda, uma teoria da
idealidade do espaço e do tempo, Kant recorre reflexivamente a uma diferença
entre a ordem “lógica” e a “real”. Ao formular os exemplos se
apela ao conceito de causa em relação à experiência possível para poder
fundamentá-lo sem “absurdos”. Na experiência tem que haver uma relação de
sucessão ou simultaneidade real, (isto é, no tempo e no espaço) entre dois ou
mais elementos para que possa ser estabelecida a relação de causalidade. Tem
que ser possível uma serialidade para a validade do conceito, por outras
palavras, o conceito de causalidade é válido em uma série de elementos dados.
Entretanto, a mera explicação da lógica
formal pode ser diferente. A noção de Deus, na qual se postula que a existência
divina se determina a si mesma, é uma operação de ordem ideal, mas não real,
“...se todas as realidades foram reunidas, sem distinção de grau, em um
determinado ser, esse ser existe. Mas se elas são apenas concebidas como
reunidas, então o próprio ser existe apenas como idéia”. Kant concebe Deus,
neste texto, como uma idéia, (é claro que ainda não no sentido crítico das
Idéias da Razão), e apresenta uma demonstração da sua existência do ponto de
vista da “essência”, embora não possa se dar uma demonstração “genealógica”.
A diferença entre operações de ordem ideal
e de ordem real começa a ser estabelecida a partir da relação com o sensível. A
ordem lógica sem qualquer relação com o sensível é uma operação de caráter
ideal, desse modo vai-se colocando um limite ao princípio de determinação em
relação com a existência. O logicismo parece ser uma espécie de “bunker” da
metafísica tradicional pelo fato de fornecer uma aparência de imagem verdadeira
às posições dogmáticas. A operação consiste em considerar o que é meramente
lógico como se fosse conhecimento real do objeto.
Analisando a Resposta a Eberhard,
nesta perspectiva, Lebrun concluirá que
“a tarefa da crítica consistirá assim em descobrir, sob os
conceitos ontológicos e os princípios metafísicos da tradição, as regras e os
conceitos lógicos aos quais eles só fizeram atribuir uma extensão imprecisa;
ela deverá seguir a pista da confusão em todos os níveis”[77].
Com efeito, a tarefa crítica marcará os limites da extensão de certas operações
e conceitos, mas, poderíamos dizer também que alguns dos questionamentos feitos
por Eberhard à crítica já haviam sido superados por Kant desde os textos do 1755, como se pode
constatar com o seguimento da discussão de Kant com os textos leibnizianos.
Aqui então, temos mais um sintoma daquele mal-estar
filosófico. Deus, enquanto determinado como idéia, é susceptível de uma
demonstração lógica, e esse é o limite de qualquer tentativa de argumentação
neste campo. Mas esta mesma operação é insuficiente para demonstrar a
existência “real” (e não meramente ideal) das coisas contingentes. Por um lado,
já não é possível qualquer demonstração ontológica da sua existência a partir
da idéia de Deus, o trânsito de um conceito para outro está quebrado em termos
cognitivos. Por outra parte, o “ser causa de si mesmo”, ainda que possível de
ser postulado como ideal, mostra-se,
deste modo, contraditório para explicar a razão de existência das coisas
mesmas; devemos ter sim uma razão de verdade, mas, ainda assim é preciso manter
uma distinção com relação a esta, do contrário cairemos em um intelectualismo.
Assim, a razão de verdade de uma proposição é determinada pela
identidade entre o sujeito e o predicado. Por tal motivo, para determinar a
verdade dos raciocínios lógicos só é suficiente não entrar em contradição. Mas,
para determinar a verdade da razão da existência é necessário procurar
essa razão determinante (além ou aquém da formalização lógica).
Com a estrutura proposicional S-P
(sujeito-predicado) Kant distingue aquelas proposições nas quais é possível
determinar seu valor de verdade meramente com o uso do princípio de
contradição, daquelas nas quais não é suficiente esse simples recurso lógico.
Isto se complica ainda mais quando Kant nos apresenta o seguinte problema; ao
perguntar pelas ações (morais) da vontade: “por que cometo este ato em vez de não
cometê-lo?”. A isto posso responder de
dois modos:
1)o fato deve ser colocado como
absolutamente necessário e, portanto como existente em si mesmo.
2)é necessário que haja outras coisas
determinando-o desta maneira e não de outra, isto é, que excluam, de uma
maneira antecedente, o oposto da existência desta coisa.
O primeiro considera-se contraditório,
como de resto já foi demonstrado, o segundo, de acordo com Crusius, acarreta
uma fatalidade estóica, que Kant explica dizendo: “se tudo o que acontece não
se pode produzir sem uma razão anteriormente determinante, então tudo o que não
acontece não pode acontecer, dado que é evidente que não existe razão para isso
e que sem razão, absolutamente nada se pode produzir”[78].
Segundo esta proposição um artefato, um animal e um humano funcionariam do
mesmo modo sem possibilidade de diferença.
Se tudo acontece em virtude de um
encadeamento natural, toda vontade, toda ação livre, todo desejo é uma ilusão
impossível[79].
Para não cair nesta afirmação e ainda seguir sustentando o princípio de razão
determinante, os metafísicos tradicionais recorrem a uma diferença de grau,
quer dizer, faz-se uma distinção entre necessidade absoluta e necessidade
hipotética (uma espécie de necessidade degradada).
Kant nos adverte do erro desta falsa
distinção quando enuncia o nó do problema do seguinte modo, a saber: “Quando
distinguimos a necessidade hipotética, de tipo moral, da necessidade absoluta,
não está aí em questão a força ou eficácia da necessidade, isto é, de saber se
em um ou noutro caso uma coisa é mais ou menos necessária; é o próprio
princípio da necessidade o que está em questão...”[80].
Kant dá um passo a mais sobre isto e diz que “...a questão essencial não é
saber até que ponto é necessária a existência das coisas contingentes, mas, de
onde vem esta necessidade”[81].
A diferença entre as ações físicas e as ações morais (da vontade)
não se reduz a uma questão de maior ou menor certeza com respeito à sua existência
futura, como se fosse um encadeamento degradado de razões incertas ou uma
multiplicidade de variáveis mais ou menos numerosa. O que está em jogo é um
outro tipo de determinação. “...nas ações livres dos homens, enquanto as
consideramos determinadas, o oposto encontra-se excluído, mas não por razões
exteriores aos desejos e às inclinações espontâneas do sujeito, como se o homem
fosse empurrado, contra sua vontade a realizar suas ações, por uma necessidade
inevitável. Mas na própria inclinação da vontade e dos desejos, na medida em
que o homem cede voluntariamente às seduções das representações, as nossas
ações são determinadas por um vínculo, sem dúvida, inteiramente indiscutível,
mas voluntário, segundo uma lei invariável”[82].
Na ordem das ações físicas, tanto como na dos seres privados de razão é
necessária a determinação externa, poder-se-ia falar de uma determinação
causal “técnica”, enquanto que a causalidade deve ser interpretada em uma série
de fenômenos conexos. Por outro lado, o homem pode agir em um outro sentido,
atuando com liberdade, “uma vez que os motivos do entendimento são aplicados à
vontade”, isto é, uma ação determinada por razões internas. A
causalidade moral é originada pela livre determinação da vontade. A inclinação espontânea
da vontade é derivada de um princípio interno de “autodeterminação” e
não apenas da relação encadeada com a causalidade externa. A “liberdade não
consiste em ser arrastado pelos objetos...”[83]
e sim naquela autodeterminação interna que pode reger os nossos atos. A vontade
é compreendida aqui como participando de uma ordem distinta que a da
causalidade técnica. A vontade coloca em jogo a nossa própria liberdade.
Por tal motivo temos, então, uma diferença
de natureza e não de grau entre as ações físicas e as ações morais. Ambos
tipos de causalidade, técnica e moral, requerem procedimentos de interpretação
diferentes. Isto é, requerem semânticas diferentes, tal como Kant nos
mostrará nas críticas teóricas e práticas respectivamente e como já tínhamos
advertido quando tratamos, no texto de 1764[84],
a diferença entre conceitos matemáticos e reflexão filosófica. Aqui, somente,
tentarei aprofundar o primeiro tipo de interpretação semântica, mas, é preciso
não esquecer que não é o único[85].
Neste texto encontramos, pela primeira
vez, uma exposição clara da diferença entre natureza e liberdade em Kant. Esta
diferença surge a partir da reflexão sobre a ambigüidade no uso do princípio de
razão suficiente, ou melhor, sobre a determinação do caráter decididamente
metafísico do uso de tal princípio. Assim se faz uma melhor caracterização dos
juízos determinantes pela qual diferencia-se a determinação física da
determinação moral. É importante ver como a ordem da moral, não sendo parte da
causalidade natural, também não é um campo de fatos aleatórios feitos pelo
acaso, senão uma ordem que deve ser determinada segundo um procedimento diverso
ao da natureza, mas não por isso menos rigoroso, tal procedimento não é
simplesmente lógico, muito pelo contrário, deve ter algum tipo de realidade,
pelo qual será preciso atender aos requisitos semânticos[86].
Neste texto é colocado em questão o
estatuto da demonstração lógica e o alcance desta no que se refere ao
conhecimento dos objetos reais, mas isso não ficou simplesmente em uma crítica
à lógica, permitiu dar mais um passo em direção àquilo que pode ser considerado
real e até que ponto e como é possível determiná-lo como tal.
Em Acerca da Falsa Sutileza das Quatro
Figuras do Silogismo (1762)[87]
Kant recorre mais uma vez à tentativa de enunciar a diferença entre o domínio
do lógico e o âmbito do real. Neste texto o autor estabelece que
o valor do silogismo se encontra “no acordo do pensamento consigo mesmo”, e que
para não entrar em conflito com o conhecimento efetivo da realidade é
necessário que se clarifique a si mesmo.
Em função disso Kant enuncia duas regras
fundamentais para os silogismos:
1) em todo silogismo afirmativo a
característica de uma característica é uma característica da própria coisa;
2) em todo silogismo negativo o que
contradiz a característica de uma coisa contradiz a própria coisa.
Estas regras são o fundamento da definição
do silogismo, a saber: "todo juízo estabelecido através de uma
característica mediata"[88].
A partir daqui é possível distinguir entre silogismos puros e mistos,
sendo um silogismo puro aquele que contém três proposições
interrelacionadas segundo as regras mencionadas. Entretanto, um silogismo
misto é aquele que faz intervir uma inferência imediata para chegar à
conclusão. Assim sendo, Kant considera pura a figura do tipo:
C
tem uma característica B,
A
tem uma característica C,
logo,
A tem uma característica B.
E mistas as figuras:
Nenhum A é B
Todo C é B, Donde, Nenhum C é A. |
Todo A é B Todo A é C, Donde, Algum C é B. |
Nenhum A é B
Algum B é C,
Logo, Algum C não é A. |
Como é possível observar, a distinção é
feita em relação à claridade formal das deduções e inferências utilizadas para
chegar à conclusão. Kant privilegia a relação categórica para considerar a
pureza do silogismo pelo modo em que se deduz a conclusão a partir das premissas.
Mas o interesse de Kant não é meramente técnico como poderia parecer à primeira
vista. Como conseqüência da sua distinção (entre silogismos puros e mistos) é
possível reconhecer uma diferença ainda anterior. É a que estaria dada entre um
conceito claro que é possível através de um juízo, e um conceito
completo que é possível através de um silogismo, dependendo (aquela
diferença de clareza) do grau de completude da série de silogismos em cadeia.
Esta concepção da clareza e da completude do conceito rege a concepção kantiana
de silogismo puro. Nessa concepção o que está em jogo é a analiticidade do
conceito e, portanto a analiticidade da operação silogística. Do mesmo modo
podemos afirmar, seguindo o texto kantiano, que tanto a capacidade de conhecer
claramente, como a de efetuar silogismos dependem da faculdade de julgar.
Não há diferença entre um juízo (do entendimento) e um raciocínio (da razão). A
operação se distingue quanto à sua clareza, apenas isso. Por tal motivo é
totalmente possível passar da determinação do conceito para o princípio
necessário sem qualquer restrição. É tão só uma operação analítica estendida.
E é neste sentido que se passa (também) do princípio subjetivo da razão de
procurar o incondicionado ao princípio objetivo de constituição de objetos,
acreditando assim que entre a idéia e o conceito não há diferença
nenhuma e que é possível o mesmo tratamento aos juízos e aos raciocínios.
Este é um típico problema da metafísica
dogmática, no qual Kant consegue, somente, diagnosticar o sintoma (o uso
abusivo dos silogismos), mas não encontrar a origem (da doença) do problema,
isto é, a diferença da origem da operação[89].
Neste sentido é preciso trazer um enunciado decisivo que tenta vislumbrar essa
diferença: "uma coisa é distinguir as coisas umas das outras, e outra é
conhecer as diferentes coisas. A última só é possível através de
juízos..."[90].
Nesta citação Kant adverte que distinguir logicamente significa
reconhecer (conhecer) que uma coisa A não é B, enquanto que distinguir
fisicamente é ser levado a diferentes ações por diferentes representações[91].
Esta distinção parece, de algum modo, indicar a diferença entre a percepção
sensível e o julgamento intelectual como diferentes operações. O julgamento
intelectual consiste "no poder que o sentido interno tem de constituir
suas próprias representações em objetos do pensamento"[92],
e, portanto, em distinguí-las e reconhecê-las como tais, enquanto que na
distinção física haveria um reconhecimento meramente sensível. Mas isto parece
também sugerir um forte intelectualismo. O privilégio do julgamento
intelectual, como verdadeiro reconhecimento e discernimento das representações,
degrada e distancia a operação sensível sem qualquer possibilidade de
estabelecer uma relação adequada entre ambas. Sem essa relação não há qualquer
restrição na operação intelectual e o uso abusivo do silogismo é inevitável por
mais pureza que nos pretendamos dilucidar.
Apesar dos seus esforços para clarificar os conceitos, Kant não consegue
mais que repetir o erro dogmático.
Como ficou demonstrado, a concepção
pré-crítica do silogismo em nada impede passar da determinação do conceito
para o princípio necessário. Nenhuma restrição é formulada. Em
contrapartida, no texto da CRP Kant muda sua concepção. Ele reconhece três
tipos de silogismos, a saber: categóricos, hipotéticos, e disjuntivos; todos
eles como iguais em importância. A diferença estabelecida é decisiva com
relação ao texto pré-crítico, no qual, como já indicamos, o silogismo
categórico é colocado como central[93].
Isto é devido ao princípio que se estabelece como fundamental para todos os
silogismos tanto em um texto como noutro. Na versão crítica um princípio
é estabelecido para os três silogismos: "o que está submetido à
condição de uma regra, o está à regra mesma"[94].
De um outro modo, no texto pré-crítico se enuncia: "a marca de uma
marca é também marca da coisa mesma". A mudança não é trivial e se
deve a que no texto pré-crítico, o princípio tem uma significação intensional.
Ou seja, quando consideramos um silogismo do tipo:
Todo S é P
Todo Q é S
Todo Q é P
consideramos que
a classe S contém P
a classe Q contém S
a classe Q contém P
então a inclusão silogística é intensional
ou, pelo contrário, quando enunciamos um
silogismo do tipo
a classe S é parte da classe P
a classe Q é parte da classe S
a classe Q é parte da classe P
então consideramos que a inclusão
silogística é extensional
O princípio pré-crítico de significação
intensional coincide com a concepção da inferência, também baseada na
composição intensional de conceitos. Deste modo é possível observar como o
silogismo é interpretado como um juízo analítico estendido. Neste sentido
Nussbam (1992) chama a atenção para ver nesta operação uma semelhança com
Leibniz. Com efeito, no texto pré-crítico, Kant observa que a noção de níveis
de completude de explicação de um conceito é um problema de definição[95]
(seja em maior ou menor grau o que está em jogo é sempre a clarificação do
conceito). Enquanto que no texto crítico o silogismo já não é definido por uma marca,
mas sim por uma regra. Já não se trataria de estender a marca e sim de
subsumir sob uma regra. É essa diferença a que permitirá Kant limitar o uso do
silogismo no conhecimento dos objetos e diferenciar os procedimentos de doação
de sentido em ambas as operações.
Apesar da advertência kantiana no texto
pré-crítico de evitar cair-se em quimeras, ele ainda não consegue estabelecer
uma relação precisa dos silogismos com a realidade. Como vemos o tratamento crítico
desta encruzilhada deverá mudar decididamente, na segunda parte deste trabalho
retomaremos e desenvolveremos mais amplamente esta questão.
1.6- História de um esquecimento (
acerca de oposição e contradição).
Como temos visto até agora, a questão da
distinção entre as operações da lógica e o âmbito da existência é colocada
sucessivamente e de diversos modos nas pesquisas pré-críticas de Kant, desta
vez, encontra-se em uma nova relação com a matemática.
Em Ensaio Para Introduzir o Conceito de
Magnitudes Negativas... (1763)[96]
Kant escreve: “Do esquecimento do
conceito de magnitudes negativas tem surgido uma multiplicidade de falhas ou
falsas interpretações...”[97].
Mas, este esquecimento é um efeito do procedimento errado que, -segundo Kant-,
os metafísicos adotam com respeito às matemáticas.
A metafísica tenta imitar o método da
matemática, mas, com isso, apenas consegue confundir seus procedimentos sem
alcançar nenhuma utilidade. Assim a metafísica também não consegue justificar
suas proposições, caindo em contradições e construções artificiosas. Isto se
deve -de acordo com Kant- à falta de compreensão dos metafísicos tradicionais
sobre a matemática, motivo pelo qual são levados a levantar questões erradas,
tais como que a matemática coloca por fundamento conceitos que não são tirados
da natureza de um outro conceito. Quer dizer, que não são obtidos
analiticamente. Tal é o caso do estudo da geometria sobre o espaço[98].
Com efeito, poder-se-ia dizer que a geometria não “tira” analiticamente do
conceito de espaço suas propriedades, tal como observamos no texto de 1764[99],
mas as constrói. É justamente esse o problema que Kant vai colocar neste ensaio. Mais do que
“imitar o método da matemática” obtendo resultados nefastos para a metafísica,
é melhor tentar compreendê-la no que se refere aos seus procedimentos,
reconhecendo a diferença entre dois modos de conhecimento racional, a
saber, matemático e filosófico.
Trata-se aqui então, de abordar um
conceito conhecido em matemática, mas ainda alheio à filosofia: o conceito de
magnitudes negativas. Para explicar este conceito, Kant apela às seguintes
definições: “Uma coisa opõe-se a outra:
uma delas suprime o que tem sido posto pela outra. Esta oposição é dupla, ou
lógica em virtude da contradição, ou real, quer dizer sem contradição”[100]. Kant adverte que a oposição lógica foi a
única compreendida na filosofia, esquecendo-se da oposição real.
A oposição lógica só diz respeito
àquela oposição pela qual dois predicados suprimem-se em virtude da contradição
[ a Ú
a ] . Esta operação consiste na afirmação e negação da mesma coisa de uma vez, e a conseqüência é absolutamente nada (nihil
negativum, irrepraesentabile) como declara o princípio de contradição.
A oposição real é aquela em que dois predicados de uma mesma
coisa opõem-se, mas não em virtude do princípio de contradição. Aqui, um
suprime o outro, não obstante, neste caso, a conseqüência é algo (cogitabile,
repraesentabile). Apesar disso, igualmente, há uma verdadeira oposição sem
contradição (nihil privativum). É uma oposição entre dois predicados
duma mesma coisa, em que ambos predicados são afirmativos [a, b], e, portanto
não é negado por um o que se diz noutro (a oposição real é subdividida por sua
vez em opositio actualis e potentialis). Deste modo, uma
magnitude é negativa em oposição a outra na medida em que a primeira não pode
ser captada junto da segunda, a não ser
mediante a oposição[101].
Kant determina esta oposição real
em duas regras fundamentais:
1)só tem lugar na medida em que duas
coisas, enquanto fundamentos positivos, uma anula a conseqüência da outra.
2)sempre que existe um fundamento positivo
há uma oposição real, embora o resultado possa ser zero, quer dizer que um
fundamento está em conexão com outro fundamento positivo que é a negativa do
primeiro.
Para esclarecer a possibilidade de
aplicação do conceito Kant fornece exemplos de outras ciências além da
matemática, como por exemplo: a atração na física, o desagrado em psicologia e
o vício na filosofia prática. Em todos esses exemplos não é a contradição, mas
sim a oposição o que permite construir e explicar o fenômeno. Os princípios de identidade e de contradição
são limitados à análise, e é por isso que se necessita de mais alguma coisa
para poder exprimir a relação com aquilo que efetivamente existe.
Contudo, esta indagação (que não é
sistemática, e só tem um caráter problemático), coloca como fundamental, (na
sua procura por achar uma operação que enuncie a relação com o objeto), a seguinte
pergunta: “Como posso eu entender que porque algo é, algo distinto também é?”[102].
Para resolver esta questão a análise
lógica, a partir fundamentalmente do princípio de contradição e o de
identidade, permite-me respondê-la em certa medida. Diz Kant: “Eu compreendo
como pode se pôr, segundo a regra da identidade, uma conseqüência em virtude de
um princípio, posto que mediante a análise do conceito descobre-se que aquela
está contida nesta. (...) Posso entender esta conexão do princípio com a
conseqüência, porque a conseqüência se identifica com um conceito parcial do
princípio”[103].
Através de um procedimento de análise do conceito, segundo a regra da
identidade, estabeleço a conexão com o conseqüente. Este tipo de relação
chama-se "relação de identidade".
Até aqui a resposta da lógica formal é pertinente, mas a dificuldade do
problema começa quando algo se deriva de uma outra coisa, mas não simplesmente
segundo o princípio de identidade. Por exemplo, “...a chuva não é posta pelo
vento segundo um principio de identidade...”. Aqui temos uma conseqüência real
na qual pode se dividir o conceito quantas vezes se quiser sem nunca encontrar
a conseqüência contida nele. A lógica formal tradicional não permite formular
esta distinção.
O problema aqui colocado é análogo ao da Nova
Dilucidatio na qual se mostra a impossibilidade da determinação formal
da existência efetiva. Este será, para Kant, um verdadeiro obstáculo a
superar, porque, se por um lado ele não tentará reduzir a existência à mera
formalização lógica (ao menos depois da Monadalogia), também não
conseguirá explicitar, até a elaboração da filosofia transcendental, um
procedimento de significação corretamente justificado que permita dar conta
desta diferença.
Sendo assim, podemos dizer que o estudo
das magnitudes negativas permitiu a Kant refletir sobre os juízos de princípio
e conseqüência. Estes podem ser distinguidos em dois tipos:
1)aqueles nos quais a relação é de
identidade, isto é, de um princípio lógico se deriva sua conseqüência[104];
2)aqueles nos quais a relação de um
princípio real com algo que por ele é posto ou suprimido não pode ser
expressa simplesmente pela identidade, é necessária mais alguma coisa do que o
princípio lógico para que a validade objetiva do juízo possa ser fundamentada[105].
O que mais uma vez está em jogo é a
relação de significação entre os objetos e os conceitos. É por isso que a
pergunta sobre o vento e a chuva pode ser traduzida por: Como é que eu posso
exprimir em uma proposição com sentido (isto é, possível de ser verdadeira ou
falsa) uma relação de necessidade, mas não de identidade? O problema sobre a
existência torna-se relevante.
Em O Único Fundamento Para a
Demonstração da Existência de Deus (1763)[106]
Kant vai considerar que a existência
não é um predicado lógico ou uma determinação lógica, mas sim a posição de uma
coisa. No questionamento à demonstração ontológica da existência de Deus, Kant
começa estabelecendo a existência em geral como “a posição absoluta de uma
coisa”[107].
Distingue “existência” de “atributos”, sendo que “um atributo não é aplicado a
uma coisa mais do que de um modo relativo”. Neste sentido a existência também
não é um complemento da possibilidade de uma coisa (tal como parece ser em
Wolff), ou a completa determinação interna de um objeto (como em Baumgarten).
Deste modo, as provas ontológicas que Kant
considera errôneas podem ser caracterizadas, fundamentalmente, em duas
espécies:
a) a cartesiana, que parte da pura
possibilidade; e
b) a wolffiana, que parte do conceito de
causa primeira.
A demonstração cartesiana começa por se
fazer a idéia de uma coisa possível que contém toda verdadeira perfeição, sendo
a existência entendida ela mesma como um elemento da perfeição da coisa, então
se conclui que de acordo com a possibilidade do ser mais perfeito é preciso que
ele exista. Assim dizemos : Deus é perfeito, a existência é parte da perfeição;
portanto Deus existe.
Com efeito, no texto de Descartes a
existência está compreendida na idéia do Ser mais perfeito, do mesmo modo
que está compreendida na idéia do triângulo que a soma dos três ângulos é igual
a dois retos[108].
Encontra-se assim uma indiferença entre o ideal e o real. Do mesmo modo como é
verdadeira a propriedade de um triângulo, de acordo com certas exigências, é
também verdadeira a existência de Deus, de acordo com a exigência da sua
perfeição absoluta.
Kant rejeita a idéia de que a existência é
aquilo que “falta” a uma coisa para que possa ser totalmente determinada, e
assim então, deduzida a priori, como acontece com o argumento ontológico
de Descartes. Em contrapartida, ele enuncia que a existência não pode ser
deduzida pelo simples procedimento lógico, a existência não é um atributo nem
mesmo da perfeição. Segundo Kant é preciso distinguir o que é meramente
pensado, mesmo sem contradição, do que é existente. De uma definição que
relacione diferentes atributos destinados a compor a noção de alguma coisa possível
não se pode concluir necessariamente a existência dessa coisa, nem mesmo a
existência de Deus[109].
Por outro lado, a prova (wolffiana) que,
afirma que pelo princípio de causalidade, aplicado aos dados experimentais, se
deduz a existência de uma causa primeira e absoluta, também é posta em dúvida.
Pois, o princípio de causalidade é estendido das causas e os efeitos entre as
coisas até chegar à necessidade de uma coisa independente de qualquer outra e
totalmente necessária. Esta afirmação está apoiada sobre o princípio de razão
suficiente. Princípio este que fora da experiência -diz Kant- é sempre
discutível na sua aplicação[110].
Deste modo, da simples análise lógica do conceito de causa passa-se a falar dos
atributos da causa, sendo estes os da divindade. Tudo sucede como se alguma
coisa existe por causa de uma outra coisa que existe absoluta e
necessariamente, do qual se podem deduzir
os atributos da mais alta perfeição, sem levar em conta a diferença
entre o encadeamento lógico e a existência real de uma coisa e seus atributos.
Neste texto Kant não somente faz uma
análise do problema da existência em relação polêmica com outros filósofos,
senão que também prepara a distinção, fundamental na crítica, entre
sensibilidade e entendimento por meio da diferença entre o argumento ontológico
e o argumento cosmológico da existência de Deus. Desta maneira, a questão da
existência se apresenta como elemento decisivo para a distinção sensível /
intelectual. É por isso que é possível traçar um paralelo entre os dois textos.
Desenvolvamos o exemplo. Em Heidegger
(1962)[111] afirma-se que, já neste texto pré-crítico,
está enunciada a tese crítica sobre a existência. “Ali encontramos já a
tese de Kant sobre o ser, e nela a dupla forma de enunciado negativo e
afirmativo. A redação de ambos enunciados coincide em certo modo com a da Crítica da razão pura. O enunciado
negativo estabelece no escrito pré-crítico que: “A existência não é o predicado
ou a determinação de coisa alguma”.
Entretanto o enunciado afirmativo declara que: “O conceito de posição (ou Setzung
) é totalmente simples e o mesmo que o de ser em geral”. Nesta leitura
Heidegger nos mostra os dois termos contrapostos: Não-determinação / posição.
Assim a existência é vista positivamente como posição de uma coisa com respeito
ao sujeito. Posição frente ao sujeito. E negativamente como impossível de
ser determinada logicamente a priori. Ambos aspectos são mantidos na
elaboração crítica. Mas, seguindo a Heidegger, é possível explicitar o que vai mudar no segundo período: “Para a
interpretação crítico-transcendental do ser do ente, já não vale a tese
pré-crítica de que o ser não é um predicado real (óntico), mas sim um predicado
transcendental (ontológico)”[112].
Isto não significa que Kant retorne à antiga idéia do real como simples
predicado da coisa, muito pelo contrário, na etapa crítica, o
questionamento será radicalizado. A existência como predicado lógico é
totalmente questionada no que respeita à sua fundamentação; a existência de uma
coisa enquanto tal não pode ser determinada a priori logicamente, ela
tem que ser dada, colocada, posta perante o sujeito. É neste sentido que também
não deve se entender como se fosse um predicado óntico entre outros, como um
predicado que falta à coisa para que esta possa ser ela mesma. A existência
está no registro do ontológico enquanto que é um modo de ser do objeto, ser
dado, ser presente.
O problema conseqüente é saber o que
significa em Kant essa “dadidade” do objeto, em que sentido o objeto é dado
quando apenas temos acesso ao fenomênico e nunca à coisa em si mesma, em que
medida o objeto se faz “presente” quando a experiência na qual se
apresenta o fenômeno é uma experiência construída. Isso tudo pode ser
pesquisado na CRP em termos semânticos. A passagem do tratamento pré-crítico
para a elaboração “ontológica” da existência (nos termos críticos) é coroada em
uma formulação “semântica” do problema. O esquematismo das categorias modais é
o resultado. Neste sentido uma leitura cuidadosa do esquematismo transcendental,
como a forma kantiana de colocar o problema da relação entre ser e tempo,
permitir-nos-ia uma aproximação mais acabada ao tema da presentidade na
filosofia crítica. Por enquanto apenas mencionamos a questão, já que esse
trabalho se estenderia fora dos limites do nosso objetivo.
1.7- Os ventos hipocondríacos (acerca
do mal-estar e da ironia).
A distinção entre o campo da lógica e o
âmbito da existência (e portanto a limitação dos princípios lógicos formais no
conhecimento teórico das coisas existentes), a crítica ao princípio de razão
suficiente, a distinção do conhecimento matemático e do conhecimento
filosófico, e a diferença de natureza entre a determinação natural e a
determinação moral, entre outras coisas, levam Kant a uma crítica tenaz contra o
dogmatismo da metafísica tradicional, tal como se observa em Sonhos de um
Visionário Explicados Através dos Sonhos da Metafísica (1766)[113],
texto este, quase cético. Aquela longa
procura de uma boa metafísica foi desalentada pelos resultados obtidos nas
pesquisas anteriormente citadas e, já convencido da impossibilidade de tal empresa,
Kant, dedica-se agora a uma “crítica
dos sonhos”.
A obra que motiva o ensaio de Kant é um
longo tratado místico-religioso escrito por E. Swedenborg, no qual se ocupa do
oculto, das aparições e da relação com os espíritos separados. Este trabalho
permite a Kant realizar uma crítica generalizada não só contra os “sonhadores
dos sentidos”, quer dizer, aqueles que acham ter visões místicas, mas
também, contra os “sonhadores da razão”, aqueles que acham poder conhecer
além da experiência. Esta crítica dos sonhos tem duas partes, uma semântica,
que trata das significações (os sonhadores da razão), e outra empírica,
que trata das perturbações físicas e das doenças mentais (os sonhadores dos
sentidos).
A irônica crítica kantiana começa levando
a sério a proposta mística e tentando fazer um tratamento racional e
especulativo do tema dos espíritos. Kant se pergunta pela significação do
conceito de espírito (der Geist). O que é aquilo que o conceito de
espírito enuncia? Para nos aproximar a alguma definição o texto indica a
possibilidade de podermos dizer que um espírito parece ser uma entidade não
material que possui razão. Fato difícil de compreender à primeira vista. “Para
entender esse oculto significado -diz Kant- tomo meu mal compreendido conceito
em todos seus usos e, observando a quais convém e em quais é rejeitável, espero
revelar seu sentido escondido”[114].
Trata-se de achar o significado pelo uso em diferentes proposições, que
pertencem a distintos tipos de discurso. No desenvolvimento desse trabalho,
Kant faz uma citação de rodapé que esclarece os procedimentos que ele leva em
conta para realizar tal tarefa. Neste sentido é pertinente reproduzir algumas
partes desta longa, embora importante passagem para, deste modo, poder
localizá-los claramente[115]:
“Se o conceito de espírito fosse abstraído dos nossos conceitos de experiência,
então o procedimento para esclarecê-lo resultaria fácil, só teria que enunciar
em tal gênero de seres aqueles
caracteres que nele mostram os sentidos e mediante os quais os diferenciamos
das coisas materiais. Mas se fala de espíritos ainda quando se duvida de que
existam tais seres. Portanto, o conceito de natureza espiritual não pode ser
considerado como abstraído da experiência”. Adverte-nos Kant: “muitos conceitos surgem de ocultas e
obscuras inferências, por causa de experiências, e se transferem depois a
outras sem consciência da experiência ela mesma nem da inferência que a partir
dela se elaborou”. Donde podemos inferir que ... “assim existem muitos
conceitos que, em parte, não são mais que uma ilusão da imaginação, e, em
parte, são também verdadeiros posto que as inferências obscuras nem sempre resultam equívocas. A linguagem
usual e a conexão de uma expressão com diferentes contextos nos quais
freqüentemente encontra-se uma mesma característica fundamental outorgam-lhe um
significado determinado que, em conseqüência, só pode ser desvelado se tirarmos
da obscuridade esse sentido oculto mediante uma comparação com todos os usos
que concordem com ele ou que o contradigam”[116] Como
podemos observar, nesta citação não se trata de rejeitar sem mais o conceito de
espírito, nem de fornecer uma definição vazia de referência objetiva; isto é,
nem um ceticismo preconceituoso, (e aqui vale lembrar as palavras do prefacio:
“sendo néscios preconceitos tanto não acreditar sem fundamento algum em nada do
muito que se encontra com certa aparência de verdade, como acreditar tudo o que diz o rumor público”[117]),
nem tampouco, como dissemos, uma credulidade dogmática. Na primeira parte da
citação, Kant explica o procedimento dos conceitos empíricos obtidos
pela abstração de notas características que nos fornecem os sentidos, na
segunda parte trata da transferência dos conceitos. Este último é o
procedimento utilizado por Kant no corpo do texto, (conduzido basicamente por
meio da oposição às propriedades da matéria, fundamentalmente a da
impenetrabilidade), e através do qual chega a uma definição de espíritos, a
saber: “seres que não possuem em si mesmos a propriedade de impenetrabilidade e
que nunca poderão formar um todo sólido (...) Os seres simples desta classe se
chamam de imateriais, e, se possuem razão, espíritos....” (e afirma ainda...). “Ou o nome de espírito é uma palavra sem
sentido ou seu significado é esse”[118]. Mas, no melhor dos casos, esta é uma
definição que não nos permite assegurar
sua realidade objetiva, é tão só um conceito sem objeto.
“Com efeito, -diz Kant-, geralmente se considera que é possível captar a
possibilidade daquilo que pertence aos conceitos comuns de experiência. Pelo
contrário, do que se afasta deles e não pode se fazer compreensível por meio de
experiência alguma, nem mesmo por analogia, disto realmente não pode se
formar nenhum conceito, razão pela qual costuma-se rejeitá-lo como impossível”[119].
Kant faz aqui uma distinção decisiva entre conceitos possíveis, isto é,
aqueles que têm seu referente na experiência, e, conceitos impossíveis,
ou seja, aqueles que de modo nenhum se dão na experiência e são contraditórios.
No texto crítico manterá a questão da referência embora mude a hierarquia das
classes de conceitos. Isto possibilitará salvar o estatuto de conceitos de
objetos "impossíveis" que são utilizados corretamente na experiência.
Com efeito, nos explica Kant que o
conceito de força, embora sendo pertinente à experiência, esta não nos
permite compreender a possibilidade daquela por meio da apresentação de um
objeto. “Através da experiência só se pode descobrir que as coisas do mundo que
chamamos de materiais têm tal força, mas nunca compreender sua possibilidade”[120].
O conceito de força ainda sem objeto, permite-nos pensar uma atividade das
nossas representações empíricas. Contudo, não acontece o mesmo com o conceito
de espírito, o qual sugere a impossibilidade de pensá-lo neste sentido. Embora
devamos dizer também que não se trata de uma impossibilidade provada,
“.....pode se supor a possibilidade de seres imateriais sem temor de ser
refutado e sem esperança de poder demonstrar essa possibilidade mediante
argumentos racionais”[121].
Apesar disso, sua suposição não permite
explicar os fenômenos da experiência de um modo objetivo; “...o recorrer a
princípios imateriais constitui um refugio para a filosofia preguiçosa, e, por
isso, tem que se fazer todo o possível por evitar explicações dessa espécie...”[122]
Continuando seu trabalho, Kant tenta
aplicar o conceito de espírito às ações morais e, da mesma forma como aconteceu
anteriormente, também aqui se provará sua impossibilidade, razão pela qual, já
sem poder dar uma clara significação ao conceito, nos adverte que: assim como
existem “sonhadores da razão” que elocubram em vez de observar, existem
também “sonhadores da sensação”, são aqueles que têm trato com os
espíritos. Devido a isso, Kant recorre agora a explicar o acontecimento como um
fenômeno da imaginação ou algum tipo de perturbação no cérebro ou no sistema
nervoso da vista. Assim sendo, o trato com os espíritos só pode ser explicado
racionalmente destas duas maneiras. Quer dizer, como uma confusão semântica
ou como uma perturbação mental. O que conduz à conclusão de não mais
aceitar uma proposta desse tipo no registro das explicações causais da
experiência. Que também pode ser alternativamente ilustrada, (de modo muito
particular) com uma citação das palavras do poeta que foram pertinentes para
Kant, a saber: “O aguçado Hidibras
poderia ter-nos solucionado o enigma, pois segundo sua opinião: quando um vento
hipocondríaco se desencadeia nos intestinos, dependendo da direção que tome, se
vai para em baixo é um p...., se vai para acima resulta uma aparição ou uma
inspiração santa”[123].
Além desta licença literária, a única
legitimação possível das “histórias sobre aparições das almas separadas ou
sobre influxos de espíritos e todas essas teorias sobre a natureza provável dos
seres espirituais e sua relação conosco é só a esperança frente à morte”.
Esse “esperar” não explica nada teórica e objetivamente, embora não possa ser
rejeitada por ciência alguma. Ao final deste mesmo ensaio Kant faz uma
paráfrase do texto de Voltaire[124]
na personagem de Cândido e convida-nos a “cultivar o nosso jardim”[125].
Nesse “cultivar” podemos dizer que a esperança, no sentido de “esperar
que alguma coisa aconteça, inclusive nossa própria morte”, torna-se regulativa
de nossa tarefa. Assim a esperança fica
como um olhar desde a finitude do homem
aquém de qualquer tradição metafísica, longe de todo saber teológico.
Sobre este tipo de questões só pode-se opinar
(diria Kant) e até de forma diferente, mas nunca saber algo
positivamente ao seu respeito. Além disto só se tem um proveito negativo
desse saber; dado que podemos “desenvolver esta teoria até o final, mas só no
entendimento negativo porquanto este determina com certeza os limites do nosso
conhecimento e convence-nos de que tudo o que nos é dado conhecer são os
diversos fenômenos da vida na natureza e suas leis; ora, o princípio desta
vida, quer dizer a natureza espiritual, que não se conhece, mas que se supõe,
nunca pode ser pensada em forma positiva, posto que não se encontram dados para
isto em nenhuma das nossas sensações; convence-nos também de que seria
necessário se valer de negações para poder interpretar algo tão diferente de
todo o sensível, e inclusive, de que a própria possibilidade de tais negações
não se fundamentem nem na experiência, nem nos raciocínios, mas na ficção a que
recorre uma razão desprovida de qualquer outro recurso”[126].
O valor negativo do trabalho toma um caráter inteiramente crítico enquanto que
nos permite estabelecer os limites do
conhecimento teórico. Esta posição é reafirmada na etapa crítica. Em esta
perspectiva poderia ser pensada, com algum esforço, uma teologia negativa. Os
textos de alguns comentadores, como Freuler e Caimi, sugerem essa
possibilidade. Mas também podemos indicar que esta tarefa, de pensar a
esperança e a religião, foi efetivamente desenvolvida em diferentes textos das
décadas de 80 e 90, entre os quais contamos a Crítica da Faculdade de Julgar
e a Religião nos limites da mera Razão.
Assim, a tarefa abordada não é um simples
passatempo para colecionar relatos sobre histórias de fantasmas, Kant assegura
que a este trabalho o motiva outro propósito. É deste modo que chegamos a uma
declaração fundamental reproduzida nesta citação: “A Metafísica, da qual
estar apaixonado é o meu destino (das Schicksal) (...) oferece dois tipos de vantagem. A
primeira consiste em fazer as tarefas que provoca o espírito indagador quando trata de descobrir mediante a razão
propriedades ocultas das coisas. Mas nesta o resultado desalenta a esperança
(...). A outra vantagem resulta mais adequada à natureza do entendimento humano
e consiste em comprovar se a tarefa é proporcionada àquilo que se pode saber, e
que relação tem com os conceitos de experiência sobre os quais devem se apoiar
todos os nossos juízos. Neste sentido a Metafísica é uma ciência dos limites
da razão humana...”[127].
Aqui (como em qualquer declaração de amor honesta) encontramos uma confissão
que, aquém de ser decididamente reveladora, possui uma importância decisiva com
relação à determinação da tarefa
empreendida, a metafísica é a verdadeira preocupação de Kant nas suas
reflexões. Observemos que este ensaio está longe de ser uma simples rejeição
cética da metafísica. Neste sentido é importante observar a carta a Moisés
Mendelsohn de 8 de abril de 1766 que fala deste texto. ”Estou tão longe de
considerar a Metafísica -objetivamente- como insignificante e inútil que,
sobretudo, desde algum tempo (a partir de que acho ter compreendido sua
natureza e lugar entre os conhecimentos humanos) estou convencido de que dela
depende ainda o autêntico e permanente bem do gênero humano...”[128].
O conceito “Metafísica”, como quase todos os conceitos importantes utilizados
por Kant, possui um caráter polissêmico (como observo e advirto ao longo de
todo este trabalho). Até aqui podemos
observar que tem pelo menos dois sentidos, um é aquele no qual a metafísica
deve ser questionada, trata-se do dogmatismo teórico; outro no qual ela é uma
tarefa por se fazer, que não nos fornece nenhum novo conhecimento, (e é isso que deve ser destacado e lido
com atenção), mas nos evita a ilusão dogmática.
A ilusão da razão será um dos tópicos
essenciais da etapa crítica de Kant, devido a que ele indagará, a partir do
interior mesmo da razão, a geração das suas “ilusões”. Isto não implica em mais
um “novo conhecimento”, quer dizer, na extensão dos nossos conhecimentos
positivos, e sim em um conhecimento das próprias condições de possibilidade do
conhecimento positivo. O projeto da etapa crítica consiste em desarticular
a “ilusão metafísica”.
Entretanto, é possível, no decorrer dos textos kantianos encontrar ainda mais
sentidos do termo “metafísica”. Por exemplo, na Crítica esboçará a idéia
de uma Metafísica da Natureza e uma Metafísica das Costumes, empresa esta que
desenvolverá explicitamente nos correspondentes textos. Por outro lado, nas
cartas falará de um compêndio de metafísica que, pela cobrança de seus amigos,
parece jamais ter sido escrito. No texto da declaração pública de 1799 decide
que a crítica é o próprio sistema metafísico, e assim por diante.
Esta polissemia também faz problemática a
leitura da Arquitetônica na CRP tal como se nota em Freuler (1992)[129],
onde é preciso recorrer até aos manuscritos de aula para dar algumas conclusões
ao respeito. Outra perspectiva do tema é dada em Caimi (1992)[130],
onde poder-se-ia dizer que se resgatam aqueles dois sentidos (questionamento e
tarefa), mas, através de uma leitura dos Progressos da Metafísica... e,
a partir da qual, seria possível falar de uma metafísica especial após os
resultados da Dialética.
Contudo, neste ensaio, Kant começa a
apresentar a idéia de uma filosofia crítica “que julgue sobre seu
próprio proceder e conheça não só objetos, mas também sua relação com o
entendimento humano”, que trate de analisar os limites do conhecimento teórico
e que restrinja as ilusões do pretendido conhecimento metafísico. A atividade
filosófica se vê aqui como terapêutica, enquanto que tenta acabar com as
ilusões da razão (suas doenças). Neste sentido as metáforas “médicas”
empregadas por Kant são muito ilustrativas e permitem explorar diferentes
variantes.
O labor crítico deixa de ser um questionamento de temas parciais para passar a ser uma
tarefa. Na procura de uma boa metafísica a crítica era apenas questionamento
das incertezas, agora, aquelas incertezas, que se apresentavam como um certo
mal-estar, tornam-se verdadeira impossibilidade.
1.8- O mal-estar declarado.
Todos estes trabalhos do período
pré-crítico, junto a alguns outros que aqui não desenvolvi, não deixam de fazer
aparecer a preocupação de Kant com as ciências. Ele é um profundo conhecedor
das ciências da sua época, escreveu durante toda sua vida uma série de
monografias sobre temas particulares de ciência da natureza, psicologia,
geografia, antropologia, etc..., como também ministrou aulas sobre tais
disciplinas. Não só teve simples curiosidade acadêmica, foi um verdadeiro
pesquisador. Mas o que podemos destacar como fio condutor de sua tarefa
filosófica é sua insistência em enunciar a impossibilidade da metafísica em
tratar com fundamento seus próprios problemas. O interesse kantiano pelas
ciências é um interesse “filosófico”, se compreendermos por isso as condições
em que é formulada uma questão. Independentemente de achar ou não uma solução
para tal ou qual problema particular no âmbito das ciências o que realmente
interessa é saber como é que elas funcionam. Kant observa permanentemente a
certeza dos avanços da ciência, enquanto que a metafísica fica atrapalhada em
contradições e desajustes semânticos; esse será o nó kantiano, frente à
afirmação dogmática e à rejeição cética, Kant estabelecerá o problema da metafísica
como um problema semântico. Esse problema deverá ser sistematizado.
Sua primeira tentativa de sistematização
será esboçada em Dissertatio...(1770)[131],
mas, só nos anos oitenta poderá ser realmente feita. É pertinente dizer aqui
que também algumas cartas e reflexões da época indicam assim o problema. A
idéia geral de uma crítica da razão pura já aparece em cartas e escritos de
1766. Na Rx. 4929 (escrita em 1776 ou 1778) podemos ler: “Tentei
com toda seriedade demonstrar proposições e seus contrários, não para erigir
uma doutrina da dúvida, mas, suspeitando de uma ilusão do entendimento, para
descobrir onde residia. O ano de 69 me
proporcionou uma grande luz”[132]
. Aqui Kant já parece ter observado o
conflito da razão consigo mesma. O ano de 1769 também teria sido o momento da
transição à concepção da idealidade do espaço e do tempo, (entre o texto sobre
as regiões do espaço de 1768[133]
e a Dissertatio de 1770) que, como veremos, tem uma função essencial no
tratamento desses problemas.
A reveladora carta a Garve de 21 de
setembro de 1798, como observamos no inicio deste trabalho, nos aponta mais
um dado acerca da origem da sistematização dos problemas: “o ponto de partida
não foi a investigação da existência de Deus, da imortalidade, etc..., mas a
antinomia da razão pura... Foi ela que me acordou pela primeira vez do sonho dogmático e me levou à crítica da
própria razão, para fazer cessar o escândalo de uma aparente contradição da
razão consigo mesma”[134].
Com efeito, pareceria ser que com a formulação da Antinomia aquele “mal-estar”
encontra seu ponto mais crítico. O mal-estar começa a ser formulado e elaborado
como tal.
Entretanto, encontramos em Prolegômenos...(1783)[135]
uma outra confissão que contribui a esclarecer o assunto, a saber: o problema
levantado por David Hume, “o mais engenhoso dos céticos”, coloca em questão a
metafísica toda, (esta passagem é decisiva na fala de Kant) “a advertência de
David Hume foi precisamente o que há muitos anos interrompeu pela primeira vez
meu sonho dogmático e deu às minhas investigações uma direção totalmente
diferente”[136].
Hume perguntou-se pelo conceito da conexão de causa e efeito, força e ação,
etc. e exigiu a razão pela qual se pensa que algo pode estar constituído de tal
modo que, se é colocado, também, necessariamente, uma outra coisa deve ser
colocada....“tentei, diz Kant, em primeiro lugar ver se a objeção de Hume não
se podia representar em geral, e encontrei logo que o conceito de nexo, de
causa e efeito, não é o único mediante o qual o entendimento pensa a priori as conexões das coisas, mas, a metafísica
toda consiste inteiramente nisso” [137].
É a elaboração sistemática do questionamento humeano o que fará com que achemos
a chave do problema.
Portanto seja qual for o ponto de partida
de Kant, o que está em jogo nos textos é uma questão semântica. Tanto as
antinomias da razão como o questionamento da aplicação do princípio de
causalidade são um e o mesmo problema semântico que conduz à pergunta pelas
condições de possibilidade da metafísica enquanto conhecimento do
supra-sensível. Esse ponto é também colocado em Progressos...(1791)[138]
sob a forma da pergunta sobre o “que é que a razão quer com a metafísica?”[139].
Deste modo, Kant indagará as condições de possibilidade da significação das
perguntas pelo sensível e pelo supra-sensível.
No período pré-crítico, então, temos os
sinais de uma nova maneira de colocar os problemas da metafísica que já
não terá nada a ver com a construção de mais uma ontologia, (naquele sentido em
que o realismo transcendental falava das coisas em si, solução esta
decididamente questionada), nem mesmo com simples critérios logicistas, este
será o início da futura filosofia transcendental.
1.9- Conclusão
O ponto de partida deste trabalho foi a
proposta de leitura da “razão como razão problemantizante”. As investigações
aqui consideradas, e que foram desenvolvidas em Loparic (1982), Lebrun (1970) e
em Allison (1983), compartilham uma leitura da CRP a partir dos
problemas necessários da razão. As perspectivas destes trabalhos indicam um
ponto em comum: “a questão da problematização na filosofia crítica”.
Quer dizer noutras palavras, a razão enquanto “razão problematizante”.
Esta questão torna quase que inevitável à preocupação semântica. Porém, a
pesquisa deverá levar em conta que os problemas devem poder ser formulados em
um certo campo semântico, isto é, respondendo a certos requisitos
semânticos que constituam uma ordem de sentido, para poder ter referência e
significação e assim terem possibilidade de serem verdadeiros ou falsos.
No entanto esta problemática, como indicamos,
já é desenvolvida, em determinados aspectos, nos textos do período pré-crítico.
Isto foi possível mostrar a partir de
uma reconstrução, embora introdutória, não meramente cronológica ou evolutiva e
sim temática destes textos, a saber, a relação entre ciência e metafísica, a
distinção entre lógico e real, a diferença entre oposição e contradição e a
explicitação do próprio problema da metafísica como problema de significação.
No seu afã de procurar uma boa metafísica Kant encontra problemas de significação
em cada um desses tópicos. Na relação entre a ciência da natureza e a metafísica,
que é uma das problemáticas fundamentais da tarefa kantiana já nos primeiros
escritos, coloca-se o problema dos diferentes registros argumentativos de cada
tipo de discurso, o uso adequado das hipóteses válidas para a explicação de
fenômenos físicos, a necessidade de um procedimento construtivo para a
ampliação segura do conhecimento. Na distinção entre o lógico e o real
questiona-se o alcance das regras da lógica formal tradicional (através do
estudo do princípio de razão suficiente e da teoria do silogismo) para
determinar as coisas existentes, distinguindo, deste modo, não só o estatuto
lógico do real (e assim o ideal do existente) como também o registro da natureza
e o da liberdade. Na diferença entre oposição e contradição
mostra-se mais uma vez a impossibilidade da determinação formal da existência
através da sua caracterização como atributo. É preciso, por tal motivo, uma
outra consideração, não meramente lógica, da existência. Na explicitação do problema
da significação questiona-se o uso indevido de hipóteses e conceitos sem
qualquer referência e formula-se a tarefa da metafísica como o trabalho de
evitar o surgimento da ilusão dogmática.
De acordo com este percurso nós podemos
então extrair como conclusão que os textos pré-críticos kantianos são uma
tentativa fracassada de procura de uma boa metafísica, mas, por outro lado,
permitiram também mostrar os erros semânticos que os metafísicos tradicionais
cometiam na formulação e resolução dos seus problemas. Isto levou Kant a fazer
um questionamento decisivo a esse tipo de prática que quase se assemelhava ao
ceticismo. No entanto, Kant, em vez de rejeitar aqueles problemas sem mais
discussões, se propôs pesquisar sua própria possibilidade, tanto no que se
refere à sua origem como à sua solubilidade. Aquela preocupação semântica
espalhada por uma série de trabalhos deve-se sistematizar a fim de tratar já
não cada problema em particular, mas sim a metafísica toda no seu conjunto.
Aquela metafísica tão procurada jamais foi
escrita. Um mal-estar impediu sua concretização. Entretanto, esse mesmo
mal-estar permitiu o desenvolvimento de um modo de abordar os problemas
filosóficos que até então não teria sido explicitado sistematicamente.
Parte 2
A interpretação crítica do problema da
metafísica
2.1- Introdução
A passagem da etapa pré-crítica para a
crítica (que pode ser caracterizada, em alguns dos seus aspectos, como a
passagem da preocupação semântica nos problemas metafísicos à problematização
semântica da metafísica ela mesma como questão), pode ser abordada a partir da
concepção da razão como "razão problematizante". Ou seja, a
razão tem problemas necessários, gerados pela sua própria natureza, enquanto
que ela mesma, como aparelho, é um problema no seu funcionamento. Por outras
palavras, a razão gera seus problemas necessários que exigem ser respondidos
adequadamente, mas, nesta geração, a formulação daqueles pode resultar confusa
e isso também é um problema. Por tal motivo é imprescindível, não somente
atender à geração de problemas sem mais, senão também cuidar da sua formulação
adequada. É por isso que é preciso observar seu funcionamento enquanto que
“problematizante” nos dois sentidos. Nesta seção do trabalho tentarei colocar
essas duas questões.
Tal como demonstrei na primeira parte, a
metafísica dogmática foi questionada na etapa pré-crítica a partir da
problemática da significação, em função disso a metafísica torna-se “tarefa crítica”. Isto é, uma pesquisa
sobre as condições de possibilidade e limites do nosso conhecimento. Embora
aquela pesquisa seja a questão central da crítica, será preciso, antes de mais nada, mostrar que os problemas
mesmos da metafísica não são uma invenção extravagante de alguma mente
especulativa, senão que são gerados pela própria natureza da razão de acordo
com seu próprio funcionamento. O que é realmente extravagante é o modo
dogmático de resolução destes problemas, que interpreta como princípio
objetivo de constituição de objetos o princípio subjetivo de funcionamento da
razão, criando, desta maneira, uma ilusão transcendental e levando a razão à
contradições e obscuridades. É assim também como surge o ceticismo que,
assinalando a falta de uma fundamentação válida para as afirmações dogmáticas,
acaba rejeitando os problemas mesmos; gerando, deste modo, uma “história da
metafísica” como a história da luta entre céticos e dogmáticos sem nunca
dar com o verdadeiro problema, a própria possibilidade da metafísica segundo o
tratamento crítico.
Esta reconstrução nos permite ver como os
distintos sentidos com que o termo “metafísica” está vinculado associam-se ao
modo como é compreendida uma determinada região de problemas da razão. Da mesma
maneira também é interpretada a história na qual emerge essa compreensão e,
portanto, a tarefa que deve ser empreendida de acordo com o diagnóstico
formulado.
Nosso propósito visa agora, apenas,
colocar o problema com relação àquilo que considero medular no texto kantiano,
ou seja, a questão da significação.
2.2- Os sentidos da metafísica.
Retomando as palavras da seção anterior
podemos dizer que aquele período “dogmático”, dos textos pré-críticos de Kant,
não foi tão dogmático já que permitiu assinalar as falhas contidas nos
empreendimentos da metafísica tradicional na tentativa de formular e resolver
problemas. Do mesmo modo, a suposta “mudança cética” dos Sonhos de um
visionário... que, pela avaliação de muitos comentadores (contemporâneos a
Kant e contemporâneos a nós) parecia acabar com toda e qualquer preocupação
metafísica, também não foi tão cética, já que nos indica uma tarefa a cumprir,
que não é a do simples questionamento, mas sim, de crítica da metafísica
tradicional.
Para ser mais preciso, não se trata
simplesmente de dar argumentos pró ou contra tal ou qual problema metafísico,
de estar a favor ou contra a metafísica sem mais problemas que o de se colocar
em um dos lados da oposição, mas sim de passar de uma reflexão no interior
da metafísica a uma reflexão sobre a metafísica.
Não se trata só da validade dessa ou
daquela resposta metafísica, senão da reflexão sobre a metafísica mesma como
válida e legítima. Existe uma diferença decisiva entre “refletir no interior da
metafísica” ( in der Metaphysik denken) e “refletir sobre ela” (über sie denken)[140],
e nessa diferença se baseia a essência da filosofia crítica. A reflexão no
interior da metafísica permitia, ainda, questionar os metafísicos que não
teriam conseguido escrever uma boa metafísica. Por outro lado, na “reflexão
sobre a metafísica” é ela mesma a que está em jogo e que deve ser julgada. Ou
seja, no segundo momento, a preocupação já não seria tanto a de escrever uma
metafísica certa, como a de pesquisar as condições da sua própria
possibilidade.
Com efeito, tal como se mostrou no tratamento dos textos
pré-críticos, o propósito de Kant era alcançar essa metafísica tão valiosa que
ninguém tinha conseguido escrever. Essa tentativa está explicitamente enunciada
em uma carta a seu amigo J.H. Lambert de 31 de dezembro de 1765.
Como presente de final de ano, Kant escreve a seu colega que está trabalhando
no método da metafísica e que, de acordo com um novo esquema filosófico,
deveria publicar dois pequenos ensaios, a saber, uma fundamentação
metafísica da filosofia natural e a fundamentação metafísica da
filosofia prática. Como sabemos, esses textos foram efetivamente
publicados, mas, em um outro “esquema” filosófico distinto daquele eununciado
na carta a Lambert. Na época da publicação dos textos a “metafísica” em Kant já
tinha mudado de sentido. Foi preciso, antes de mais nada, escrever uma Crítica,
para depois, pensar em princípios metafísicos. Esta alteração nos
planos, e a mediação da crítica, é decisiva para o sentido do termo "metafísica"; por tal motivo, é
possível dizer, sem temor a erro, que aqueles pensamentos publicados nos textos
dos anos oitenta, não são aqueles sobre os quais Kant refletia nos anos
sessenta. É verdade que este não é o único texto onde Kant fórmula suas
intenções metafísicas (pré-críticas), mas, também é verdade que este texto tem
a característica de confundir ainda mais àquele que não considere os diferentes
planos de trabalho. É, por isso, muito importante indicar esse deslocamento de
sentido para acompanhar de perto as mudanças da empresa kantiana.
Tal como escreve Lebrun: na etapa
pré-crítica Kant “continua a pensar
que, se a metafísica jamais existiu, foi por falta de rigor nos estudiosos e
não por falta de reflexão sobre a natureza dessa ciência...”[141].
Com efeito, a procura desse rigor levou Kant (nos textos pré-críticos) a se
defrontar com problemas semânticos intransponíveis, enquanto não fosse abordada
uma verdadeira reflexão sobre a natureza mesma da metafísica (tal como acontece
no texto crítico). Por tal motivo é necessário estar atento, mais do que à uma
ruptura textual-literal (crítico / pré-crítico), a um deslocamento do sentido
do texto. É nessas condições que será possível agora abordar a “natureza da
metafísica”, ou seja, refletir sobre a metafísica. Perguntar-se pela origem dos seus problemas
e pela nossa capacidade de resolvê-los. Para isso é preciso, tal como sugere
Freuler (1992)[142],
uma definição de metafísica e uma decisão sobre a metafísica no
projeto crítico. O trabalho de reflexão crítica sobre a metafísica, poderíamos
dizer, está metodologicamente encaminhado por esses dois momentos de
“definição” e de “decisão”. Referindo o termo “definição” ao primeiro momento
do procedimento de reflexão transcendental e não apenas à mera definição
gramatical dos conceitos. Muitas das críticas a Leibniz e à metafísica
dogmática em geral vão neste sentido; isto é, a mera definição gramatical não é
um ponto de partida válido para o desenvolvimento de uma ciência[143]
e muito menos ainda da metafísica. Por isso a questão da definição deve ser
considerada aqui como uma instância reflexiva.
Heidegger (1986) vai ainda mais longe
dizendo que esta operação crítica será uma verdadeira fundamentação da
metafísica. Deste modo, o questionamento da metafísica specialis
torna-se "problema da possibilidade interna desta ciência"[144].
Independente de qualquer controvérsia histórico-interpretativa, a leitura
heideggeriana assinala, neste ponto, o giro que eu quero resgatar. O duplo jogo
entre metafísica como dogmática e metafísica como tarefa. Metafísica como a ciência
do supra-sensível e metafísica como ciência dos primeiros princípios do
conhecimento humano. O conceito de metafísica neste último sentido parece
ser tomado por Kant do texto de Baumgarten (Metaphysica 2da. ed 1743
parágrafo 1: Metaphysica est scientia prima cognitionis humanae principia
continens)[145]
e acarreta , adverte-nos Heidegger, uma ambigüidade fundamental
ao envolver, nesta definição, tanto a ontologia como a cosmologia, a psicologia
e a teologia naturalis. Assim sendo, pareceria ser que a metafísica “não
é somente um ‘conhecimento do ente como ente’, mas também ‘um conhecimento da
região suprema do ente’, a partir da qual se determina o ente na sua
totalidade”[146].
Deste modo o inteligível acaba determinando o sensível. Sabemos, pela história
da metafísica de acordo com Heidegger, que esta dualidade (sensível /
inteligível em todas suas formas)
domina o problema da metafísica desde os começos do pensamento
ocidental; trata-se de uma operação de oposição na qual um dos elementos
hierarquicamente superior determina ao outro (oposição e subordinação). A
ambigüidade originária se perde e a oposição se torna rígida. Assim, a
metafísica é o conhecimento fundamental do ente na sua totalidade, mas, ao
empreender essa tarefa (e responder às perguntas “em que consiste a essência do
conhecimento do ser do ente?, até que grau se desenvolve um conhecimento do
ente na sua totalidade?, porque se converte em um conhecimento do conhecimento
do ser?”[147]),
começa a constituir-se um conceito dogmático. Este dogmatismo é atribuído por
Heidegger a dois elementos essenciais: a interpretação cristã do mundo e o
ideal de conhecimento racional (matemático)[148].
Seguindo esta linha, Heidegger coloca Kant dentro da tradição dogmática.
A partir desta interpretação
heideggeriana, por um lado, e levando em conta o enunciado (sobre a questão da
crítica à metafísica) neste trabalho, por outro, a pergunta que surge é a
seguinte: “Tratar-se-ia então, de uma definição e uma decisão sobre a antiga metafísica na base, simplesmente, de uma
nova?”[149].
Assim sendo: Qual seria o giro do pensamento kantiano? Qual seria a novidade se
só se trata de mais uma metafísica dogmática?
A diferença que Kant logra formular, é
justamente a que permite observar aquela oposição como gerada por uma "ilusão
transcendental". É essa a diferença de leitura estabelecida por Kant
na filosofia transcendental através das observações e questionamentos
semânticos, indicados nos textos pré-críticos e desenvolvidos sistematicamente
nos textos críticos. É desse modo que Kant consegue desarticular, nos
seus aspectos fundamentais, essa oposição (indicada por Heidegger) através duma
crítica da razão. Com efeito, a tentativa da metafísica dogmática de conhecer
os "objetos inteligíveis" teórica e objetivamente, do mesmo
modo que é possível conhecer os "objetos sensíveis" e ainda,
por cima, pretender a subordinação dos últimos aos primeiros, é considerada por
Kant como uma ilusão carente de qualquer fundamento objetivo. Os textos
pré-críticos, tal como foram reconsiderados anteriormente, mostraram os erros
semânticos nos quais se incorre cada vez que essa ilusão pretende tornar-se
realidade. A tarefa crítica mostrará tanto o funcionamento do aparelho
cognitivo[150]
na formulação desses problemas quanto sua operação falida de resolução. Por
outras palavras, o funcionamento do aparelho cognitivo permite observar como a
organização dessas relações de oposição e subordinação, que ordenaram a
metafísica desde sempre, são uma mera ilusão da razão.
Dito isto demos um passo a mais na questão metafísica. Heidegger define a
metafísica como a tentativa de pensar o ser como presença; o que é, é em
relação com o que é presente. Isso é possível observar em Kant no
tratamento do que é cognoscível. O cognoscível que é deve ser presente.
Assim é como funciona o conhecimento teórico objetivamente válido[151].
Para que alguma coisa seja cognoscível deve ser concebida necessariamente como presença.
Mas, não toda e qualquer existência é no sentido de ser presente. Deus existe
(de acordo com Kant), mas é à toa que o procuremos entre as pedras. O fracasso
da empresa pré-crítica mostra claramente que é impossível indicar seu lugar. A
sua existência não se faz presente nem como objeto sensível nem como idéia
platônica. Trata-se apenas de um operador da razão, de uma idéia regulativa, de
um exigência no âmbito moral. Deste modo Deus não faz presentes as coisas
enquanto coisas. Não existe qualquer relação entre presenças. A impossibilidade
de uma demonstração ontológica da existência de Deus já não permite manter a
antiga oposição. Kant prova nesses textos que é impossível organizar a
dicotomia Sensível / Inteligível sem incorrer em erros semânticos na formulação
das suas proposições. Uma formulação adequada impede tal transgressão, e,
portanto impede também a organização da oposição e o tratamento da existência
de Deus como presença.
Na época crítica o problema de Deus é
desenvolvido nos três textos críticos fundamentais[152]
sob o domínio teórico, prático e teleológico; como também na Religião dentro
dos limites da mera razão. Na época pré-crítica, a questão é tratada no
texto de 1763 com uma resolução cosmológica. Ainda que com aspectos diferentes,
todos estes textos, apresentam a impossibilidade de ordenar a oposição que
Heidegger mostra como fundamental no discurso da metafísica. O texto kantiano
procura mostrar que o que realmente está em jogo não é a elaboração complexa de
outra prova ontoteológica. Muito pelo contrário, trata-se de desmontar a
estratégia argumentativa da metafísica e indicar sua falsidade para, deste
modo, não mais formular problemas sem sentido adequado. É por isso que é
preciso uma teoria da significação que determine os alcances do nosso conhecimento
sem cair em qualquer (erro semântico) ilusão de formular uma falsa relação de
oposição. Somente depois disso será possível saber (decidir) se, na crítica,
trata-se de uma “metafísica da metafísica”, um “fora da metafísica” ou tal vez
nenhuma das duas coisas (a oposição dentro/fora quiçá seja ela mesma também uma
armação metafísica), mas este último é um problema que simplesmente mencionarei
por encontrar-se além dos limites desta pesquisa.
É de notar como Heidegger coloca
brilhantemente as questões fundamentais da metafísica que ultrapassam, como
sabemos, esta breve indicação. Não ignoro que as colocações e as preocupações
heideggeriana têm um sentido mais abrangente do aquele que se desenha no
horizonte em que aqui nos movimentamos. Por exemplo, o problema da “presença”
vai além de nossa simples menção. Mas, mesmo assim, o que eu quero assinalar é
como esses dois tópicos essenciais do discurso metafísico (oposição e presença)
podem ser interpretados também em termos kantianos.
2.3- Os problemas necessários da razão.
Apesar do forte questionamento feito por
Kant contra os metafísicos nos textos do período pré-crítico, e especialmente
no do ano de 1766 (Sonhos...), na passagem para o texto crítico poderá
ser comprovado que, de acordo com Kant, os problemas da metafísica, eles
mesmos, não são, como parece, a simples imaginação de uma legião de
ilusionistas, muito pelo contrário, pertencem à própria natureza da razão.
É interessante observar que a elaboração
do conceito da tarefa filosófica, como uma pesquisa dos limites, é trabalhada
em um texto dedicado à desarticulação do discurso místico. Como sabemos, é em Sonhos...
onde Kant, escrevendo sobre Swedenborg, desarticula o discurso da revelação e
do espiritualismo e prepara os primeiros elementos da atividade filosófica como
filosofia crítica, e esta, por sua vez, como pesquisa dos limites. O texto
kantiano não tenta construir um discurso oposto ao discurso da revelação. O que
Kant coloca em questão é a própria organização discursiva da revelação, seus
conceitos, seus princípios, as operações do texto místico. É nesse quadro que
Kant enuncia a tarefa crítica.
Não obstante, e seguindo o texto kantiano,
o discurso místico de Swedenborg diferencia-se radicalmente do discurso
metafísico abordado na Crítica da Razão Pura, embora o que esteja na
base das duas desarticulações seja a questão do sentido. Poderíamos dizer que
se trata de ilusões, mas de ilusões diferentes, de discursos ilusórios
organizados de modo diferente. As operações discursivas que permitem organizar
o edifício metafísico produzem outros movimentos além dos da revelação.
No que segue, observaremos como a razão
funciona neste novo caso, que não é “apenas” um caso.
Do mesmo modo que as formas lógicas do
nosso conhecimento (no entendimento) podem conter a origem dos nossos conceitos
puros a priori, -procedimento este, que Kant se encarrega de mostrar-nos
na Analítica Transcendental da primeira crítica, deduzindo as
categorias da tábua dos juízos-, assim também, a forma dos raciocínios contém a origem dos nossos conceitos da
razão (CRP A 321/ B 378).
Procedo brevemente à demonstração da sua
obtenção, indicando a operação de inferência da razão nos raciocínios:
1- (maior) concebo uma regra pelo entendimento.
2- (menor) subsumo um conhecimento
na condição dessa regra mediante a faculdade de julgar.
3- (conclusio) determino o
conhecimento pelo predicado da regra pela razão.
Na conclusão do silogismo, restringimos um
predicado a determinado objeto, após tê-lo pensado na premissa maior em toda
sua extensão, sob certa condição. Esta quantidade completa da extensão, com
referência à tal condição, chama-se universalidade, a qual, na síntese das
intuições, corresponde à totalidade das condições.
É útil, neste ponto, lembrar a diferença
da concepção do silogismo em relação ao texto de 1762[153].
A distinção entre intensional e extensional não é (como já demonstrei) uma
indicação meramente técnica, o segundo caso não é um procedimento de simples
análise, senão que se refere a uma composição da extensão mediante uma regra.
Assim sendo, o conceito transcendental da razão (idéia) é apenas o conceito da
totalidade das condições relativamente a um condicionado dado (Erscheinung).
Como, porém, só o incondicionado possibilita a totalidade das condições e,
reciprocamente, a totalidade das condições é sempre em si mesma incondicionada,
um conceito puro da razão (idéia) pode ser definido como o conceito do
incondicionado, na medida em que contém um fundamento da síntese do
condicionado (CRP A 322/ B 379).
Uma vez apresentado o procedimento geral
do raciocínio da razão, podemos abordar as suas distintas figuras. A relação
que a premissa maior representa, como regra, entre um conhecimento e a sua
conclusão, constitui as diversas espécies de inferências da razão. É por isso
que, de acordo com o modo como seja efetuada essa relação, pode haver três
espécies de raciocínios, a saber: categóricos, hipotéticos e disjuntivos (CRP
A 304/ B 361).
Com respeito a isto, Kant esclarece na Logik
Jäsche[154]
que os raciocínios não podem ser divididos, como os juízos, em relação à sua “quantidade”
porque toda maior é uma regra e, porém universal; em relação à sua “qualidade”
porque sua afirmação pode ser afirmativa ou negativa indistintamente; em
relação à sua “modalidade” porque a conclusão deve ser sempre necessária.
Por esta razão, o princípio de divisão está baseado na “relação”[155].
Cada raciocínio, ou seja, cada espécie de relação procura um conceito puro da
razão diferente:
1)um incondicionado da síntese categórica
em um sujeito;
2) um incondicionado da síntese hipotética
dos membros de uma série;
3)um incondicionado da síntese disjuntiva
das partes em um sistema;
(síntese predicativa, conjuntiva e
disjuntiva respectivamente).
Assim sendo, para encontrar tal conceito,
cada raciocínio progride para o incondicionado por meio de pro-silogismos. Quer
dizer:
1) para um sujeito que já não é predicado;
2) para uma pressuposição que já nada
pressupõe; e,
3) para um agregado de elementos ao qual
já nada mais é exigido.
Do mesmo modo que no caso das categorias
(para o entendimento), é preciso compreender isto como uma “operação” da razão.
Cada operação não é, apenas um tecnicismo lógico, é uma operação de composição
de uma série de elementos. Cada relação
é uma relação de composição ininterrupta até o absoluto, mas só “idealmente”. A
este respeito, Kant nos diz: “...a razão, no seu uso lógico, procura a
condição geral do seu juízo (da
conclusão) e, deste modo, o raciocínio não é também mais que um juízo obtido,
subsumindo sua condição em uma regra geral (a premissa maior). Ora, como esta
regra, por sua vez, está sujeita à mesma tentativa da razão e assim (mediante
um pro-silogismo) se tem de procurar a condição da condição, até onde for
possível, bem se vê que o próprio princípio da razão em geral (no seu uso
lógico) é encontrar para o conhecimento do condicionado, o incondicionado pelo
qual se lhe completa a unidade. Esta máxima lógica só pode converter-se
em princípio da razão pura, se admitirmos que, dado o condicionado, é
também dada (isto é, contida no objeto e na sua ligação) toda a série das
condições subordinadas, série que é, portanto, incondicionada” (CRP A
307/B 364).
A regra de funcionamento lógico
passa a ser princípio transcendental, e assim, a gerar problemas
necessários da razão, enquanto este seja tomado subjetivamente. Quer
dizer, que deve ser compreendido como um requerimento de sistematicidade (uma
petição: a de seguir avançando), mas, fora disto, não é possível fazer qualquer
uso empírico, objetivo, desse princípio que seja considerado legítimo. Nesse
caso estaríamos atuando de modo “transcendente”. O proceder da razão por
raciocínios não depende da experiência, mas apenas do seu próprio
funcionamento, no entanto também não é constitutivo daquela, apenas tem uma
função regulativa.
De acordo com o procedimento da razão,
qualquer série cujo expoente é dado, pode prolongar-se indefinidamente. Isto é,
o mesmo ato da razão conduz à ratiocinatio polysyllogistica, que é uma
série de raciocínios, que pode ser prosseguida indefinidamente, quer pelo lado
das condições (per prosyllogismus), quer pelo lado do condicionado (per
episyllogismus) (CRP A 311/
B 387). Pelo primeiro ato é gerada a síntese regressiva, pelo segundo a síntese
progressiva. A primeira diz respeito às condições, a segunda, respeito ao
condicionado. Esta última síntese, gera problemas “arbitrários”[156].Ou
seja, problemas sobre as conseqüências do condicionado, e é potencialmente
aberta; enquanto a primeira, gera problemas “necessários” da razão pura sobre a
condição do dado. São problemas necessários enquanto carecermos de
princípios para a compreensão integral do que é dado no fenômeno, e não de
conseqüências que podem ser prolongadas indefinidamente (CRP A 411/ B
438). Com efeito, no caso da progressão teríamos, virtualmente, a possibilidade
de incorporar sempre mais um elemento à série, não obstante, no caso da
regressão deveríamos poder estabelecer um princípio ou primeiro termo.
Estes conceitos puros da razão (idéias, ou
primeiros termos das sínteses regressivas), aos quais chegamos pelo pensamento
e só são concebidos por ele, são necessários, na medida em que nos prescrevem a
tarefa de fazer progredir, tanto quanto é possível, a unidade do entendimento
até ao incondicionado (CRP A 323/ B 380). De fato, a diversidade das
regras e a unidade dos princípios é uma exigência da razão para levar o
entendimento ao completo acordo consigo mesmo (CRP A 305/ B 362).
Neste sentido, a razão relaciona-se apenas
com o uso do entendimento, na medida em que lhe prescreve a orientação (die
Richtung) para uma certa unidade de todos seus atos com respeito a cada
objeto ( CRP A 326/ B 383). Um princípio de unidade tal não prescreve
aos objetos nenhuma lei constitutiva e não contém o fundamento da possibilidade
de os conhecer e de os determinar como tais (empiricamente), é simplesmente uma
lei subjetiva, de caráter heurístico que permite a sistematização do nosso
conhecimento. A razão não contém o fundamento constitutivo da experiência dita
possível (CRP A 306/ B 362). É apenas e nada menos que no interior deste
quadro onde a razão opera e formula problemas.
As idéias, então, servem ao entendimento
só de cânone, lhe permite estender seu uso ao máximo e torná-lo homogêneo; por meio daquelas o entendimento não conhece,
mas ganha sistematicidade (CRP A 329/ B 386).
Como vemos, a teoria dos problemas necessários da razão está
baseada na interpretação extensional do silogismo. Lembremos mais uma vez o
texto pré-crítico de 1762 tratado na parte I deste trabalho. Ali Kant
compreende a dificuldade de relacionar o que é possível de se dizer em um
raciocínio logicamente correto com o que realmente acontece na experiência. Na
tentativa de cuidar adequadamente do problema, ele diferencia entre silogismos
puros e mistos, acreditando que mais uma regra sintática acabaria com as
conseqüências indevidas dos raciocínios na ampliação do conhecimento.
Tratava-se, naquela época, de ajustar o aparelho sintático, explicitar as
inferências envolvidas. Errou. O que
deveria mudar era justamente a própria interpretação do silogismo. Se Kant
continuasse a ver o silogismo na sua interpretação intensional (tal como no
texto de 1762) jamais haveria conseguido formular sistematicamente os problemas
da razão e teria ficado no domínio da mera ilusão. Não teria conseguido
diferenciar os operadores do discurso místico (à la Swedenborg) e do
discurso metafísico (à la Leibniz). Teria ficado no nível do
questionamento, e então sim, quiçá, poderíamos afirmar que a elaboração
kantiana seria mais uma figura da repetição metafísica ou apenas um discurso
contra a metafísica[157].
Kant assume de fato a metafísica como uma
operação que produz uma região de problemas que independem da particularidade
da obra de um escritor. A metafísica, enquanto região de problemas necessários
da razão, vai além de uma mera disciplina universitária. Surge pelo próprio funcionamento
dos nossos dispositivos de conhecimento e da nossa linguagem. Kant mostra como,
na modernidade, esse tipo de problemas se apresenta naturalmente na medida em
que tentemos nos colocar questões de ordem cognitiva. Por isso, a metafísica
enquanto problema, não pode ser resolvida nem com a elaboração de mais um
tratado nem com a rejeição direta. Acreditar que se acaba com a metafísica por
que simplesmente não se fala mais dela é tão questionável como acreditar na
resolução dogmática de seus problemas. Ambas as alternativas fundamentam-se
dicotomicamente na interpretação da metafísica como mera disciplina. Esta
interpretação desconsidera a necessidade da sua emergência caindo assim em uma
verdadeira ilusão. O que está em jogo no texto kantiano é o fato de que a
questão da metafísica não é apenas um ato da vontade, ou mais uma decisão a ser
tomada do tipo “fazer ou não fazer metafísica”, senão que são as próprias
operações de nossa racionalidade que articulam e desarticulam essa classe de
discursos.
2.4- A ilusão transcendental.
Uma vez estabelecido o caráter
"necessário e natural" dos problemas da metafísica, segundo o próprio
funcionamento do aparelho cognitivo, é possível agora obter uma avaliação mais
precisa da operação que está no fundo do modo tradicional de tratar estes
problemas, e detectar, desta maneira, o “equivoco” do dogmatismo metafísico.
“Equivoco” este, também gerado a partir do próprio funcionamento do aparelho
cognitivo. Sendo assim, tornar-se-á indispensável voltar a considerar o
funcionamento da razão em vistas a avaliar o “erro” criticamente, e não mais
simplesmente rejeitar o dogmatismo como acontece no ceticismo. Por tal motivo
acompanharei a reflexão kantiana sobre o engano da razão.
“Os sentidos não erram, não podem errar
porque não julgam”. Kant define o erro do juízo em relação ao objeto. Só se
erra julgando. Deste modo, temos um tipo de erro que surge da aparência
transcendental (der transzendentale Schein), “...na nossa razão
(considerada subjetivamente como faculdade humana de conhecimento) há regras
fundamentais e máximas relativas ao seu uso, que possuem por completo o aspecto
de princípios objetivos, pelo qual sucede que, a necessidade subjetiva
de uma certa ligação dos nossos conceitos, em favor do entendimento, passa por
uma necessidade objetiva da determinação das coisas em si. Ilusão esta,
que é inevitável...” (CRP A 297/ B 353). Trata-se de uma ilusão
natural e inevitável que toma princípios subjetivos por objetivos, nisto
consiste a “aparência transcendental”. Aquela necessidade de unidade e ordem do
entendimento, efetuado por um procedimento da razão, que permite sistematizar
os fenômenos que o próprio entendimento determinou na experiência, acaba se
tornando determinação dos objetos. A idéia do incondicionado é concebida como
se tivesse a mesma realidade objetiva que o condicionado.
A realidade transcendental
(subjetiva, não empírica) das idéias da razão, funda-se, como temos explicado,
em que, por um raciocínio necessário, somos levados a tais idéias. Mas quando
inferimos mais alguma outra coisa que uma mera idéia e lhe outorgamos realidade
objetiva, então estamos operando com raciocínios dialéticos. Assim sendo,
do mesmo modo que o anterior, temos três
espécies de raciocínios dialéticos, a saber:
a) o primeiro assenta-se no conceito
transcendental de sujeito, do qual infiro a unidade absoluta deste sujeito;
b) o segundo assenta-se no conceito
transcendental da totalidade absoluta da série de condições de um
fenômeno dado em geral; e
c) o terceiro na totalidade das
condições necessárias para pensar objetos em geral.
A primeira contém a unidade absoluta do
sujeito pensante, a segunda contém o conjunto de todos os fenômenos e a
terceira a unidade absoluta da condição de todos os objetos do pensamento em
geral. Deste modo, o sujeito pensante é objeto da psicologia, o conjunto
de todos os fenômenos é objeto da cosmologia, e a condição de todas as
coisas, o ente de todos os entes, é objeto da teologia (CRP A 334/ B 391). Cada idéia, tomada objetivamente,
fornece o “objeto” (alma, mundo, Deus) da metafísica especial. Isto
permite que os metafísicos misturem as idéias com os conceitos e confondam a
unidade sintética incondicionada com a síntese do condicionado. “A razão, diz
Kant, parte de princípios, cujo uso é inevitável no decorrer da experiência e
ao mesmo tempo, suficientemente garantidos por esta. Ajudada por estes
princípios eleva-se cada vez mais alto (como de resto lho consente a natureza)
para condições mais remotas. Porém, logo se apercebe de que, desta maneira, sua
tarefa há de ficar sempre inacabada, porque as questões nunca se esgotam; vê-se
obrigada, por conseguinte, a refugiar-se em princípios, que ultrapassam todo o
uso possível da experiência...” Este é o erro semântico fundamental que possibilita
o salto metafísico. Esta indistinção de objetos (sensíveis e ideais) é a origem
da ilusão de podê-los conhecer com os mesmos princípios. Continuemos ainda mais
com a citação: “os princípios de que se serve (a razão), uma vez que
ultrapassam os limites de toda experiência, já não reconhecem nesta qualquer
pedra de toque. O teatro destas disputas infindáveis chama-se Metafísica” (CRP
A VII-VIII). Com efeito, a metafísica constitui uma região de problemas da
razão, e até a mais importante. Mas, tal como o dogmatismo a desenvolvia, só
conseguia entrar em contradições e obscuridades. Esta tentativa de completar a
série de todas as condições até chegar à sua unidade completa leva além da
experiência. Isto, diz Kant, “existe como disposição natural (metaphysica
naturalis), pois a razão humana, impelida por exigências próprias, (...),
prossegue irresistivelmente para esses problemas que não podem ser solucionados
pelo uso empírico da razão nem por princípios extraídos da experiência” (CRP
B 21). A indicação é essencial. Os problemas metafísicos, mesmo sendo
originados pelas exigências próprias do desenvolvimento cognitivo, não são
possíveis de serem solucionados cognitivamente no âmbito da experiência. Surgem
do cognitivo, mas não pertencem ao cognitivo. A metafísica é desta maneira, e
só desta maneira, compreendida como disposição natural, quer dizer: metafísica
enquanto região de problemas surgidos do próprio funcionamento da razão.
Uma vez alcançada esta definição e
no interior desse esquema de operações cabe, depois, decidir sobre a
validade da formulação e resolução de tais problemas. Ou seja, dada a definição
daquilo que se interpreta como uma operação metafísica, estamos em condições de
um posicionamento (dogmático ou crítico) frente a esta questão.
Os três problemas (sobre a alma, o mundo e
Deus) se originam naturalmente, como se explicou, na procura da extensão do
nosso conhecimento empírico sobre as aparências ou aparecimentos (Erscheinung),
de acordo com as três relações lógicas básicas nas quais podemos tentar essa
ampliação, a saber: a relação sujeito-predicado (raciocínio categórico), a
relação antecedente-consequente (raciocínio hipotético), a relação
parte-agregado (raciocínio disjuntivo) (CRP B 379). É por isso que a
“naturalidade” da disposição metafísica estaria tanto na base do dogmatismo
como na base da crítica. O que está em
jogo, e é aquilo pelo qual se estabelece a diferença entre ambas “tendências”,
não é o ato de rejeitar a disposição, mas sim denunciar os falsos problemas
criados a partir dela. O conceito de “naturalidade” dos problemas metafísicos
não visa “naturalizar” e, portanto “neutralizar” o significado da metafísica,
como se se procurasse uma justificativa ante a qual resignar-se. Muito pelo
contrário, o conceito de “naturalidade” permite assumir o problema da
metafísica como “problema”. Essa operação dita “metafísica” torna-se “problema”
e não adianta nem o gesto da indiferença nem uma proclamação de guerra, a
operação continua a estar aí, no texto, e é por isso que o “posicionamento”
crítico não é um trabalho sobre livros ou autores, é um trabalho no texto sobre
a desarticulação da operação da razão.
Neste sentido, coincidindo com Greier
(1993)[158]
entre outros comentadores, é possível observar que a Dialética
Transcendental é uma crítica às três disciplinas da metafísica especial.
Também em Torretti (1980) podemos ler uma interpretação semelhante. Ele diz
que, em Kant, o entendimento constrói a experiência incorporando seus objetos
em uma rêde de relações, assim, cada objeto fica condicionado pelos outros que
também são condicionados. Entretanto, a razão procura encontrar o
incondicionado para cada série de condições, representado em uma idéia que não
pode corresponder a nenhum objeto empírico. No entanto, a ilusão
transcendental, consiste em tomar essas idéias como representações de objetos
efetivamente existentes. Essa ilusão possibilita a tentativa da metafísica especial de pretender conhecer os
objetos supra-sensíveis[159].
Produz o “salto” metafísico do sensível
para o supra-sensível. Nesse “salto” tudo sucede como se do mesmo modo
em que é apresentado o sensível seja também apresentado o supra-sensível, mas,
nesta relação de oposição sensível / supra-sensível o segundo termo,
hierarquicamente superior, determina o primeiro. O faz ser enquanto tal. (Todo
criado deve ter uma causa: seu criador; então: é porque existe o Criador que
existe o criado). É justamente o pretendido estatuto cognitivo desta operação
que Kant desorganiza no texto crítico. E não somente ali, lembremos também, por
exemplo, no texto pré-crítico de 1763[160]
o questionamento da prova ontológica. Em ambos os casos se procura uma
desarticulação da operação que ordena o texto.
Mas, para complicar ainda mais as coisas,
no segundo raciocínio apresenta-se um novo fenômeno, trata-se da antitética.
Esta “antitética” é caracterizada por Kant como um “escândalo” da
filosofia, como a “eutanásia” da
razão (CRP A 407/ B 434). A
razão, aqui, entra em conflito consigo mesma. Neste caso “a razão não produz
propriamente conceito algum, apenas liberta o conceito do entendimento das
limitações inevitáveis da experiência possível, e tenta alargá-lo para além dos
limites do empírico” (CRP A 409/ B 435). Isto acontece de acordo com o
mesmo princípio que já explicamos, porém, desta vez aplicado às categorias do
entendimento. “A razão, para um condicionado dado, exige a absoluta totalidade
da parte das condições, fazendo da
síntese empírica uma integridade absoluta, e progredindo essa síntese
até ao incondicionado (que nunca é atingido na experiência, mas apenas na
idéia). A razão exige-o em virtude do seguinte princípio: se é dado o
condicionado, é igualmente dada toda a soma das condições e, por conseguinte,
também o absolutamente incondicionado, mediante o qual era possível aquele
condicionado” (CRP A 411/ B 438). As idéias cosmológicas
ocupam-se da totalidade da síntese regressiva e procedem in
antecedentia e é por isso que também são problemas necessários da razão (CRP
A 411/ B438). Essa regressão, do condicionado para a condição, esse alargamento
para o transcendental, acontece com aquelas categorias que permitem gerar a
série regressiva, a saber: quantidade, realidade, causalidade e necessidade.
Há, então, quatro idéias cosmológicas:
1) a partir da síntese regressiva da
quantidade surge a idéia baseada na integridade absoluta da composição do total
dado de todos os fenômenos,
2) a partir da síntese regressiva da
realidade surge a idéia baseada na integridade absoluta da divisão de um todo
dado no fenômeno,
3) a partir da síntese regressiva da
causalidade surge a idéia baseada na integridade absoluta da gênese de um
fenômeno em geral,
4) a partir da síntese regressiva da
necessidade surge a idéia baseada na integridade absoluta da dependência da
existência do mutável no fenômeno.
A idéia de integridade absoluta reside na
razão independentemente da possibilidade ou impossibilidade de lhe ligar
conceitos empíricos adequados (CRP A 417/ B 444) na experiência. Esta
também é uma operação que depende somente do funcionamento da razão, sem
qualquer necessidade de se ligar com fenômenos da experiência. Muito pelo
contrário, é essa sua impossibilidade. O procedimento é o seguinte: dados os
fenômenos a razão exige a integridade absoluta das condições da sua
possibilidade, na medida em que estas constituem uma série e, portanto, exige
uma síntese absolutamente completa (CRP
A 415-6/ B443). A operação da razão propõe-se estender a série até sua
completude absoluta, achando o incondicionado. O incondicionado procurado pela
razão pode conceber-se de duas maneiras: ou como consistindo na série total,
neste caso a regressão é infinita; ou o incondicionado absoluto é uma parte
da série a que os restantes membros estão subordinados. No primeiro caso a
série é virtualmente infinita, no segundo há um primeiro termo, que:
1) em relação ao tempo se chama início do
mundo, em relação ao espaço, limite do mundo;
2) em relação às partes de um todo dado em
seus limites, simples;
3) em relação às causas, espontaneidade
absoluta (liberdade);
4) em relação à existência de coisas
mutáveis, necessidade natural absoluta (CRP A417/ B445).
Sobre cada um destes casos, de problemas
da cosmologia clássica, a razão entra em conflito consigo mesma. Um jogo de
argumentações contrapostas surge a partir do próprio funcionamento da razão.
Pode se fornecer, deste modo, provas afirmativas ou negativas do início do
mundo, da simplicidade da matéria, da questão da liberdade, ou mesmo, da
existência de Deus. Todas elas terão apenas o valor da contra-argumentação.
Embora nenhuma se possa afirmar em si mesma.
Muitas dessas demonstrações foram
tratadas, em maior ou menor medida, como casos particulares nos trabalhos
pré-críticos. O resultado desses ensaios manifestou o surgimento do problema
semântico na formulação de tais questões. Mas só o tratamento crítico vai
retomar essa problemática a partir da sua própria raiz. Quer dizer, a partir da
operação que as torna possíveis.
Com efeito, o problema da razão aqui
exposto reside em que ao nos projetarmos para além da experiência não temos um
fundamento a partir do qual possamos afirmar com certeza alguma coisa acerca de
tais questões. Diz Kant: “Como, porém, até agora todas as tentativas para dar
resposta a essas interrogações naturais, como seja, por exemplo, se o mundo tem
um começo ou existe desde a eternidade, etc..., sempre depararam com
contradições inevitáveis, não podemos dar-nos por satisfeitos com a simples
disposição natural da razão pura para a metafísica (...); pelo contrário, tem
que ser possível, no que se lhe refere, atingir uma certeza: a do conhecimento
ou ignorância dos objetos, por outras palavras, uma decisão quanto aos objetos
das suas interrogações ou quanto à capacidade ou incapacidade da razão para
formular juízos que se lhes vinculem; conseqüentemente, para estender com
confiança a nossa razão ou para lhe pôr limites seguros e determinados” (CRP
B 22). Assim sendo, de um lado temos uma disposição natural, uma “naturalidade”
para os problemas necessários da razão, produto das operações de funcionamento
do próprio aparelho cognitivo; e do outro, a ilusão inevitável, como o
resultado de outra operação, que surge quando tentamos responder a tais
problemas. Isto coloca a razão como aparelho “problematizante”, mas também como
limitado na sua capacidade de (problematizar) funcionamento de acordo com
determinados requisitos, do contrário a problematização da razão deixa de ser
tal para tornar-se resposta dogmática.
A metafísica dogmática esquece (o caráter
finito da nossa razão[161])
qualquer restrição, pretendendo alcançar com o conhecimento ainda aquilo que é inatingível na experiência. Com
efeito, as próprias restrições do nosso conhecimento permitem observar que as
“ilusões transcendentais” não são o produto de um simples “erro” técnico, ou de
medição, que poderia ser solucionado com um ajuste de observação na
experiência. Isto é, como se a pergunta pela origem do Universo ou a divisão da
matéria pudesse ser respondida objetivamente apenas com o melhoramento do nosso
instrumental de pesquisa. Neste sentido, na metafísica (como disciplina
cognitiva) também não se adiantaria a resposta que deveria ser confirmada ou
refutada pelo procedimento científico. Tal como queriam alguns epistemólogos
deste século. Quer dizer, a metafísica também não é um acervo de hipóteses a
testar.
Kant, na sua empresa crítica, nos mostra
que o modo de abordagem dos problemas necessários da razão oa modo da
metafísica tradicional, carece da certeza da ciência. Embora queira imitá-la,
só consegue, de fato, confundir seu objeto, o modo de conhecimento e seus
limites[162].
Pareceria ser devido aos êxitos alcançados pela razão na matemática que os
metafísicos acharam-se estimulados por essa tentativa de “imitar a ciência” e
irem além da experiência. A confiança desmesurada da razão em si mesma teria
dado o impulso para o “salto metafísico”. Uma interpretação errada da
matemática pelos metafísicos, somada ao uso irrestrito da lógica formal,
poderia ter oferecido a ilusão de rigor na argumentação dogmática[163].
É assim como a metafísica, no seu afã de conhecer “objetivamente” seus
“objetos”, afirma suas proposições sem nenhuma base real. Tal como explicamos
anteriormente, ao tratarmos dos textos pré-críticos, esse procedimento foi
questionado em cada caso. Agora, o labor crítico consiste em compreender o
problema na sua totalidade. E é unicamente deste modo que a ilusão da razão
mostrará o infundado da formulação dogmática.
Na Dialética Transcendental,
especialmente, mas também em muitos outros textos, se coloca em questão o
sentido da enunciação através de seu modo de operar. Não se ataca esta ou
aquela resposta, senão que se aponta para a operação que possibilita essa ou
qualquer resposta.
É assim que aquele modo de abordagem da
metafísica tradicional, questionado por Kant, gera sua imagem oposta como em um
espelho. Isto é, a confiança dogmática gera a revolta cética, e é desta maneira
que dois estados da razão dão inicio à sua história. Para desvelar isso é
preciso voltar ao ponto de partida[164].
2.5- A história da metafísica.
Repetimos mais uma vez a pergunta : que
quer a razão com a metafísica?[165].
Qual é, aqui, seu fim? Qual é o interesse da razão com essa “disposição”? Trata-se de uma pergunta extensa e ambiciosa
(como estamos tendo oportunidade de observar); para respondê-la rigorosamente
deveríamos ir além dos limites deste trabalho. Não obstante, será necessário
dar apenas, com relação ao nosso objetivo, uma primeira aproximação, a saber: a
metafísica é o passo do sensível para o supra-sensível[166].
Neste sentido Kant nos declara que a metafísica, até agora, tem sido um “mar
sem ribeiras”, um “oceano” no qual não se têm limites nem horizontes[167]
(CRP A 235-6/ B294-5). Mas essa situação não é fruto do acaso. As
contradições da razão consigo mesma não são, como vimos, um simples engano
deste ou daquele metafísico em particular. O procedimento tem um fundamento que
está na base de toda e qualquer especulação dogmática. Trata-se de um modo de
operar da razão para estender o conhecimento à margem da experiência.
Os metafísicos, tentando atingir o
supra-sensível, partem de princípios ontológicos (sistema dos conceitos e
princípios do entendimento), só válidos para objetos da experiência, e os
estendem a objetos transcendentais[168].
O resultado desta operação não pode ser confirmada nem refutada por experiência
alguma. A possibilidade de verdade ou falsidade das suas proposições não têm
qualquer “pedra de toque”, o que permite que teses contrárias sejam colocadas
com igual autoridade para tentar a resolução de tais problemas. Em oposição a
estes emergem os céticos, que, observando a falta de fundamentação na
proposta de resolução dada, rejeitam os próprios problemas apelando para uma
ignorância necessária. A sentença é clara: “nada podemos saber sobre tais
questões”. A conclusão é precisa: “limitemo-nos a um habitus”.
O dogmatismo e o ceticismo constituem dois
momentos da razão, poder-se-ia dizer que dinamizam sua própria história. Com a
composição de um texto em sentido alegórico Kant percorre, no prefácio da
edição de 1781 da CRP, a intrincada história da metafísica até chegar ao
seu diagnóstico final. “Houve um tempo -nos conta Kant- em que esta ciência (a
metafísica) era chamada rainha de todas as outras (...). Inicialmente, sob a
hegemonia dos dogmáticos, seu poder era despótico. Porém, como a legislação
ainda trazia consigo o vestígio da antiga barbárie, pouco a pouco, devido a
guerras intestinas, caiu essa metafísica em completa anarquia e os céticos,
espécie de nômades, que têm repugnância em se estabelecer definitivamente em
uma terra, rompiam, de tempos a tempos, a ordem social. Como, felizmente, eram
pouco numerosos, não puderam impedir que seus adversários, os dogmáticos,
embora sem concordarem em um plano prévio, tentassem repetidamente restaurar a
ordem destruída” (CRP A VIII-IX). O relato é quase comovedor e não é
pouco comum em Kant este modo de se referir à origem “histórica” dos fatos.
Nesta apresentação das conquistas e dos infortúnios da rainha das ciências ele
não rejeita o estilo literário para falar dos tesouros mais importantes, tal
vez o mais digno, da humanidade, a saber: a metafísica. Muito pelo contrario,
recorre até aos versos de Ovídio para ilustrar o acontecimento[169].
Esta estratégia tem um objetivo preciso. Não se trata simplesmente de poupar
esforços na redação de uma história da filosofia mais rigorosa e trabalhosa,
longe disso, o que Kant tenta ilustrar por meio desta ficção é o aspecto
relevante da situação da razão quanto aos seus problemas necessários.
A ficção literária tem a força de desenhar um acontecimento que não é meramente
empírico. Em História Filosofante da Filosofia Kant nos diz, em relação
a este tópico, que “uma representação histórica da filosofia relata pois como e
em que ordem tem-se filosofado até agora. Mas o filosofar é um desenvolvimento
paulatino da razão humana e esta não pode ter progredido pelo caminho empírico
nem mesmo ter começado por ele e, além diso, por meros conceitos. Deve-se ter
dado um estado de necessidade da razão (seja teórico ou prático) que
tenha obrigado a se elevar desde seus juízos sobre as coisas aos fundamentos e
ainda até os primeiros princípios”[170].
Esta reflexão sobre a história da filosofia nos sugere que é preciso pensar uma
história que não comprometa toda e qualquer reflexão filosófica em uma
continuidade empírica. As estratégias discursivas da História se caracterizam
por conformar séries de elementos que conduzem a alguma parte, dessa maneira
uma teleologia naturalis governa
os fatos empíricos desde sempre, afogando qualquer diferença; para se deslocar
deste gesto instalador é preciso pensar em estados de necessidade da razão como
acontecimentos, é preciso pensar em uma história filosofante. Em uma tentativa
similar Kant ensaia uma variante. No começo, um “tempo fabulado” abre a
possibilidade originária da metafísica, que não sendo apenas um fato
cronologicamente determinado é, por isso, colocado como “ficcional”[171],
enquanto que a entrada em cena das personagens dinamiza seu jogo, desencadeando
o atual estado de coisas. Aqui Kant assinala dois momentos, o dogmatismo e o
ceticismo como fundamentais para o desenvolvimento alcançado pela metafísica. É
assim como a “rainha de todas as ciências” encontra-se em uma encruzilhada: “A
razão humana, em um determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o
singular destino de se ver atormentada por questões que não pode evitar, pois
lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta
por ultrapassarem totalmente suas possibilidades” (CRP A VII). A razão, como razão “problematizante”,
propõe-se problemas que a metafísica, como ciência teórica, não pode resolver,
ou tenta de modo dogmático. Quer dizer, mediante afirmações sem nenhum
fundamento objetivo, mas também não pode rejeitar, porque pertencem à natureza
do seu funcionamento. É este então o problema fundamental no qual encontra-se a
metafísica ao procurar as condições últimas eleva-se, com esses princípios,
além da experiência até perder qualquer “pedra de toque” que permita decidir
sua validade, ou seja, até perder a possibilidade de toda significação
objetiva.
Esta situação gera dois pólos opostos, os
dogmáticos afirmam o que os céticos rejeitam. Este é o modo como os dogmáticos
e os céticos alternam-se entre o despotismo e a anarquia sem nunca dar com o
verdadeiro problema, a saber, o conhecimento da razão e a constituição de um
tribunal que lhe assegure as legítimas pretensões (CRP A XI). A situação
da metafísica pode seguir alternando-se indefinidamente entre uma ilimitada
confiança em si mesma e o completo ceticismo. É preciso um terceiro momento, o
crítico, que devolva à razão sua confiança sem cair em contradição e em
obscuridades[172]
.
A dicotomia entre dogmatismo e ceticismo é
explicada por Kant a partir da concepção da história da metafísica em relação
ao método (CRP A 855-856/ B883-884), mas, em certo sentido, poderíamos
dizer também que coincide com a história intelectual do próprio Kant. Um duplo
jogo se apresenta neste sentido, a saber: a primeira face explicada nos Progressos...(1791)[173],
a segunda nas cartas em que confessa ter “acordado do sonho dogmático...”.
Com efeito, podemos constatar, nos textos
kantianos, que se apresenta uma interpretação sistemática dos três estádios da
razão (dogmático, cético e crítico), que pode ser observado na própria produção
filosófica do ocidente. Contudo, também é possível aplicar essa mesma
interpretação à própria produção de Kant. Esta última tarefa foi feita por
muitos comentadores até ao abuso, entretanto a concepção da “história” em
sentido kantiano foi muito pouco trabalhada, quando não foi diretamente deixada
no esquecimento total.
2.6- A tarefa crítica
Perante à mencionada dicotomia (ceticismo versus
dogmatismo) apresenta-se, como terceiro momento, a tarefa crítica. O
estatuto diferenciado desta última é devido ao que já não será, simplesmente, a
reiteração da operação de se colocar em um dos lados da oposição e intentar uma
resolução a um problema metafísico particular com recursos mais sofisticados,
construindo assim uma nova metafísica, ou pelo contrário, rejeitando-a
após a generalização de um ensaio cético sobre este ou aquele problema.
Para a nova filosofia transcendental a sistematização do tratamento dos
problemas deve ser rigorosa, e Kant nisto é explícito: “...atrevo-me a afirmar
não haver um só problema metafísico, que não se resolva aqui ou, pelo menos,
não encontre neste lugar a chave da solução” (CRP A XIII). É preciso
destacar que o termo "sistematização" (tantas vezes reiterado no
texto kantiano) deve entender-se em relação com a questão da "chave da
solução" dos problemas da metafísica. Kant não se propõe enumerar a lista
completa de todos os problemas e dar uma solução a cada um em particular, senão
dar a "chave" da solução, ou seja, indagar a condição da sua
solubilidade de acordo com uma formulação adequada. A tarefa crítica de
desarticulação de operações, através da análise das significações, é essa
chave. E assim, “... a filosofia transcendental, entre todo o conhecimento
especulativo, tem a particularidade de nenhuma questão respeitante a um objeto
dado à razão pura, ser insolúvel para essa mesma razão humana e nenhum pretexto
de ignorância inevitável e de insondável profundeza do problema pode
desligar-nos da obrigação de lhe darmos plena e cabal resposta” (CRP A 477/ B 505). Com relação a
esta citação, podemos ler em Loparic (1988)[174]
como se desenvolve a questão sobre a ignorância da razão especulativa e
o método cético. É importante destacar a demonstração que se faz (no citado
artigo) da radicalização de Kant no uso do mencionado método para poder, deste
modo, formular e resolver os problemas da metafísica. Segundo esta perspectiva
e de acordo com Kant, o método cético (totalmente diferente do ceticismo)
é próprio da filosofia transcendental. Por meio dele coloca-se a questão de
submeter a crítica à razão mesma, de disciplinar seu raciocínio. Trata-se “de
assistir a um conflito de afirmações, ou antes, de provocar, não para se
pronunciar, no fim, a favor de uma ou outra parte, mas para investigar se o
objeto da disputa não será mera ilusão, que qualquer delas persegue e com a
qual nada ganharia, mesmo se não encontrasse resistência, tal modo de proceder,
digo, é o que se pode denominar método cético ” (CRP A 423-4/ B
451). O método cético, na tarefa crítica, serve para dinamizar o labor da razão
com vistas a indagar os limites das nossas operações, o contrário do ceticismo.
Conseqüentemente, levando em conta este
procedimento, a crítica tentará investigar em que reside a possibilidade
mesma da dicotomia (dogmatismo-ceticismo), através da pesquisa sobre o
fundamento dos problemas necessários da razão, e assim, procurar suas
condições de possibilidade de resolução ou determinar sua insolubilidade.
Para isso é necessário estudar a capacidade da razão humana de resolver
problemas, assinalar o infundado das afirmações e procurar um fundamento a
partir do qual possa decidir sobre tais problemas. Essa é a tarefa kantiana:
“uma crítica da faculdade da razão em geral, com respeito a todos os
conhecimentos que pode aspirar, independentemente de toda experiência,
portanto, a solução do problema da possibilidade ou impossibilidade de uma
metafísica em geral e a determinação tanto das suas fontes como da sua extensão
e limites” (CRP A XII).
Como é claro, esta citação explicita a
necessidade de pesquisar as condições de possibilidade da razão para responder
aos seus problemas inevitáveis, problemas necessários, e não apenas
arbitrários. É verdade que na parte Analítica Kant pesquisa os elementos
necessários para formular problemas no âmbito do conhecimento teórico, mas o
alvo final é a estrutura dos problemas da metafísica e mais precisamente a
própria operação metafísica como problema. Nesse sentido, a preocupação de Kant
pelas ciências terá um valor destacável que não se deve desconsiderar, mas
também não se deve mal-interpretar privilegiando uma das fases do trabalho. É
importante lembrar aqui uma citação de Gerard Lebrun (1970) contra a leitura
epistemologista da CRP que diz: “A leitura de Hume não animou Kant a
fazer-se o servidor da física-matemática: ela apenas lhe sugeriu que modo de
investigação seria capaz de decidir quanto ao valor do saber metafísico, depois
que ele constatou primeiro, que este consistia unicamente de proposições
sintéticas, segundo, a anomalia que representa essa ciência”[175].
A preocupação kantiana não fica, apenas, no âmbito do fenomenalismo e muito
menos ainda na justificação metafísica da ciência da época. Fato que também
Heidegger nos adverte ao analisar a volta de Kant no século XIX no meio da
época do positivismo[176].
O que está em questão é um exame da razão no seu funcionamento, e é neste
quadro mais abrangente que as ciências ocupam seu lugar. Um exame da razão
nesse sentido permite-nos:
a) distinguir entre juízos analíticos e
sintéticos em geral ( tópico que não foi atendido pela metafísica dogmática);
b) estabelecer a pergunta sobre “como são possíveis os juízos
sintéticos a priori?” (apenas anunciada pela dúvida humeana); e
c) desenvolver o problema acerca de como é
possível um conhecimento a priori a partir de juízos sintéticos[177].
Este último tópico torna possível decidir
até onde podemos chegar com o conhecimento teórico objetivo. Deste modo é útil
uma pesquisa sobre a formulação de problemas nas ciências matemáticas. Não para
explicitar uma epistemologia que determine os critérios práticos da verdade das
proposições, mas sim para saber quais são as condições de possibilidade de
verdade ou falsidade de uma proposição teórica e objetivamente bem formulada, e
decidir até onde é possível avançar nesse âmbito de problemas.
A CRP, assim entendida, é uma teoria
da solubilidade dos problemas necessários
da razão, e é em função disso que Kant tenta determinar o poder de
solucionar problemas que a razão tem. É por meio deste poder que é pertinente
caracterizar a razão como um dispositivo respondedor de perguntas[178].
O princípio de funcionamento de dito dispositivo é: “Dado qualquer
questionamento prescrito pela natureza da razão podemos responder ou provar que
não tem solução possível”. Assim, dado um problema da razão tenho de
encontrar a solução ou provar sua insolubilidade.
Para poder chegar a elaborar essa questão
Kant pretende identificar, em princípio, quais seriam as condições de
possibilidade dos problemas solúveis. Por esse motivo faz uma pesquisa
sobre a eficácia da nossa razão, sua estrutura, alcance e limite. Esta é a
única maneira -segundo Kant- de sair do fracasso da metafísica tradicional que,
quando a razão levanta questões
inevitáveis, na procura da sua solução só leva a afirmações sem sentido.
Isto acontece por não ter uma semântica adequada que ofereça uma teoria da
referência e da verdade dos conceitos e das proposições usadas na formulação
dos problemas. A crítica kantiana tenta evitar esses erros por meio de uma
semântica construtivista.
Que posso eu conhecer? É a pergunta
kantiana que está em jogo.
A revolução da matemática e da física é o
exemplo do que conseguiram as ciências ao transformarem seu método. Por tal
razão, é pertinente, “neste ponto, tentar imitá-las, tanto quanto o permite a
analogia, como conhecimentos racionais com a metafísica. Até hoje se admitia
que o nosso conhecimento se devia
regular pelos objetos; (...) Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se
resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se
deveriam regular pelo nosso conhecimento (...). Trata-se aqui de uma semelhança
com a primeira idéia de Copérnico”(CRP B XVI).
As leituras “epistemologistas” da Crítica
da Razão Pura interpretaram este enunciado como proclamando uma extensão do
projeto físico-matemático, descuidando todo o que neste trabalho se considera
essencial do empreendimento crítico. Por outra parte, as leituras
"metafísicas" (fundamentalmente escolares) observam neste “giro
copernicano” a maior radicalização do subjetivismo, tentando encontrar no idealismo
transcendental o antigo idealismo (que Kant se encarrega de refutar
em vários de seus textos). Desta maneira, conseguem ver uma suposta
”incoerência” entre os problemas da dialética e os princípios da analítica[179]
argumentando que estes últimos seriam uma verdadeira contribuição para o
esclarecimento da construção da experiência, entretanto a dialética seria
apenas uma regressão metafísica. Esta operação de interpretação é pelo menos
estranha, sobretudo se levarmos em conta que são aqueles os problemas que Kant
quer resolver, e não, como às vezes se sugere, fazer uma proposta
epistemológica. A tarefa da dialética transcendental, diz Kant, é “investigar
se o princípio, segundo o qual a série das condições (na síntese dos fenômenos
ou também do pensamento das coisas em geral) se estende até ao incondicionado,
tem ou não valor objetivo, e quais são as conseqüências daí decorrentes para o
uso empírico do entendimento. Investigar, pois, se esta necessidade da razão,
devido a um mal-entendido, foi considerada um princípio transcendental da razão
pura, postulando com excessiva precipitação, essa integridade absoluta da série
das condições nos próprios objetos e, nesse caso, perguntar quais são os
mal-entendidos e as ilusões que podem insinuar-se nos raciocínios cuja premissa maior é extraída da razão pura
(premissa que talvez seja mais uma petição que um postulado) e que se elevam da
experiência a essas condições...” (CRP A 308-9/ B 365-6). A menos que
demonstremos que Kant tenha caído na mesma ilusão que ele próprio denuncia, não
tem como haver uma incoerência na passagem da analítica para a dialética.
Quando compreendemos que a tentativa de Kant não é fornecer mais uma prova (com
critérios epistemológicos mais o menos certos enunciados na analítica) para
ociosos problemas metafísicos (desenhados na dialética), então estamos em
condições de pensar a “revolução copernicana” relacionada com a possibilidade
mesma da capacidade cognitiva. Considero que a mudança “copernicana” de
focalização deve ver-se a partir da pergunta: “Até que ponto conhecemos? Qual é
o limite da nossa capacidade?”. O que está em jogo nesta questão é uma pergunta
pelo conhecimento ontológico, mais do que pelo conhecimento Ôntico, tal
como sugere Heidegger[180].
E não apenas, como quer Strawson, a continuação do subjetivismo que o precedia[181].
A
investigação da nossa capacidade cognitiva, como Kant a empreende, nos
permitirá atingir o limite que, de ser ultrapassado, só nos forneceria um
conhecimento ilusório: “... toda aparência ilusória (Schein) consiste em
que o fundamento subjetivo do juízo é tido por objetivo, um autoconhecimento da
razão pura em seu uso transcendente será o único meio contra os extravios nos
quais a razão incorre quando interpreta mal
sua missão... “. Portanto temos duas tarefas, não devemos confundir os
campos de sentido passando indistintamente do dado ao não-dado, e devemos
cuidar adequadamente das operações da razão para não misturar princípios
objetivos e subjetivos que nos conduzam à mera ilusão. Tal como Kant afirma,
continuando com a citação anterior, “... esta inevitável aparência (Schein)
ilusória não pode ser contida dentro de limites mediante investigações
objetivas e dogmáticas das coisas, senão só mediante uma investigação subjetiva
da razão mesma como fonte das idéias”[182].
Com efeito, é o modo de conhecer o que está em jogo. O giro copernicano tenta
pôr a atenção nesse “modo” de conhecer, suas condições, em oposição à
antiga concepção do realismo transcendental que coloca a atenção nas
coisas em si mesmas, a partir da organização de uma ontologia. A Tarefa
desta crítica da razão especulativa consiste neste ensaio de alterar o
método que a metafísica até agora seguiu, operando assim nela uma revolução
completa, segundo o exemplo análogo ao dos geômetras e dos físicos. Análogo com
tudo o que acarreta de diferente em uma relação de semelhança. É por isso que a
Crítica da Razão Pura desenvolve um tratado acerca do método de
solução de problemas e não um sistema metafísico. E antes ainda é um projeto de desarticulação da operação
metafísica.
2.7- Conclusão
O período pré-crítico permitiu indicar as
falhas da metafísica dogmática contidas na sua tentativa de formular e resolver
problemas, como também enunciar a tarefa a seguir depois de explicitado o
fracasso da tradição. A reflexão sobre distintos problemas particulares no
interior da metafísica (desenvolvidos nos textos pré-críticos) foi substituída por
uma reflexão sobre a metafísica enquanto tal (tematizada no texto crítico).
Este deslocamento fez com que a metafísica seja reconsiderada, caracterizando seus problemas como problemas
surgidos necessariamente do próprio funcionamento da razão, e sua tentativa de
resolução como uma ilusão dessa mesma razão. Indica-se assim o duplo processo,
a dupla operação, por um lado a operação que coloca o problema, por outro lado
a operação que tenta resolvê-lo. O surgimento dos problemas necessários da
razão é desenvolvido apelando para a teoria do silogismo, mostrando como um
princípio de funcionamento lógico organiza os dados do nosso conhecimento. Por
outra lado, a ilusão é explicada através do esclarecimento da interpretação
errada que se faz dos raciocínios e do princípio de funcionamento lógico. Deste
modo se confunde a necessidade lógica da conclusão de um raciocínio com a
necessidade real da existência de um objeto, como também o funcionamento lógico
com a realidade sensível dos objetos da experiência. Tanto a necessidade dos
problemas como a ilusão da sua resolução dogmática formam parte do próprio
funcionamento operativo do aparelho cognitivo.
Ao desvelar o funcionamento do aparelho
cognitivo em relação com os problemas da metafísica, também compreendemos a
história de suas resoluções e rejeições. Neste sentido “metafísica” e
“ceticismo” compartilham um chão comum constituindo uma falsa oposição. Com
efeito, em ambos os casos trata-se de um realismo transcendental que
ignora a questão semântica que deve supor para formular sua proposta. Porém, a
tarefa crítica (enquanto idealismo transcendental) será explicitar a
questão semântica através de uma pesquisa sobre a possibilidade de formulação e
resolução de problemas.
A partir daqui é possível concluir do
presente texto que o deslocamento do pensamento kantiano dos textos
pré-críticos para a tarefa crítica está determinada pela sistematização dos
problemas. Tal sistematização não consiste em criar um novo sistema com o velho
estilo dogmático, mas sim no modo em como são tratados os problemas. Passa-se
das tentativas particulares de tratamento de problemas da metafísica à
colocação da mesma como problema e se perguntar pela sua origem, modo e objeto
de conhecimento. Essa passagem faz da problemática da significação o núcleo
central da tarefa crítica. Enquanto que o dogmatismo e o ceticismo não
conseguem uma formulação adequada dos problemas, a crítica tentara procurar as
condições adequadas de formulação.
Conclusão Final
De acordo com o desenvolvido neste ensaio
estamos em condições de enunciar algumas conclusões gerais sobre o labor de
Kant. Temos visto como a problemática da significação se apresenta através das
distintas questões colocadas nos textos do período pré-crítico. A significação
dos conceitos e das proposições emerge como obstáculo na formulação e resolução
de problemas. Isto faz com que não seja possível dar um tratamento adequado às
questões da metafísica. Assim sendo, Kant abandona a empresa de elaborar uma boa
metafísica para pesquisar as condições de possibilidade dessa disciplina. Desse
modo passa da tentativa de resolver um a um os problemas metafísicos à
investigação da possibilidade mesma de resolução dos problemas. O avanço das
ciências (matemáticas e física) e a certeza dos seus conhecimentos, servem a
Kant para procurar as condições de possibilidade das proposições teórica e
objetivamente válidas. Com isso Kant empreende uma pesquisa sobre os limites da
nossa razão, examina as operações que o aparelho cognitivo executa para que um
problema possa ser colocado e resolvido, e aborda especialmente as operações da
própria metafísica. É deste modo como a questão da formulação e resolução de
problemas, tratada desde cedo, leva a uma desarticulação, uma desmontagem da
operação metafísica. A desarticulação dos raciocínios permite encontrar um
tratamento adequado daqueles problemas.
Assim sendo, os problemas da metafísica
especial, que Kant queria resolver nos primeiros textos, revelam-se insolúveis
na ordem do conhecimento teórico. Este último tem o limite da referência
possível, e os "objetos" metafísicos são objetos sem referência.
Sobre a base da referência ao objeto se indica a operação metafísica no “salto”
para o supra-sensível.
De acordo com a “história filosofante” da
filosofia os problemas da razão foram tratados alternadamente segundo o
dogmatismo metafísico ou segundo o ceticismo. Poderíamos dizer que os primeiros
tentaram resolver ditos problemas colocando os princípios antes que as
perguntas, enquanto que os segundos ficaram nas perguntas sem podê-las ordenar.
A filosofia crítica tentou desenvolver a própria possibilidade dos problemas,
isto é, seu sentido e seu campo de formulação, e deste modo estabelecer uma
teoria dos problemas.
Assim sendo, podemos dizer que a pesquisa
sobre os limites do conhecimento teórico coloca a razão como problematizante.
Deste modo poderíamos formular uma teoria dos problemas ainda mais extensa que
a dos teoricamente solúveis, e uma teoria da significação além da elaborada no
esquematismo transcendental. Essa teoria da significação deve ser pesquisada
não somente a partir da relação entere conceito e objetos (tal como é
desenvolvida na razão especulativa), ou fatos (tal como pode ser desenvolvida a
partir da razão prática) mas também em relação ao próprio sujeito. Quer dizer,
não só é possível formular teorias da significação que estejam na base dos
problemas elaborados a partir de
proposições determinantes, senão que também podemos pesquisar a semântica da
própria reflexão. O juízo estético é o exemplo mais escabroso da semântica da
reflexão. Isto tudo é dito para reafirmar, mais uma vez, que as proposições
cognitivas têm um campo de sentido determinado e delimitado segundo um
procedimento de doação de significação aos conceitos, qualquer proposição além
destes procedimentos carece de sentido objetivo. Contudo, isso não significa
que careçam de qualquer sentido. Cada região de problemas deve poder ter uma
teoria da significação que forneça sentido às suas proposições.
A interpretação dos textos do primeiro
período da obra kantiana nos permite reconstruir um fio condutor que
esclarecerá o texto crítico. A metafísica como problemática no interior do
texto kantiano é também ali explicitada à luz da questão semântica. Isto permite
expor a desarticulação crítica do projeto da metafísica e a finitude de nosso
alcance.
Pós-Texto
Aquilo que insiste no texto, (no epígrafe, no pré-texto, no desenvolvimento
de nossa pesquisa) é a possibilidade da pergunta, a possibilidade enquanto tal
da pergunta e a possibilidade da pergunta enquanto tal. E insiste em dois
sentidos, como aquilo que é tratado, tematizado, sistematizado, e como
aquilo que atravessa (o sistema) a pesquisa. A questão não é apenas dar
a resposta correta, é, antes, saber se tem uma resposta possível, o que nos
leva a procurar não apenas critérios de respostas, e se saber se a pergunta,
ela mesma, é possível como pergunta. Como é que uma pergunta surge? Como é que
a pergunta aparece, em que horizonte, a partir de quais relações? É isso o que
insiste no texto, uma pergunta pela pergunta. A questão que aqui está em jogo é
anterior ao critério e ao cálculo. É aquilo que o critério e o cálculo precisam
para ser executados, aquilo do qual o critério e o cálculo não podem dar conta.
Diante de uma pergunta podemos estar
motivados a responder, dar nossa opinião, calcular o resultado ou nos perguntar
pelo sentido da pergunta. Aí, já não estaríamos mais diante da pergunta, daríamos
a volta em torno dela. Esse “dar a volta em torno” é um posicionamento, mas de
um outro tipo que aquele da resposta. É um posicionamento que desloca à
pergunta pela pergunta, e já não precisa dizer “esta pergunta está mal
formulada”, com a intenção de dar uma boa resposta. A pergunta pela pergunta
tenta, antes de qualquer resposta, se diferenciar seja do “respondedor
compulsivo” seja daquele que diz “essa pergunta não me interessa”, em ambos os
gestos opera o mesmo impensado...
_E Deus...??? Você não respondeu à
pergunta por Deus.
_Quem poderia apenas com a limguagem
contornar uma questão dessas... ? Será que é possível entender, apenas sob as
condições da linguagem, aquelas palavras ... ?
Freund es ist auch genug. Im fall du meher willt lesen,
So geh und selbst werde die Schirft und selbst das Wesen.
( Angelus Silesius, Cherubinischer Wandersmann)
APÊNDICE
Lista de textos pré-críticos
1746 Ideias sobre o verdadeiro modo de calcular as
forças vivas....
1754 Investigação sobre a pergunta, acerca de se a
terra no seu movimento de rotação tem experimentado alguma mudança.
1754 A
pergunta acerca de se a terra envelhece, considerada desde o ponto de vista
físico.
1755 História
natural geral e teoria do céu....
1755 Sobre o
fogo...
1755 Nova
Dilucidatio...
1756 Sobre as
causas dos tremores com ocasião da desgraça que tem afetado aos países do
ocidente de Europa a fins do ano passado.
1756 História
e descrição natural do notável acontecimento do terremoto que sacudiu grande
parte da terra a fins de 1755.
1756 Novas
considerações sobre os tremores registrados desde algum tempo.
1756 Monadologia
física...
1756 Novas
anotações para explicar a teoria dos ventos.
1757 Esboço e
anuncio de um curso de geografia física.....
1758 Nova
concepção do movimento e do repouso.....
1759 Ensaio
sobre algumas considerações sobre o otimismo.
1760 Pensamentos
em relação à prematura morte do Senhor Johann Friedrich von Funk.
1762 A falsa
sutileza das quatro figuras do silogismo.
1763 O único
fundamento possível para a demonstração da existência de Deus.
1763 Ensaio
sobre o conceito de magnitudes negativas e sua introdução na filosofia.
1764 Observações
sobre o sentimento do belo e do sublime.
1764 Ensaio
sobre as doenças da cabeça.
1764 Recensão
do escrito de Silberschlag: Teoria do meteorito aparecido o 23 de julho de
1762.
1764 Investigação
sobre a nitidez dos princípios da teologia natural e da moral.
1765 Noticia
da disposição dos seus cursos para o semestre de inverno de 1765-6.
1766 Sonhos
de um visionário, explicados através os sonhos da metafísica.
1768 Do
primeiro fundamento das diferentes regiões no espaço.
1770 Dissertação
de 70. Sobre a forma e os princípios do mundo sensível e inteligível.
1771 Recensão
do escrito de Moscatis: Da diferença corporal essencial entre a estrutura do
animal e o homem.
1775 Sobre as
diferentes raças dos homens.
1776-7 Ensaios
sobre filantropia.
A edição da Academia de Berlim contém (nos seus
volumes I e II) os escritos acima enumerados, como também as cartas daqueles anos
(volume X cartas 1747-1788). Outros textos de interesse para o estudo deste
período são as diferentes versões da Lógica (volume XXIV.1 e .2), e da
metafísica (volume XXVII e XXVIII).
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