Editora Universitária Edunioeste – Cascavél-Pr.    ISBN 85-86571-19-9  ANO 1998

AUTOR: Daniel Omar Perez

 

TÍTULO:       

Kant Pré-crítico. “A desventura filosófica da pergunta ....”.

(Breve introdução a alguns textos pré-críticos kantianos, onde se apresentam questões de significação na formulação e resolução de problemas metafísicos, e a passagem para o tratamento crítico).

 

Kant, I; História da Filosofia, Metafísica, Teoria do Conhecimento, Linguagem, Semântica

 

SUMÁRIO

Advertência

Pre-texto

Parte I: Problemas de significação nos textos pré-críticos

1.1- Introdução

1.2- A dobradiça entre o pré-crítico e o crítico

1.3- O mal-estar filosófico (acerca dos problemas da metafísica).

1.4- Relações conflituosas (acerca da ciência da natureza e da metafísica)

1.5- A razão da existência (acerca da distinção entre o lógico e o real)

1.6- História de um esquecimento (acerca de posição e contradição)

1.7- Os ventos hipocondríacos (acerca do mal-estar e a ironia)

1.8- O mal-estar declarado (acerca da terapia)

1.9- Conclusão

Parte II: A interpretação crítica do problema da metafísica

2.1- Introdução

2.2- Os sentidos da metafísica

2.3- Os problemas necessários

2.4- A ilusão transcendental

2.5- A história da metafísica

2.6- A tarefa crítica

2.7- Conclusão

CONCLUSÃO FINAL

Pós-Texto

Apêndice

BIBLIOGRAFIA

 

Advertência

 

O presente texto é uma parte, em versão diferente, das minhas pesquisas desenvolvidas, no mestrado e atualmente no doutorado, na Universidade Estadual de Campinas (com bolsa Capes de 1994 até começo de 1998). Alguns tópicos foram apresentados em distintos congressos ou publicados em forma de artigos aprofundando em questões técnicas. Ainda continuo trabalhando nas mesmas. Aqui só tentei apresentar uma leitura do problema, trata-se de um ensaio de introdução.

Agradeço o confronto de aqueles com quem tive oportunidade de polemizar. Especialmente com quem o fizera desinteressadamente, como os professores Marcus Lutz Müller e Oswaldo Giacoia Jr.. Minha gratidão ao Professor Zeljko Loparic de quem tenho o orgulho de ser seu orientando.

Desejo destacar o apoio da atual gestão da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, especialmente do Diretor do Centro de Ciências Humanas e Estudos Sócio-Econômicos, Professor Pedro Gambin, que tornaram possível esta publicação. Agradeço ao Prof. José Atílio Pires da Silveira e a Jane pelas correções do português e também pelo seu afeto.

Finalmente, gostaria de agradecer a minha família que às vezes compartilha e às vezes suporta, mas sempre está comigo.

 

 

 

 

Toledo, junio de 1998.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

para Ana

e

para Felipe que não precisa de filosofia

 

                                              

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dios!!! Adonde estás??

                                               (Da última cena do filme El Juguete rabioso,

baseado no romance de igual nome de Roberto Arlt)

 

 

 

 

Pré-texto

 

 

Antes de apresentar o texto. Antes de percorrer o texto propriamente dito. Antes de assinalar os tópicos mais importantes, ressaltar as “minhas contribuições” ao tema, em resumo, antes de introduzir-nos no corpo do texto, tentarei realizar um breve exercício “introdutor”. Uma introdução da introdução.

Antes de abordar o texto procurarei abordar o pré-texto, com toda a ambigüidade que esse termo carrega. Pré-texto como aquilo que é anterior ao texto no duplo sentido de estar fora do texto e ser o motivo do texto.

Meu pré-texto tem, como todo pré-texto, paradoxalmente, uma localização precisa no interior do texto e, sem rodeios, denomina-se “epígrafe”.

A cena à qual remete a epígrafe é dramática[1]. No final do filme o ator parado sobre um monte de lixo abre seus braços, olha para o alto do horizonte e grita: Dios adonde estás!?.... . Essa é uma pergunta que no decorrer do texto, do texto de Roberto Arlt[2], de meu texto sobre o texto kantiano, não é respondida senão a modo de retalhos. É em forma de fragmentos disseminados no texto que é possível colher uma resposta à pergunta por Deus.

Esta pergunta não é respondida inteiramente na primeira parte de meu  texto, onde trato várias vezes o tema em questão, como também não é respondida na segunda parte, onde a metafísica como tal é colocada como problema. Já que é no interior da filosofia kantiana que estamos nos movimentando a tentativa de um tratamento apurado desta pergunta deveria levar em conta textos kantianos que aqui nem mesmo foram mencionados. Deveríamos nos envolver, quiçá, em uma pesquisa sobre temas práticos, lições sobre ética, textos de religião, etcétera, e mesmo assim, caberia a dúvida acerca de saber se é possível formular adequadamente essa pergunta no interior de uma “Teologia Crítica”. Mas um tratamento deste tipo nos permitiria, antes de dar qualquer resposta, saber se aquele enunciado é mesmo uma pergunta.

Dios, adonde estás!?.... Será que é uma pergunta para se fazer...?

No interior do texto arltiano não, e de fato não é explicitamente colocada. Arlt apenas circunda as condições em torno das quais o protagonista erra permanentemente. O filme consegue recriar essa situação. O ator representa muito bem o sentido desse enunciado, que surge como pergunta retórica, e apenas retórica, na encruzada do grito do desesperado e a ironia do cético. A rigor, a enunciação cinematográfica mostra que o enunciado não é uma pergunta. Toda a escritura arltiana apresenta a impossibilidade dessa pergunta. Mas essa impossibilidade não é apresentada em forma de tratado, e sim através de “retalhos”, fragmentos de respostas espalhados pelos textos. É essa a forma da resposta a uma pergunta que nada pergunta. É uma resposta que, mais que responder, indica o nosso próprio limite, a impossibilidade de abordá-la diretamente. Nesse déficit da resposta à pergunta por Deus desenha-se, aos poucos, nossa própria finitude. Mas, não como a relação da criatura com seu criador, senão, melhor, como o rasgo do “arrojado”.

E é esse  nosso pré-texto, nossa pré-compreensão, aquilo que motiva e desenha o texto.

A epígrafe indica, deste modo, nossa preocupação: “o alcance de uma resposta possível”; ao mesmo tempo em que revela uma inquietação: “Por quê é que não me é dado responder diretamente sem nada responder? Por quê é que essa epígrafe, ou melhor, essa cena arltiana, assinala a impossibilidade da pergunta? Por quê é que se trata de uma pergunta impossível”?

Para avançar sobre isto, que antes de ser uma pergunta é um estado, mais do que uma questão é uma condição, é que abordarei o texto kantiano. O texto arltiano, lido nestes termos, nos coloca, como pré-texto, frente ao texto kantiano, onde, assumindo de raiz esse estado, problematizando a fundo essa condição, desenvolvemos um labor filosófico. Esse labor (a saber: a questão do limite, o problema da impossibilidade, ... sem mais rodeios: a nossa própria finitude) pode ser lido, em Kant, em termos semânticos. É em termos semânticos que podem colocar-se racionalmente essas questões. Para esclarecer este nó e sem mais jogos de palavras, além dos estritamente necessários, abandonamos o pré-texto para ir ao texto...

Sendo assim então... Qual é a questão dos textos pré-críticos kantianos? Que relação têm aqueles textos com a nossa preocupação? Por que recorrer a textos esquecidos, marginalizados e até mesmo ignorados, para abordar uma questão tão importante? Em que medida esses textos podem nos ajudar, auxiliar, orientar? Mas, será que um texto pode nos orientar? Será que é possível ser orientado de outro modo que não seja através da leitura?

Para entrar no campo que é aberto por essas perguntas nossa tese deve ser declarada logo, só assim daremos passo à demonstração, pios, é na medida em que surgem inconveniências na formulação e resolução de problemas científicos e metafísicos que o Kant pré-crítico defronta-se com problemas de semântica e de finitude, é esse o eixo de nossa interpretação e o modo em que desenvolveremos nossa leitura.

Este texto não visa procurar a gênese da filosofia transcendental. Ainda que o objetivo não seja menor, é diferente. O que este trabalho tenta é, na sua primeira parte, apresentar a problemática da significação que se encontra nos textos pré-críticos kantianos; e na segunda reconsiderar a passagem dos textos pré-críticos para os textos críticos.

Deste modo demonstraremos que, primeiramente, são problemas de significação os que fazem abortar o projeto kantiano de redigir uma boa metafísica; e, como conseqüência, são problemas de significação os que situam a atividade filosófica em termos críticos. E significar aqui é ler de algum modo.

Através de uma breve introdução a alguns destes textos pré-críticos observaremos como a questão da significação dos conceitos aparece como decisiva na constituição dos tópicos ali colocados. Não se trataria já apenas de “textos de juventude” ou “textos mais ou menos dogmáticos ou empíricos”, e sim de trabalhos a levar em conta na hora de compreender a natureza da filosofia crítica.

Para desenvolver esta proposta tentarei então, primeiramente, a reconsideração de alguns textos kantianos do denominado período "pré-crítico", que estejam vinculados especialmente com problemas de conhecimento teórico. A partir deles demonstrarei que, já nesses textos, Kant assinala que o modo dogmático de formular e resolver problemas metafísicos (empregado por parte do escolasticismo e da tradição) faz um uso abusivo das regras lógicas, trazendo como conseqüências:

a) a confusão do modo de conhecimento matemático com o modo de conhecimento filosófico (conhecimento por construção de conceitos e conhecimento por conceitos respectivamente) e:

b) a mistura do âmbito das relações lógicas abstratas (que independem de toda e qualquer experiência) com o campo das coisas existentes (que devem ser determinadas em relação a uma experiência possível), sem fazer qualquer distinção clara que permita, depois, vinculá-las adequadamente.

Isto faz com que as afirmações dogmáticas sobre problemas metafísicos, sejam totalmente desprovidas de sentido objetivo por carecerem, justamente, de um fundamento que lhes outorgue validez.

Com efeito, na sua etapa "pré-crítica", Kant, na tentativa de procurar uma boa metafísica que permita estender o conhecimento com certeza (e isto o sabemos pelas suas declarações explícitas em vários textos publicados em vida de Kant, e, sobretudo pela sua correspondência com Lambert), encontra-se permanentemente defrontado com problemas de significação nas questões colocadas. Assim sendo, é possível achar, nesses textos, sinais muito específicos da preocupação semântica de Kant com relação à formulação e resolução de problemas.

Essa preocupação vai se tornando uma exigência temática no desenvolvimento das pesquisas kantianas até se converter em um verdadeiro "mal-estar filosófico". É assim que vão se colocando em evidência, no modo dogmático de formulação e resolução de problemas metafísicos, os seguintes tópicos:

a) o uso abusivo de alguns princípios de experiência, que não tendo garantias fora desta, são aplicados a objetos que não pertencem a nenhuma experiência possível, carecendo de qualquer fundamento objetivo;

b) o uso abusivo de regras lógicas, que tendo validade para as formações proposicionais, não é, por isso, a origem da própria existência das coisas sensíveis.

c) a cláusula metafísica de "razão suficiente" que é usada, na metafísica tradicional, sem qualquer restrição em relação às coisas existentes.

Todos estes tópicos são tratados por Kant de diversos modos ao longo de mais de vinte anos de trabalhos. Algumas vezes eles ocupam um lugar de destaque, indicados de maneira específica como o objetivo explícito da pesquisa empreendida, e em outras são só assinalados marginalmente, mas mesmo assim possuem uma importância nuclear para o conteúdo do texto.

É oportuno esclarecer, antes de mais nada, que esta "temática da significação"  kantiana da etapa pré-crítica não surgiu sem inconveniências, teve seus progressos e também seus retrocessos. Por causa desses movimentos “textuais” foram necessários alguns rodeios e caminhos indiretos para chegar à sua formulação decisiva.

Portanto, podemos observar como, por exemplo, em um conjunto daqueles escritos da primeira época, a saber: História Universal da Natureza e Teoria do Céu Onde se Trata do Sistema e da Origem Mecânica do Universo Segundo os Princípios de Newton (1755), Breve Esboço de Algumas Meditações Sobre o Fogo (1755, b), Monadalogia Fisicae (1756), Investigação Acerca da Evidência dos Princípios da Teologia Natural e da Moral (1764), a preocupação semântica surge a partir do tratamento das relações entre a ciência da natureza e a metafísica. Aqui Kant procura mostrar:

a) a necessidade de autonomia das leis físicas em relação a qualquer explicação ou intervenção não científica, e

b) a necessidade de seguir um método experimental e construtivo na explicação científica.

Isto é desenvolvido por Kant no tratamento de problemas concretos da ciência da sua época (física, química, astronomia e matemática). Entretanto, no mesmo período, também é possível observar as dificuldades que Kant tem para explicitar e aplicar claramente os resultados da problemática da significação na própria metafísica, voltando dessa maneira, a cometer o mesmo erro “dogmático” que tinha sido questionado anteriormente. A Monadalogia Fisicae (1756) é o exemplo disso. Aqui Kant pretende demonstrar a existência real das mônadas por um simples raciocínio lógico, sem qualquer referência sensível na sua operação.

Essa distinção do campo da lógica em relação ao âmbito do real sensível é aprofundada noutros textos, tais como: Nova Dilucidatio (1755, c) e Acerca da Falsa Sutileza das Quatro Figuras do Silogismo  (1762); ali é questionado o estatuto da demonstração lógica no que se refere ao conhecimento objetivo da existência das coisas elas mesmas. O tratamento do princípio de razão suficiente e da teoria do silogismo revela-nos as dificuldades semânticas envolvidas tanto na indagação dos primeiros princípios do conhecimento como na interpretação das operações lógicas. No primeiro caso é preciso restringir o uso do princípio de razão suficiente conhecendo suas limitações. Entretanto, no segundo caso, Kant nos adverte que é necessário adequar os resultados da dedução silogística ao conhecimento efetivo da realidade.

A distinção das relações lógicas e do campo das coisas sensíveis traz conseqüências semânticas importantíssimas com relação à  aplicação e reconhecimento dos limites da lógica. Por exemplo, em Ensaio Para Introduzir o Conceito de Magnitudes Negativas... (1763) Kant tentará distinguir a oposição real (de dois predicados de uma mesma coisa que dão um resultado afirmativo) da contradição lógica (que impede qualquer resultado válido) destacando a necessidade de levar em conta o conteúdo da expressão formal.

Contudo, em Único Fundamento Para a Demonstração da Existência de Deus (1763), seguindo a mesma linha de demarcação, Kant não vai considerar a existência como um predicado ou determinação lógica, mas sim como “posição” absoluta do objeto. Nos dois textos está em jogo a existência como efetividade, impossível de ser reduzida à mera determinação lógica.

Todas essas pesquisas trazem como resultado o verdadeiro fracasso daquele projeto empreendido por Kant nos seus primeiros trabalhos, a saber: procurar uma boa metafísica que alcance conhecimentos certos. A cada passo encontra-se com contradições e obscuridades semânticas na formulação e resolução de problemas. Devido a isto Kant chega a afirmar que a metafísica não existe, e se existe é tão só o sonho de um visionário.

É assim como a longa procura de uma metafísica certa torna-se “crítica dos sonhos” (Sonhos de um visionário... 1766). Esta crítica tem duas partes, uma semântica, onde trata das significações dos sonhadores da razão, e uma empírica, onde trata de possíveis perturbações físicas dos sonhadores dos sentidos. Nela se demonstra a impossibilidade de qualquer conhecimento teórico objetivo de entidades metafísicas como “espíritos” e a necessidade de um procedimento de doação de sentido aos conceitos usados na formulação de proposições com validez objetiva.

Deste modo o termo “metafísica” adquire dois sentidos, um é aquele no qual a metafísica deve ser questionada, isto é o dogmatismo teórico; o outro é uma tarefa por se fazer, que não nos fornece nenhum  novo conhecimento, mas, nos evita a ilusão dogmática de pretender conhecer objetivamente aquilo que é inatingível pela nossa experiência. Assim, Kant começa a apresentar a idéia de uma filosofia crítica. Não se trata agora de resolver problemas metafísicos em cada caso, mas sim de saber se a metafísica ela mesma é possível como conhecimento válido.

Os textos pré-críticos, deste modo reconsiderados, permitem-nos assinalar as falhas contidas na empresa da metafísica tradicional, como também indicar uma tarefa a seguir, que já não é a de simples questionamento, mas sim de “crítica” dessa mesma metafísica. Para esclarecer esta passagem à etapa crítica será necessário determinar os sentidos em que o termo metafísica é utilizado por Kant, mostrando como a metafísica, ela mesma, se torna problema. Passa-se, deste modo, de uma reflexão no interior da metafísica, no tratamento fragmentado de temas parciais dos textos pré-críticos, para uma reflexão sobre a metafísica, em um tratamento sistemático dos seus problemas no labor crítico. Por tal razão considero que não é pertinente interpretar o conceito de “metafísica” em um só sentido, dependendo este, em cada caso, do contexto no qual é usado por Kant. Esta advertência de leitura evita-nos o erro de pensar em uma mera substituição de uma metafísica tradicional por uma “metafísica transcendental”, tal como tentarei mostrar, ao menos parcialmente.

Esta reflexão sobre a metafísica, desenvolvida na etapa crítica, permite-nos observar como esta classe de “problemas metafísicos”, eles mesmos, não são uma “invenção arbitrária e extravagante de mentes ociosas”, mas sim são gerados necessariamente pela própria natureza da razão de acordo com um princípio de funcionamento lógico, que  diz: dado o condicionado, é necessário procurar a série das condições até atingir sua totalidade. O aparelho cognitivo funciona de tal modo que nos pede para progredir ou regressar nas condições do dado. Essa região de problemas da razão, denominada “metafísica”, é constituída a partir das perguntas pelas totalidades absolutas de condições de objetos dados, e é totalmente natural e até necessário deparar com essas perguntas. Neste sentido se destacará a importância da mudança kantiana de interpretação na teoria do silogismo. Com efeito, a mudança da interpretação do silogismo, determinada na sua premissa maior a partir do conceito de “característica” para o conceito de ‘regra” (entre o texto pré-crítico de 1762 e a CRP), desempenha uma função essencial para a formulação dos problemas necessários da razão.

Mas assim como esses problemas são colocados necessariamente pela razão, também é possível cairmos em uma “ilusão da razão”, ao se entender um princípio subjetivo de funcionamento da razão (que pede para continuar à pesquisa das condições até o incondicionado) como lei objetiva de constituição dos objetos. Deste modo, os problemas metafísicos tornam-se insolúveis, devido ao uso transcendental (extravagante, excessivo) dos princípios da experiência, que colocam aquela (a razão) em contradição consigo mesma ou conduzem às obscuridades semânticas. As proposições surgidas de tais contradições e obscuridades carecem de qualquer fundamento que permita decidir a validade dos problemas; desta maneira a “história da metafísica” será a história dos dois modos de enfrentar estes problemas, a saber: dogmática ou ceticamente. A tentativa dogmática desenhará inúmeras propostas sem um resultado certo. Enquanto que no ceticismo,  assinalando a falta de  fundamento válido no dogmatismo, acabar-se-á rejeitando a própria possibilidade dos problemas metafísicos, através do apelo a uma ignorância necessária da parte do conhecimento humano.

Frente a esta dicotomia (dogmatismo teórico versus ceticismo) Kant tentará investigar a própria razão, seus problemas necessários; assim como também procurar as condições de possibilidade da sua resolução ou determinar sua insolubilidade. Essa será a tarefa crítica. A passagem da etapa pré-crítica para a etapa crítica será a passagem da reflexão no interior da metafísica à reflexão sobre a metafísica, sob a forma da indagação acerca das condições e limites do nosso conhecimento.

A pergunta aqui é:

Como é que a nossa razão pode estender o nosso conhecimento objetivamente?

Que posso conhecer?

Que me está dado conhecer?

Os problemas da metafísica são, portanto, problemas necessários da razão que exigem uma solução válida. Como observamos, não é legítimo nem a mera afirmação dogmática, que carece de um fundamento sólido, nem a rejeição cética que diretamente abandona a pesquisa. Para poder fornecer algum tipo de resposta é preciso saber, antes de mais nada, até que ponto pode avançar no conhecimento sem cair na mera afirmação sem fundamento.

A nossa exposição se deterá na colocação do problema como tal, sem avançar no desenvolvimento do mesmo. Este último seria o aspecto positivo do labor crítico. A nossa problemática é a de olhar para o limite, indicar apenas o aspecto negativo do resultado das pesquisas kantianas.

Para levar adiante a nossa interpretação foi necessário entender a filosofia kantiana como uma permanente polêmica com outros filósofos antecessores e contemporâneos ao nosso autor, como Hume, Descartes, Leibniz, Jacobi, Eberhard entre tantos outros. No fundo destas polêmicas devemos considerar que a metafísica toda é a que está em jogo. Nesse sentido, tentamos tratar a questão como um problema filosófico e não apenas como uma raridade do passado. A metafísica não é um problema ultrapassado, nos atravessa. Ainda hoje o logicismo e o matematicismo ocultam, sob a forma do “rigor” e da “efetividade” da sua demonstração, o gesto metafísico de pretender o que é impossível conseguir, a saber, a demonstração da demonstração. A metafísica não acabou no surgimento da ciência e da técnica, muito pelo contrário, é ali onde aparece com toda sua força, quando se instaura como gesto instalador, ou, como disse J.L.Borges, com sua maior claridade.

A metafísica como problemática, no interior do texto kantiano, é explicitada à luz da questão semântica. É isto o que nos permite expor a desarticulação  crítica do projeto da metafísica e a finitude de nosso alcance.

A metafísica é um modo do pensamento que procura esquecer, evitar, reprimir a finitude a partir da qual se abre sua própria possibilidade.

A metafísica é um modo de operar contra a finitude.

As operações metafísicas pretendem controlar a totalidade do mundo a partir do além e instaurar finalmente o império do infinito.

Contrariamente, a minha tarefa aqui foi apenas a de um peregrino que colhe alguns ensinamentos mundanos nessas terras metafísicas....

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Parte 1

 

 

Problemas de significação nos textos pré-críticos.

 

 

1.1- Introdução.

 

 

 

No dia 21 de setembro de 1798, em uma extensa carta dirigida a Garve, Kant queixa-se da “vegetativa mais do que escolar condição”[3] à qual ele foi reduzido por alguns comentadores. Ali ele se incomoda pelo modo em que é tratado pela crítica. Também na carta a Herz de 11 de maio de 1781[4] escreve que sua obra não é “popular” e, portanto, exige um esforço de compreensão diferente. Problemas desse tipo prolongam-se, por exemplo, na polêmica com Eberhard, tal como pode ser constatado na resposta kantiana[5] e na correspondência da época. Essa classe de “más interpretações” não ficou apenas reduzida à primeira crítica, também a segunda encontrou essas inconveniências. Assim o indica, por exemplo, o prefacio à Crítica da Razão Prática onde Kant reproduz o questionamento que um crítico teria feito em tom de indignação, para indicar que era exatamente esse o objetivo de seu trabalho[6]. Até o ano da sua morte (1804), a quantidade dos escritos pró e contra a filosofia transcendental era de dois mil[7], fato que o preocupou muito. É bem sabido que Kant não temia ser refutado, mas sim não ser compreendido[8] em relação ao significado das suas teses. Certa ocasião, olhando para as mais adversas reações que a crítica tinha originado, afirmou que, quiçá, sua filosofia fosse entendida em cem anos[9].

Essa mesma visão otimista, na qual prognosticara que a passagem do tempo permitiria melhores interpretações, mostra-se também na reflexão 5015. Ele escreve: ”uma vez que se tenha esfriado a efervescência dos espíritos dogmáticos, creio que esta doutrina é a única que subsistirá a ir adiante”[10]. O otimismo kantiano parece apoiar-se em uma superação filosófica do ceticismo, mas, ainda restaria superar a teimosia do dogmatismo, que com a força das suas escolas impediria qualquer avanço da razão.

A essa tentativa malograda de profecia sucederam-se duzentos anos das mais variadas leituras. Assim foi como as interpretações malsucedidas de então, que perturbaram Kant no esclarecimento da sua escrita, caíram no esquecimento, para que novas interpretações ruins tomassem o lugar das antigas. Isto não é uma paráfrase retórica, é um exercício constante. Deste modo re-escrever a crítica tornou-se, sem dúvida, uma tarefa do dia a dia no Ocidente, e, devido a isso, poderíamos dizer que Kant já conseguiu perder (ou talvez apenas esquecer) o medo de não ser compreendido.

Entretanto, naquela carta a Garve, Kant, no seu afã de explicar-se mais um pouco sobre seu labor, aproveita a oportunidade para fazer uma observação esclarecedora sobre a origem da Crítica da Razão Pura. Nesse texto Kant nos diz que seu ponto de partida foram os problemas da razão, e mais especificamente as Antinomias. Estas o acordaram do sonho dogmático e o empurraram à crítica da razão a fim de acabar com o escândalo da filosofia, a saber, a contradição da razão consigo mesma[11]. Tratar-se-ia, pois, de aprofundar os problemas oriundos da própria razão e, por conseguinte, de saber até onde posso ir com ela sem me contradizer. Isto é, determinar quais são seus limites em relação consigo mesma. Porém, não se procura aqui alcançar, por exemplo, o limite da razão em relação com a loucura, para, deste modo, determinar o que é verdadeiro na primeira e o que é “errante” na segunda; nem mesmo colocá-la em relação com a paixão para justificar a mesma operação de oposição. Essa empresa tinha sido feita pelos seus antecessores, e agora não era isso o que se procurava. A idéia é radicalmente distinta. É a própria razão -diz Kant- a que gera suas “ilusões”, e é ela, sem ajuda de mais nada, a que deverá desembaraçar-se daquele engano. Aqui a filosofia não tem, como noutras oportunidades, a ajuda de um Deus salvador.

Neste sentido, é possível dizer que a Crítica da Razão Pura é fundamentalmente uma teoria da solubilidade dos problemas necessários da razão. Esta afirmação, como resulta evidente, pode estar apoiada no estudo da própria tarefa crítica, iniciada com a obra de 1781 (CRP), na qual Kant pesquisa explicitamente a capacidade ou incapacidade da razão para resolver seus problemas necessários.

Tal é o trabalho desenvolvido em Loparic (1982)[12], onde os problemas necessários da razão estão colocados em estreita relação com a questão lógico-semântica da sua formulação. Na sua pesquisa Loparic propõe que a crítica é uma teoria da decidibilidade dos problemas inevitáveis da razão especulativa, e a metafísica da natureza, uma teoria da pesquisa científica no campo da natureza. De acordo com esta leitura a tese básica da crítica consiste no seu teorema de decidibilidade, “segundo o qual, com respeito a uma questão qualquer que nos seja proposta pela natureza da nossa razão, uma das duas alternativas vale: ou sua indecidibilidade é demonstrável ou existe um procedimento para dar-lhe uma resposta definida”[13]. Este teorema é formulado em relação à possibilidade ou impossibilidade das proposições sintéticas. A concepção kantiana da possibilidade das proposições sintéticas requer:

a) uma teoria da referência e da significação dos conceitos utilizados nessas proposições; e

b) uma teoria das condições de verdade ou falsidade de tais proposições.

Quer dizer que, para poder estabelecer a possibilidade das proposições sintéticas é preciso, de acordo com Loparic, de uma semântica transcendental ou a priori (este será o conceito chave em Loparic para poder entender a teoria dos problemas e a significação dos conceitos).

Esta semântica pode ser formulada em duas condições básicas:

a) todos os conceitos não-lógicos que ocorram em uma proposição sintética devem ter referência e significado objetivos;

b) as formas proposicionais, surgidas pela combinação de operações lógicas, devem poder ser interpretadas por formas sensíveis[14].

A primeira condição é enunciada em relação à interpretação sensível dos conceitos (procedimento de doação de significação) desenvolvida basicamente no esquematismo transcendental da CRP, enquanto a segunda se explicita em relação à possibilidade de verdade ou falsidade das proposições usadas na formulação destes problemas, e que é enunciada nos princípios do entendimento.

Trata-se então, de uma teoria dos problemas baseada em uma semântica que permita decidir acerca dos problemas solúveis diferenciando-os da classe de problemas teórica e objetivamente insolúveis[15]. Uma teoria a priori da referência e da verdade deve ser o fundamento de solubilidade dos problemas.

Neste sentido, poder-se-ia dizer que as investigações desenvolvidas em Lebrun (1970)[16] e em Allison (1983)[17] compartilham com Loparic, fundamentalmente,  uma leitura da CRP a partir dos problemas necessários da razão.

Por sua vez, Allison entende o idealismo transcendental de Kant quase que essencialmente, em oposição direta ao realismo transcendental, como uma metafilosofía ou metodologia[18] a partir da qual é possível começar a formular problemas e resolvê-los. A posição do “realismo transcendental” é a origem do “escândalo da filosofia” (a contradição da razão consigo mesma). O realismo se refere ao mundo como existindo em si mesmo independente das nossas representações, enquanto que o idealismo transcendental se refere aos objetos como eles aparecem. Deste modo o primeiro conduz a formulações contrapostas sobre o mesmo objeto, e o segundo tenta resolvê-las fornecendo as condições da sua validade.

Para diferenciar estas duas posições claramente é preciso uma interpretação cuidadosa da distinção kantiana entre aparência ou aparecimento (Erscheinung) e coisa em si mesma (Ding an sich selbst). Freqüentemente esta distinção é estabelecida como sendo entre dois tipos de objetos, isto é, como entidades dependentes da mente e entidades independentes da mente, das quais só podemos conhecer as primeiras, enquanto que as últimas são inacessíveis para nós. Assim sendo, tudo sucede como se o idealismo transcendental fosse um “mero idealismo” que só pode conhecer  “meras entidades mentais” enquanto que a “realidade” fica incognoscível. Allison, distanciando-se desta proposta de leitura, elabora uma estratégia interpretativa chamada de “dois aspectos” (two aspect). A partir dela tenta interpretar a distinção de aparência (appearence) e coisa em si mesma (thing in themselves) como uma distinção de dois modos de considerar os objetos. A saber, como eles aparecem, isto é, sujeitos às condições humanas para a possibilidade da experiência, e como eles são em si mesmos considerados hipoteticamente independentemente destas condições[19]. Estabelecido isso, é preciso achar as condições da experiência possível daqueles objetos. Quer dizer, as “condições epistêmicas” (epistemic conditions) ou transcendentais do conhecimento humano[20], pelas quais será possível ordenar a  formulação e resolução adequada dos problemas da razão.

Lebrun, por sua vez, coloca os problemas da metafísica especial, como problemas necessários da razão, em relação com o problema da significação dos conceitos usados na sua elaboração. É interessante observar -nas sugestões de nosso comentador- como Kant nas Reflexionen medita sobre a linguagem da ontoteologia tradicional e destaca os sentidos dos termos metafísicos. Estas meditações vinculadas à tarefa crítica conduzem Lebrun a declarar que “não existem respostas kantianas a problemas tradicionais, mas apenas falsos problemas tradicionais”[21]. Quer dizer, frente aos antigos problemas da metafísica tradicional (seja em relação aos objetos da metafísica especial como da geral) não é correto fornecer mais uma resposta, ainda sendo esta inovadora. O que está em jogo é a própria problemática enquanto tal, a possibilidade dos problemas mesmos. A tarefa crítica é entendida como uma análise semântica, uma leitura das significações, e não mais uma nova resposta aos antigos problemas da metafísica dogmática.

Embora seja a partir de pontos de vista diferentes e, portanto, com conseqüências de leitura também diferentes (que aqui não interessa destacar),  as perspectivas destes autores indicam um ponto comum: a questão da problematização na filosofia crítica. Quer dizer, a razão enquanto “razão problematizante”. Esta questão torna quase que inevitável a preocupação semântica, qualquer que seja o modo em que se trata. Os problemas gerados pela razão devem poder ser formulados em certo campo semântico, isto é, respondendo a certos requisitos semânticos que constituam uma ordem de sentido, para poder ter referência e significação e assim terem a possibilidade de ser verdadeiros ou falsos. Partindo deste tipo de abordagens do texto crítico se faz necessária uma releitura dos textos pré-críticos.

Sua reconsideração é urgente.

Se a crítica já não é a mesma reiteração do gesto dogmático, se não é apenas mais uma metafísica, então devemos destacar os elementos que fazem possível esse novo modo de colocar problemas. Esta tarefa não só é possível de se levar adiante nos textos posteriores à Dissertação de 1770, senão que, tal como demonstraremos neste texto, torna-se pertinente identificar sinais  muito específicos da preocupação semântica de Kant, com respeito à formulação e resolução de problemas já existentes nos textos pré-críticos.

 

 

1.2- A dobradiça entre o pré-crítico e o crítico

 

 

Tem-se geralmente estabelecida uma ruptura intransponível entre os chamados períodos pré-crítico e crítico, até o ponto de desacreditar o primeiro como dogmático ou meramente empirista, segundo seja o ano de edição do texto pré-crítico em questão. Uma classificação muito conhecida comanda desde o fundo quase que todas as leituras dos textos kantianos antepondo, de maneira não-crítica, o resultado à pesquisa.

Primeiramente haveria um Kant crítico e outro pré-crítico. Pela sua vez, alguns comentadores arriscam que o crítico deveria ser subdividido entre aquele das duas primeiras críticas e o da última, não discutirei esses argumentos aqui. Por outra parte o Kant pré-crítico deveria ser seccionado em:

a) o momento do racionalismo dogmático que se estenderia desde o começo da obra até inícios de 1760, este subperiodo estaria caracterizado pela física de Newton e a metafísica de Leibniz e Wolff, determinando as grandes linhas de pesquisa e pensamento;

 b) o momento do empirismo, que se prolongaria por toda a década de 1760, ali Kant teria sustentado as influências de Locke e Hume, como também de Rousseau e Shafterbury.

Uma pesquisa biográfica, mostrar-nos-ia que efetivamente Kant estudava intensamente esses autores naquelas épocas. Contudo, o inconveniente surge quando daqui se deduz abruptamente que Kant estaria apenas exercitando a mesma operação de escritura que os autores que lia.

Este ponto foi utilizado como fundamento da classificação tradicional argumentando que, por exemplo, o pensamento kantiano no período da Monadalogia é dogmático por que, ainda que oposto a Leibniz, ele propôs que o método lógico de análise dos conceitos é suficiente para atingir a essência do real; ou que, em outros textos, admite que as provas da existência de Deus possuem um valor de certeza que não teriam no período crítico. Mais ainda, continuando esta mesma linha e reiterando o mesmo gesto de leitura, Kant teria passado pela década de 60 repetindo o empirismo, e até o bom humor de Hume nos Sonhos de um visionário.. Isso tudo teria se prolongado até que por fim, um dia, Kant “teria acordado do sonho dogmático...”.

Como sabemos, a questão do “sonho dogmático” é uma metáfora que Kant utilizou para se referir à passagem para a empresa crítica. Entretanto, a classificação tradicional não parece permitir-se ler esta sentencia como “metafórica” e a toma ao pé da letra[22]. Na classificação tradicional tudo aparece como se Kant “houvesse acordado mesmo” e no seu estado de semivigilia tivesse sorrido do sonho (contado no texto de 1766) para que, finalmente, já bem disposto (na Dissertatio) começasse o verdadeiro trabalho de vigília (da crítica). A noite do dogmatismo kantiano teria sido superada pela luz da crítica em uma simples questão de tempo. Assim, a classificação tradicional baseia-se em uma periodização cronológica dos textos, como também em uma evolução por ruptura da obra kantiana, que determina toda pesquisa sobre os escritos apagando qualquer exercício de leitura. Assim o esquema fica organizado e fundamentado sobre os elementos da cronologia e da pressuposição[23].

 

Não é esta a nossa avaliação.

Apesar de ter sido o mesmo Kant quem chamou de dogmático seu primeiro período em vários momentos da etapa crítica, não é adequado considerar que isso implique diretamente o esquecimento daqueles textos, muito pelo contrário, é possível encontrar aí o começo da problematização de vários tópicos que serão sistematizados mais tarde na etapa crítica. O próprio Philonenko diz, que mesmo quando Kant olha para os escritos pré-críticos sem agrado, e tal vez desejara não vê-los publicados em suas obras, a utilidade de estudá-los é importante, já que “se vê formar aos poucos as noções principais, por exemplo, a distinção entre pensar e conhecer, a distinção entre razão lógica e razão real, a separação entre matemática e filosofia”[24]. Deste modo os textos pré-críticos seriam vistos como pré-originários. A importância do seu valor estaria no seu caráter germinal. Tudo se passa como se as “noções principais” em estado pré-crítico fossem corrigidas, aos poucos, para serem transformadas em “críticas”. Dando um passo a mais que Philonenko, nós podemos dizer que não se trataria da origem germinal daquilo que evoluiria com o passar do tempo até se converter no fruto maduro da “crítica”, metáfora demasiado cara para o pensamento de Kant. Contrariamente, podemos afirmar que é através desses tópicos que os problemas semânticos já aparecem. Não é que a Crítica esteja escrita nas entrelinhas dos primeiros textos. Nossa leitura propõe-se a olhar para outro destaque que declaramos logo. Os textos pré-críticos já apresentam fragmentariamente os problemas semânticos que serão sistematizados na etapa crítica.

A relação pré-crítico/crítico não representa nem uma ruptura, nem uma evolução no sentido estrito. O deslocamento de sentido que ali se produz traz as marcas dos antigos textos. Uma reflexão de Kant, (Rx  4964) sobre a CRP, permite pensá-los neste sentido. “Por este trabalho, o valor de meus escritos metafísicos precedentes é integralmente negado. Eu procurei apenas salvar a justeza da idéia[25]. Com efeito, o trabalho crítico choca com a empresa metafísica da época anterior. É por isso que o valor daqueles escritos, em relação aos seus resultados, deve ser deixado de lado para os interesses da etapa crítica. Mas, “a justeza da idéia” que ele procura salvar é aquilo que emerge nos textos pré-críticos, e que aqui tentarei enunciar como a “preocupação pela significação dos conceitos e a formulação de problemas com sentido”. Essa será a problemática a sistematizar a partir dos trabalhos da década de setenta. Em uma carta a Herz de 20 de agosto de 1777 Kant[26] é explícito enquanto à sistematização de seu trabalho, a saber: “Desde a época em que nós nos separamos, minhas investigações parciais de antes, dirigidas a todos os tipos de objetos da filosofia, tomaram forma sistemática e eu fui pouco a pouco conduzido à idéia do todo, que é a única a tornar possível o juízo sobre a natureza de cada parte e sua influência recíproca”. Como é de notar, a sistematização que Kant procura tem a ver com o modo de colocar os problemas que já tinham surgido nas décadas passadas. O giro do pensamento kantiano será alcançado com a realização desse trabalho que, como poderemos observar, não foi tão simples. Nessa mesma carta Kant reconhece que esse é o obstáculo que detém a finalização da Crítica da Razão Pura, ele quer apresentar suas idéias com total claridade e tem todos seus esforços voltados para isso; pensa acabar no inverno, mas sucederam-se mais dois invernos para poder finalizar a tarefa empreendida, ou talvez, seja melhor dizer começar a empreendê-la.

Esse novo modo de colocar os problemas é o que guia Kant na crítica contra Hume (nos Prolegômenos a toda metafísica futura...[27]) sobre a falta de sistematização deste, ao tratar o fundamento do princípio de causalidade. Esta falta o leva a um engano, diz Kant. Tal como Hume demonstra no Tratado da Natureza Humana, a causalidade não está nas coisas elas mesmas, mas, nos advertirá Kant, também não é um simples habitus. Essa conclusão errada, segundo Kant, é possível por não ter sido sistematizado aquele questionamento. Um tratamento desses conduzirá inevitavelmente ao ceticismo ou ao dogmatismo, o que devemos evitar se não queremos repetir o erro metafísico. Nesse sentido é que a crítica passa a ser um tratamento sistemático dos antigos problemas, não por haver criado mais um sistema metafísico a partir do qual pudesse responder às antigas perguntas, mas sim por tratar com a formulação mesma do problema, quer dizer, com suas próprias condições de possibilidade.

 

Como temos antecipado até o momento, todos os indícios para a demonstração daquela afirmação (a crítica como teoria dos problemas baseada na significação dos conceitos) podem ser procurados nos textos pré-críticos. Isto não implica, necessariamente, que a origem da CRP esteja na primeira monografia de Kant, propondo deste modo um estudo da gênese  da obra crítica[28]. Nem mesmo, ao contrário, uma leitura teleológica, na qual tudo faria sentido a partir do fim. Se assim fosse teríamos que começar pela última página escrita por Kant ou seus últimos minutos de vida.

 

Longe disso.

Inclusive, quando a tarefa crítica não aparece como a mesma, quando é lida a partir dos problemas da razão ou da faculdade judicativa, não é correto, por isso, concluir que há um sentido da obra partindo do final para o começo. O propósito é apenas mostrar que a problemática semântica, essencial no período crítico, já aparece repetidamente nos textos pré-críticos de diversos modos. Não como germe, mas sim como obstáculo na tentativa de procurar uma metafísica bem-sucedida. Não como a origem mínima de um desenvolvimento mais abrangente, mas sim como um verdadeiro mal-estar que aparece a cada passo no tratamento de problemas específicos. É neste sentido que é preciso reconsiderar os textos pré-críticos. É claro que uma exegese profunda sobre eles se faz necessária, mas, por enquanto, aqui somente me deterei naquilo considero ser os limites desta pesquisa, a saber, os problemas de significação.

 

 

 

 

1.3- O mal-estar filosófico (acerca dos problemas metafísicos).

 

 

A partir de alguns textos pré-críticos kantianos um mal-estar começa a se manifestar claramente. Trata-se da formulação e resolução dos problemas metafísicos. Na procura por resolver problemas, que permitam alcançar uma metafísica certa, a preocupação pelo erro lógico-semântico vai se tornando, aos poucos, uma exigência temática no desenvolvimento das pesquisas kantianas.

Trabalhos monográficos e meditações parciais, assim como cartas pessoais feitas ao longo de vinte anos, que trataram temas da lógica, da verdade, da existência (e que foram mais tarde sistematizados), colocam em evidência, na sua maioria, o uso abusivo de:

1) alguns princípios de experiência, que não tendo garantias fora desta, são aplicados sobre objetos não “experienciais”[29].

2) regras lógicas, que tendo validade para as formações proposicionais, não são, por esta razão, a origem da existência das coisas.

3) a cláusula metafísica da razão suficiente.

Estes tópicos são, algumas vezes, tratados especificamente em trabalhos que explicitamente manifestam o descontentamento com a metafísica dogmática; outras vezes parecem ser o resultado, ora principal, ora secundário, de longas meditações sobre os temas mais diversos, começando pela geometria e ciência natural indo até à psicologia e teologia.

Contudo, esta tarefa, realizada por Kant, mostra que a metafísica dogmática tradicional serve-se de princípios sem garantias, elevando-se além da experiência, e responde às suas questões (sobre objetos supra-sensíveis) de modo infundado, colocando a razão em contradição consigo mesma, e tornando seus problemas, deste modo, insolúveis. Este não é um problema de tal ou qual metafísico em particular, que, indevidamente, confundiria os objetos; é a própria razão que no seu funcionamento, permite este desvario. Noutras palavras, é a própria razão que está doente. Mas é claro que a doença (o problema kantiano) não será manifestada de uma vez, pois serão precisas uma série de rodeios, desculpas, evasivas, rejeições, transferências e, até mesmo, esquecimentos e silêncios para conseguir fazer uma boa (terapia) crítica à metafísica tradicional[30].

 

 

 

 

1.4- Relações conflituosas (acerca da ciência da natureza e da metafísica).

 

 

A polêmica das posições teóricas de Newton e de Leibniz marcou boa parte da literatura científica e filosófica do século XVIII que tratava das relações entre física e metafísica. Kant, como é de esperar, não ficou alheio a esta questão. Tal é a preocupação de Cassirer em mostrar este tópico em vários dos seus textos[31]. De um outro modo, em Lebrun (1970) pode encontrar-se a relação de Kant com a ciência veiculada pelos paradigmas de Newton e Leibniz, às vezes aderindo a um ou a outro, às vezes tentando opô-los[32]. Em Torretti (1980) este tópico é visto como uma das origens da filosofia crítica[33]. Seja como for, a relação entre a ciência da natureza e a metafísica é um dos tópicos fundamentais da tarefa kantiana já nos primeiros escritos.

Assim, podemos ver na História Universal da Natureza e Teoria do Céu Onde se Trata do Sistema e da Origem Mecânica do Universo Segundo os Princípios de Newton (1755)[34], que Kant tenta mostrar, que não se tem necessidade de supor uma intervenção divina que prescreva condições precisas aos corpos do sistema planetário. A  origem e constituição deste podem ser explicadas mecanicamente segundo os princípios newtonianos. Mas, mesmo assim, ele justifica esta explicação físico-mecânica do Universo, argumentando que aquela (explicação) não invalida nem rejeita a existência de Deus, pelo contrário, a existência de leis físicas que possam dar conta do funcionamento do universo constituem a prova da existência de um fundamento ainda mais profundo que o da causalidade física. É provável, como afirmam alguns comentadores, que esta afirmação tenha sido declarada para evitar possíveis censuras de caráter religioso, mas, ainda assim, fica claro que o teológico deve ser separado do físico-matemático. Por tal motivo, Kant reprova Newton quando este apela à intervenção da divindade. Colocando-se em favor da autonomia das leis físicas, e argumentando que estas independem de qualquer teologia (já que suas regras e procedimentos têm um registro próprio, que não precisam da intervenção de elementos alheios, para que possam ser ditos verdadeiros ou falsos), Kant coloca o problema teológico como um problema de outro campo. Tratar-se-ia de um tipo de especulação que nada teria a ver com a demonstração fisico-matemática da regularidade dos movimentos do Universo. A intervenção desse tipo de especulação não é permitida nem como hipótese para explicar outros acontecimentos. É por isso que, como Kant faz notar no apêndice desse texto, tal tipo de especulação não está legitimada nem mesmo para perguntar pela possibilidade de vida noutros planetas. Esta é uma simples liberdade da imaginação, que não pode ser demonstrada nem como verdadeira, nem como falsa.

Nesta perspectiva, e seguindo o exemplo de Kant, pode supor-se que a matéria com que estão feitos os planetas e cometas preenchia todo o espaço cósmico em forma de caos e foi ordenando-se segundo as leis de atração e repulsão. Deste modo, um todo ordenado surge sem intervenção de invenções inoportunas surgidas a cada hora para explicar tal ou qual movimento em particular, e sim pela ação de leis mecânicas “previamente” estabelecidas.

Não se trata de mero ateísmo, todos sabemos que Kant não era ateu. Aqui não está em jogo a existência de Deus, melhor ainda, poderíamos acrescentar, “existe um Deus porque a Natureza deve proceder regularmente”. Mas isso não é ciência da natureza, e é por essa razão que não é lícito fazer intervir inteligências estranhas para explicar o movimento dos astros. Kant não rejeita o problema teológico nem o coloca como fundamento, simplesmente separa campos. O caráter “prévio” das leis físicas muda o estatuto mesmo da explicação que deve ser elaborada. Desta maneira é necessário, pelo menos, não confundir os níveis de argumentação para poder tratar como verdadeiros ou falsos os resultados das hipóteses estabelecidas. Qualquer argumentação de ordem teológica deve ser separada da demonstração da ciência da natureza.

Como referência histórica é bom lembrar que neste trabalho Kant postula o que se denomina de “nebulosa primitiva” , mais conhecida hoje como a “hipótese Kant-Laplace”, devido à semelhança de ambas. Quando Laplace apresentou sua cosmogonia à Napoleão, este perguntou ao autor qual era a função de Deus no seu sistema e Laplace contestou: “Sire, j’ai pu me passer cette hypothèse[35]. Nesta pequena anedota ilustra-se como, a partir do ponto de vista da autonomia das leis físicas, Deus só podia ser considerado uma hipótese de trabalho e não um princípio ontológico a partir do qual seria derivado o sistema na sua totalidade. Como dissemos anteriormente, tanto Deus quanto os habitantes de outros planetas podem ser considerados apenas hipóteses, e não objetos sobre os quais possamos predicar alguma coisa possível de ser estabelecida como verdadeira ou falsa. Mesmo assim a “hipótese” para Laplace foi desnecessária.

Assim sendo, de acordo com Kant, a ciência da natureza deveria separar-se rigorosamente de qualquer questão não-científica, isto é, deveria ser separada de qualquer argumentação teológica ficando só a explicação mecânica, e dar ainda mais um passo, para que esta explicação científica se torne a base sólida de uma metafísica que atinja conhecimentos certos (e não meramente arbitrários como até agora), empresa esta não tão simples.... Kant queria progredir do validamente estabelecido (de acordo com critérios provados) à problemas (ainda) sem solução (os problemas metafísicos), e não, pelo contrário, (como no procedimento dos dogmáticos) partir de hipóteses arbitrárias para explicar o dado na experiência.

Em Breve Esboço de Algumas Meditações Sobre o Fogo (1755, b)[36] Kant volta a opor a ciência natural à metafísica tradicional. Desta vez, ao se referir ao método utilizado nesse ensaio. O ponto colocado como central, de acordo com Kant, é o “de não fazer excessivas concessões ao método de demonstração hipotético e arbitrário, e seguir com toda fidelidade o fio condutor da experiência e da geometria[37].

Deste modo Kant tenta demonstrar, com argumentos mecânicos, que a coesão e elasticidade dos corpos sólidos e fluidos exigem uma “matéria elástica”, “todo corpo consta de partes sólidas unidas com uma espécie de matéria elástica”[38]. Isto permite falar de uma atração das partículas elementares ainda quando não estejam em contato direto. A matéria elástica preencheria os interstícios entre as partículas simples “redondas” e permitiria sua coesão e contração. Kant justifica esta formulação explicando que a fluidez não pode ser demonstrada pela divisão da matéria em partes lisas, pequenas e levemente unidas, assim sendo apelará para a decomposição de forças das partículas simples e exigirá a necessidade de uma matéria elástica que “comunique” sua força em todas as direções.

Na segunda parte do trabalho, com estes elementos na mão, Kant procederá a explicar alguns fenômenos físicos e químicos tais como o fogo, a ebulição, o calor, a transparência dos vidros e a natureza dos vapores.

É claro que as explicações kantianas aqui desenvolvidas ainda pertencem ao horizonte da metafísica leibniziana (por exemplo, o recurso à redondeza das partículas simples, ou o próprio conceito de força); mas o problema da constatação da ciência (através da experiência e a construção geométrica) frente à especulação da metafísica (por meras hipóteses) já é colocado na perspectiva do método e é isso que distingue Kant de Leibniz. As hipóteses devem poder ser representadas geometricamente e a explicação deve poder ser desenvolvida a partir dali.

Explicitamente procura-se um método que seja autorizado pela experiência para poder, deste modo, ampliar o nosso conhecimento com segurança. Cabe duvidar se tal propósito foi, nesse texto, alcançado ou não. Mas o que realmente aqui interessa (além de encontrar ou não um método empírico para a ciência natural) é destacar a necessidade de referir os elementos envolvidos na questão, e é isso o que constitui um problema de significação na reflexão kantiana.

 

Uma leitura semelhante faz Cassirer sobre o texto de 1746 Idéias Sobre a Verdadeira Apreciação das Forças Vivas. Segundo o nosso comentador, aquele é um texto que se inscreve no interior do campo metodológico geral e por isso ele escreve que: “não se tratava de comprovar determinados fatos concretos, mas de estabelecer um antagonismo fundamental na interpretação dos fenômenos do movimento já conhecidos e dados, não se tratava de ponderar os diversos fatos e resultados das observações, mas de esclarecer os princípios a que está sujeita a investigação da natureza...”[39].  O que o texto kantiano revelaria, e onde se localizaria o valor daquele escrito, é a preocupação filosófica pela investigação sobre as forças na natureza. Quer dizer, a preocupação de Kant teria sido sobre o modo de proceder no conhecimento, sobre o modus cognoscendi exposto na pesquisa, e não apenas sobre o resultado. Parafraseando Kant[40] podemos dizer que, é  preciso ter um método a partir do qual possamos deduzir em cada caso se a natureza das premissas abrange todo o necessário para derivar às conclusões às quais chegamos. A metódica preocupação kantiana sobre o método aparece primeiro no seu aspecto lógico, deve-se cuidar adequadamente que a conclusão seja deduzida das premissas; mas também será indicado o aspecto semântico na construção da prova: deve-se escolher adequadamente as funções da construção da prova (der Construction des Beweises) para que esta seja válida. É através da construção dessas provas que Kant tenta se separar de Leibniz e atingir uma metafísica verdadeira. E é por isso que “este método é a Hauptquelle de todo o tratado” e é aquilo que permitirá à metafísica ultrapassar  o umbral do verdadeiro conhecimento. Apesar disso, vários comentadores concordam em que as pretensões kantianas são maiores que seus resultados efetivos.

Entretanto, na Monadalogia Fisicae (1756)[41] Kant utilizará, sem qualquer restrição, um procedimento que paradoxalmente já tinha criticado, a saber: o de pretender a existência real (neste caso das mónadas) demonstrando-a segundo um simples raciocínio lógico. Isto é, sem ter mostrado sua referência objetiva na experiência. É pelo menos estranho que depois de ter afirmado a autonomia das leis da física (1755)[42], garantidas pela experiência através do método (1755 b)[43], e questionado o princípio de razão suficiente (1755 c)[44], ele tenha-se voltado para um procedimento dogmático no tratamento da existência real das coisas sensíveis. Poder-se-ia pensar, sem muita probabilidade de engano, que essas são também as tentativas de Kant na elaboração de uma nova metafísica. Nesse sentido o procedimento leibniziano, concretizado através do caráter em si mesmo legislador do pensamento  puro[45], é inteiramente tentador.

Mais tarde, em um texto de 1764 e no Apêndice da Anfibologia dos Conceitos... da CRP , Kant retomará o questionamento e criticará à Leibniz pela intelectualização dos fenômenos feita através da Monadalogia. Na época crítica o questionamento passa por não ter diferenciado o que pertence à sensibilidade do que pertence ao entendimento. O problema da existência encontra-se permanentemente presente no conjunto da obra kantiana, e por isso é preciso, para esclarecer e abordar de frente esse tópico, mostrar a trilha sinuosa de idas e vindas que é marcada no itinerário dos textos.

Ao colocar aquelas questões, a saber: a autonomia das explicações causais frente à intervenção de inteligências divinas, a necessidade de um método que leve em conta a experiência e seja comprovado por esta frente a meras construções hipotéticas, (veiculadas todas elas pelos problemas da ciência da natureza), Kant, como já temos mostrado, está procurando uma boa metafísica, que forneça resultados definitivos aos seus problemas. Mas apesar das tentativas da Monadalogia de encurtar o caminho,  esta pesquisa leva-o a observar a falta de sentido das especulações da metafísica frente à certeza que podemos ter da significação das formulações científicas. Assim Kant começa a compreender que os resultados que a ciência obtém dependem fundamentalmente dos procedimentos de doação de sentido aos conceitos dos quais esta se serve. É  nesse horizonte que se encontrará a diferença essencial do método em relação à metafísica.

Na Investigação Acerca do Esclarecimento dos Princípios da Teologia Natural e da Moral (1764)[46] Kant coloca o problema da filosofia decididamente como um problema de método: “nas ciências da natureza, o método de Newton substituiu o conjunto desordenado de hipóteses físicas por um procedimento seguro de acordo com a experiência e a geometria”[47]. Segundo Kant, algo análogo deveria acontecer na filosofia. Mas, será necessário transitar um longo percurso ainda para conquistar essa certeza.

Com efeito, Kant começa estabelecendo a diferença entre o modo matemático e o modo metafísico de atingir a verdade. Assim sendo, temos duas vias diferentes para chegar a qualquer conceito:

a) por ligação arbitraria;

b) por abstração.

As definições das matemáticas são constituídas pelo primeiro procedimento, enquanto que a metafísica procede da segunda maneira. Nas matemáticas o conceito não é dado antes da definição, mas deriva dela. Nesta disciplina a definição procede de modo sintético. Observemos os exemplos de Kant:

1) a uma figura constituída por quatro retas que determinam uma superfície plana de tal modo que os lados opostos não sejam paralelos a denominamos trapézio;

2) a um triângulo retângulo que gira à volta de um dos seus lados formando uma nova figura o denominamos cone.

Nos dois exemplos, o que está em jogo é a própria construção da figura. Essa “ligação arbitrária” indica, na realidade, a relação de construção entre o objeto e o conceito na matemática. Mesmo no caso da demonstração da divisibilidade do espaço até o infinito, o geômetra traça uma linha reta perpendicular a duas paralelas e a partir de um ponto situado em uma delas traça outras linhas que as cortam, e assim a divisão pode prosseguir indefinidamente. Deste modo os objetos dos conceitos devem poder ser construídos, sendo a definição uma ordem para construir o objeto. Poderíamos dizer então que a realidade deve ser demonstrada e não simplesmente suposta, esta demonstração é dada, na matemática, pelo procedimento de construção do objeto. A “ligação arbitrária dos conceitos” se apoia no próprio procedimento de construção, o que faz com que estes tenham referência no campo dos objetos construídos e não sejam apenas “meras definições”. De acordo com Kant, os matemáticos não definem um conceito por meio do análise do mesmo, tal como procede um filósofo. Ou melhor, nesta etapa, Kant considera que o conceito matemático pode ser analisado em partes simples que, por sua vez podem ser novamente sintetizadas[48]; entretanto, o procedimento de análise da metafísica não obtêm os mesmos resultados. É por isso que “a tarefa das matemáticas consiste em reunir e comparar conceitos dados e grandezas claras e certas a fim de ver o que daí pode resultar”, e não no simples esclarecimento do conceito.

Por outra parte, na filosofia, o que é dado previamente não é o objeto, mas o conceito da coisa e de um modo não suficientemente determinado. Não se trata -diz Kant- de dar uma mera definição gramatical da palavra tal como no caso em que “Leibniz considerava uma substância simples da qual tinha apenas representações e a  chamava mônada sonolenta. Este nome não constitui uma definição desta mônada, mas apenas o resultado da imaginação, pois o conceito não foi dado previamente, mas criado pelo próprio Leibniz”[49]. Deste modo a definição pode ser só um jogo de palavras e a realidade do objeto que deveria referir apenas um artifício da imaginação.

Vemos então que na matemática se procede construtivamente. Sendo a relação entre o conceito e o objeto uma relação de construção. A definição do conceito é, assim, uma operação para obter o objeto. Entretanto, na filosofia, a definição do conceito não passa de uma “mera definição” que não permite construir o objeto que deveria apresentar. É deste modo a filosofia fica falando no vazio, sem qualquer referência a objetos e nenhuma possibilidade de interpretar suas proposições como verdadeiras ou falsas.

Esta confusão (de definição e construção) é devida, fundamentalmente, a não se ter percebido que a natureza dos signos utilizados na filosofia é diversa da dos signos da matemática. Na filosofia os conceitos não podem ser decompostos em um pequeno número de conceitos simples, “na reflexão filosófica os signos (Ziechen) são sempre apenas palavras (Worte) que no seu conjunto não permitem ver os conceitos parciais (Teilbegriffe) que constituem a idéia completa (die ganze Idee) designada pela palavra (Worte), nem podem exprimir, nas suas combinações, as relações entre os pensamentos filosóficos. É por isso que, neste tipo de conhecimento, é preciso ter, para cada reflexão, as próprias coisas sob os olhos e é necessário representar o geral de um modo abstrato, sem nos podermos servir da considerável facilidade que é a utilização de signos particulares em vez dos conceitos gerais das coisas”[50]. Desta maneira Kant adverte-nos sobre dois aspectos. Por um lado os conceitos não devem perder de vista as próprias coisas às quais se referem, isto é, de alguma maneira devem poder ser apresentadas. E, por outro lado, a argumentação (a relação entre conceitos) deve poder ser exprimida também por signos sensíveis. Do contrário nos acontecerá o que sucedeu com Leibniz quando quis demonstrar que qualquer corpo é composto de substâncias simples. O exemplo foi oferecido, como já observamos, pelo próprio Kant na tentativa da Monadalogia.

Contudo, neste texto de 1764, Kant consegue, através da procura de um bom método para a metafísica, atingir a diferença precisa entre o modo de proceder da filosofia e da matemática. Este último baseia-se, fundamentalmente, no procedimento de interpretação dos conceitos. Esta leitura não é trivial, devido a que é necessário dar atenção à formulação de procedimentos de interpretação (construção, definição) e à polissemia dos conceitos utilizados por Kant, (é o caso do conceito de análise), para poder destacar a novidade deste texto. Do contrário, só teremos em vista mais um escrito dogmático. É neste sentido que encontramos em Ferrarin (1995)[51] uma crítica dirigida contra Hintikka que acaba reduzindo o argumento kantiano. A leitura de Ferrarin questiona uma suposta continuidade na posição de Kant sobre a matemática, orientada a descobrir nos textos pré-críticos a base para uma interpretação da intuição como evidência. Esta crítica pode ser totalmente compartilhada quanto ao estatuto da intuição no texto crítico. Uma análise apurada sobre o aparelho cognitivo kantiano nos mostraria que a intuição não é apenas a evidência da qual precisa o nominalista para referenciar ostensivamente seu conceito, a intuição é um procedimento sintético de construção, um procedimento construtivo, e não apenas um destaque. No entanto, quando Ferrarin trata da diferença entre filosofia e matemática no texto do 1764, diz que “Kant não faz menção de construção no que ele chama 'signos sensíveis' adotados pelos matemáticos: os juízos matemáticos são aqui analíticos. É verdadeiro que o caráter arbitrário dos signos adotados na matemática e a origem sintética dos seus conceitos podem ser vistos como o germe da futura noção de construção na intuição. Apesar disso, a evidência distintiva que faz da matemática uma ciência exata depende só da univocidade, imediata verificabilidade e visibilidade dos seus signos, como opostos à  indeterminabilidade das palavras que os metafísicos devem usar, mas não se podem analisar nos seus termos constituintes”[52]. Na tentativa de se distanciar do nominalismo semântico de Hintikka, Ferrarin tenta encobrir o caráter construtivo dos exemplos de procedimento matemático fornecidos pelo próprio Kant. Justamente essa  “univocidade, verificabilidade e  visibilidade” dos signos na matemática não é dada mais do que pela possibilidade de construir o objeto na “definição” não meramente gramatical do conceito. É o caráter construtivo o que diferencia a matemática como ciência exata. Do contrário, se aceitarmos o conceito matemático como mero nome, deveríamos aceitar também o nominalismo, que de fato Kant rejeita, e com esta a tese de Hintikka que Ferrarin tenta questionar.

A distinção entre a construção matemática e a reflexão filosófica, (ou entre a ligação arbitraria de conceitos e a abstração) conduz a Kant a concluir que  “nada é mais prejudicial à filosofia que as matemáticas, isto é, a imitação que ela faz do método destas em terrenos onde não tem aplicação”[53]. É justamente este o procedimento que, segundo Kant, teria sido levado adiante pelos metafísicos dogmáticos, que confundiram a diferença do modo de conhecimento entre ambas as ciências em detrimento da metafísica. Enquanto na matemática se encontra presente uma correspondência precisa entre os conceitos e seus objetos, pelo fato de que o próprio conceito é sua significação, na metafísica não é possível usar o mesmo procedimento, devido à diferença da natureza dos signos em questão. Os conceitos usados na metafísica, são “abstrações” que, segundo Kant, não sã possíveis de se fazer corresponder com seus objetos do mesmo modo que na matemática. Seria preciso então abrir outro campo de relações no qual os conceitos e os problemas da metafísica fazem sentido.

O problema do método na metafísica foi indicado à Kant, também por Lambert, fato do qual temos conhecimento pela leitura das suas cartas. O tópico está desenvolvido em uma carta do próprio Lambert de 3 de fevereiro de 1766[54] e em um outro rascunho[55] onde declara que efetivamente o “início da metafísica não são as definições, mas o que se deve saber para formar definições”. Com efeito, não se trataria de fazer meras definições apressadas, mas sim de estabelecer as condições pelas quais essas definições podem ser formuladas. Sendo assim, podemos dizer que os objetos da matemática são de tal modo que é possível construí-los de acordo com certas operações. Neste sentido as condições de possibilidade das definições são as condições de possibilidade de construir os objetos que devem se apresentar aos conceitos. Lambert coloca em jogo o próprio fundamento do saber metafísico, sua própria condição. Sabemos que as relações entre Kant e Lambert foram da maior importância para os destinos dos trabalhos kantianos. Ainda que breve, devido à morte de Lambert, a correspondência foi muito influente, ao ponto de Kant se lamentar na década de oitenta dizendo que aquele teria sido o único que compreenderia verdadeiramente sua obra.

Contudo, então, não é possível usar, na filosofia, o mesmo procedimento semântico, da matemática, para vincular o conceito a seu objeto, já que a natureza do próprio objeto não é a mesma. Poderíamos dizer que esta observação, sobre a natureza do objeto, será decisiva para a constituição dos campos semânticos que se elaborarão no período crítico[56].

Afastando a metafísica da matemática  Kant tenta aproximá-la à ciência da natureza. A matemática pode começar  pelas definições, tal como ficou demonstrado, entretanto a “primeira e principal regra da metafísica é nunca começar pela definição”[57]. Como já mostramos, a significação, neste caso, é sempre imprecisa e não conseguiríamos mais que uma definição nominal que não forneceria qualquer procedimento de relação entre o objeto e o conceito. “Devemos começar por procurar aquilo que no objeto é imediatamente certo antes de qualquer definição”[58]. Antes de qualquer nominalismo.

Poder-se-ia pensar que Kant está falando de condições “prévias” dos objetos eles mesmos antes da sua própria definição?  Talvez não seja demasiado desatino afirmar que sim, sobre tudo quando percebemos as críticas à Leibniz  e uma gradual aproximação da posição de Newton quando diz que “o verdadeiro método da metafísica é, no fundo, idêntico ao que Newton introduziu na física...”[59]. Seguindo este exemplo Kant nos dá uma motivação para continuar “Embora não descobríssemos o fundamento último dos corpos, é todavia certo que eles atuam de acordo com esta lei e podemos explicar os complicados acontecimentos naturais se percebermos claramente como eles são submetidos a estas regras bem estabelecidas”[60].

Uma posição semelhante será colocada por Kant no texto de 1766[61]  em relação ao tratamento da natureza de uma  força, e mesmo da lei de gravitação newtoniana, definindo-a, como próprio Newton, do seguinte modo: “é um efeito da atividade universal da matéria sobre si mesma”[62]. Esta definição é posta somente em um sentido ilustrativo e não nos permite conhecer a natureza da força. Melhor ainda, impede-nos regredir a uma possível origem da força caindo, desse modo, na armadilha metafísica, isto é procurar com as ferramentas do conhecimento dos fenômenos aquilo que é impossível de apresentar na experiência. Por outro lado, o fato de recorrer a qualquer explicação “espiritualista” dos acontecimentos sensíveis, na tentativa de explicá-los objetivamente,  será visto como um sinal de uma filosofia preguiçosa[63], e Kant se não gostava de alguma coisa era justamente da preguiça. Portanto, primeiramente, será insuficiente qualquer tentativa de definição nominal dos conceitos que permita criar a ilusão da existência do objeto em questão; e, em segundo lugar, será também ilícita qualquer invenção artificiosa de forças últimas ou espíritos voluntariosos na tentativa de encurtar o caminho. Ambas as alternativas são desconsideradas.

 

 

 

 

1.5- A razão da existência (acerca da distinção do lógico e do real).

 

 

Outro tópico que é possível destacar na textualidade kantiana pode ser caracterizado pela relação entre o lógico e o real. A preocupação kantiana orienta-se aqui para uma delimitação do uso da lógica na explicação do real. Trata-se de procurar um esclarecimento das regras lógicas sobre a elucidação da existência. Vejamos os próprios argumentos de Kant.

Na  Nova Dilucidatio... (1755,c)[64] a proposta principal enuncia-se da seguinte maneira: indagar “os primeiros princípios do nosso conhecimento”. Esta tarefa é indicada como o propósito da metafísica em vários de seus textos,  tanto do período pré-crítico como do período crítico. No texto de 1764 declara-se que “a metafísica não é mais do que uma filosofia que se debruça sobre os primeiros fundamentos do nosso conhecimento”[65]. Uma afirmação semelhante acharemos no texto de 1766[66] e na própria CRP[67]. Paralelamente encontraremos também o termo metafísica desenvolvido na definição de “conhecimento do supra-sensível”[68]. Esta dicotomia, mantida durante vários anos (às vezes sem muita clareza e causando confusão em alguns leitores), marcará, como veremos, um giro no pensamento de Kant[69]. Mas, apesar desta multiplicidade, para falar de metafísica neste texto (1755 c), Kant resolve desenvolver somente a primeira definição, e em relação a tal objetivo se propõe:

1) avaliar a primazia do princípio de contradição em relação a todas as outras verdades; 

2) expor uma compreensão verdadeira do princípio de razão suficiente;

3) estabelecer dois novos elementos do conhecimento metafísico.

Dado o propósito de meu trabalho não abordarei todas as conseqüências deste texto, que supera em muito o objetivo desta pesquisa. Apenas cuidarei da questão da significação dos conceitos, que é um tema específico se levarmos em conta o tratamento que Kant faz da metafísica na sua totalidade, mas também é fundamental se tentarmos assinalar, como é este o caso, o modo de formulação e resolução dos problemas dessa mesma metafísica. Por tal razão  restringir-me-ei somente aos dois primeiros tópicos e mais especificamente ao segundo.

No primeiro tópico demonstra-se a existência de dois princípios primitivos, um que fundamenta as verdades afirmativas, e outro que fundamenta as verdades negativas. Assim o enuncia a Proposição II: existem dois princípios absolutamente primeiros de todas as verdades, um para as afirmativas: “Tudo aquilo que é, é” (quicquid est, est), e outro para as negativas: “Tudo o que não é, não é” (quicquid non est, non est). Ambos são geralmente chamados “princípio de identidade”[70] (Principium identitatis). De acordo com Kant o princípio de identidade, enquanto princípio supremo, deve ser enunciado nas suas partes mais simples, “de fato, de todos os termos afirmativos, o mais simples é a palavra é , e dos negativos a expressão não é”. Quanto ao princípio de contradição, que é expresso na proposição: “é impossível que a mesma coisa seja e não seja ao mesmo tempo”, Kant diz que é uma definição do conceito de impossível que não nos permite deduzir necessariamente a verdade de um termo pela impossibilidade de seu oposto, para que isso seja possível temos que dizer que o princípio de contradição tem que supor a proposição “é verdadeiro tudo aquilo cujo oposto é falso”, o que implica que aquela proposição é composta e derivada, e não primeira.

Kant diferencia entre o estatuto do princípio de identidade e o de contradição na lógica geral a partir da simplicidade do enunciado. O que procura não é apenas um matiz estilístico e sim a clareza da regra a fim de poder ser aplicada adequadamente. É a aplicação precisa da regra o que guia esta busca de “simplicidade”. A intervenção do princípio do terceiro excluído para esclarecer o princípio de contradição mostra que é impossível aplicar este sem pressupor aquele. Enquanto que o princípio de identidade pode ser definido nos seus elementos mais simples, o princípio de contradição precisa ainda de uma outra regra para ser aplicado. O que está em jogo é o uso dessa regra.

É justamente esta tentativa a que será radicalizada no período crítico. Poderíamos dizer que é seguindo com esta advertência de 1755 que Kant faz, na época crítica, uma distinção decisiva entre lógica geral e lógica transcendental. Ele escreve: “a lógica geral abstrai de todo o conteúdo do predicado (mesmo quando negativo), e apenas considera se o predicado é atribuído ou oposto ao sujeito. A lógica transcendental considera também o juízo quanto ao valor ou conteúdo da afirmação lógica, mediante um predicado apenas negativo e quanto ao proveito que daí resulta para o conjunto do conhecimento”(CRP A 72/B97). É desde este ponto de vista que, por exemplo, o princípio do terceiro excluído, ao qual se faz menção em 1755 a partir do tratamento do princípio de contradição, terá seu uso limitado, isto é, restringido  no tópico dos juízos infinitos na crítica da razão pura (CRPA72-3/B 97-8).

A preocupação kantiana sobre o alcance e o limite das regras da lógica é colocada, no texto crítico, a partir da questão do conteúdo e, desta forma, se distingue entre lógica geral e lógica transcendental. Entretanto, essa mesma questão está também expressa no texto de 1755 como um abuso das conseqüências que se derivam do princípio de contradição quando é usado para afirmar um conhecimento. Enquanto que no texto crítico Kant adverte sobre o conteúdo da proposição para proveito do conhecimento, no texto pré-crítico previne sobre as conseqüências indevidas da mera forma proposicional. O exemplo da CRP é bem esclarecedor, Kant nos diz que, pela proposição “a alma não é mortal”, é dividida a extensão de todos os seres possíveis em mortais e não mortais, ficando, a alma, excluída de tudo o que é mortal. É assim legítimo enunciar então que: é impossível que a alma seja mortal. Apenas isso. A partir dessa proposição não se tem o direito de afirmar mais alguma coisa sobre a imortalidade da alma. A classe do não-mortal é infinita e não permite afirmar, por exemplo, que a alma seja imortal. Uma afirmação tal estaria asseverando mais do que a operação permite. O único que nós podemos afirmar é que o sujeito da proposição não pertence à esfera do conceito do predicado, mas não que pertença à esfera do conceito oposto.

A elucidação desta operação será também essencial na formulação da antinomia da razão pura. Nesse caso pode se observar que existe uma diferença muito importante entre a negação predicativa e a negação proposicional expressa no enunciado. Assim sendo “as proposições antinômicas violam o princípio do terceiro excluído com negação predicativa[71] ao afirmarem mais do que podem, e pelo qual não são formulações adequadas. Tem-se ali um uso indevido das operações lógicas para gerar proposições cognitivas. Este ponto é desenvolvido em Loparic (1990 c)[72] com a análise da estrutura lógica da primeira Antinomia.

É importante lembrar esta marca de leitura já que será útil na distinção kantiana entre necessidade lógica (determinada por meras regras formais) e necessidade real (baseada  em um fundamento extralingüístico). É aí onde começa a crítica ao princípio de razão (suficiente)  determinante. A operação é dupla, por um lado se designam as “insuficiências” do princípio de razão suficiente, e por outro se questiona o procedimento de determinação lógica para resolver a existência efetiva do real.

Em razão disso, e contra a definição wolffiana “a razão é aquilo que permite compreender porque uma coisa é em vez de não ser”. Kant chama a atenção para a confusão que está contida nessa proposição.

Para isto, começa por definir dois termos, a saber:

1) determinar: é considerar um predicado com exclusão do seu oposto.

2) razão: é a relação de determinação de um sujeito com respeito a um predicado.

Daqui surge a distinção entre razão anteriormente determinante e razão posteriormente determinante. A razão anteriormente determinante é aquela cuja noção precede aquilo que é determinado. Isto é, a noção do determinado deve ser suposta para que o predicado seja inteligível. Há uma relação de identidade entre o sujeito e o predicado. Por outra parte a razão posteriormente determinante é aquela onde a noção do determinado deve ser dada. É assim que pode se distinguir razão de ser ou dever ser, que responde ao porquê (rationem essendi), e aquela que diz respeito à razão de conhecer e responde ao o quê (rationem cognoscendi)[73]. A proposição wolffiana não permite que esta importante distinção seja feita de forma clara, motivo pelo qual Kant propõe-se a reformulá-la, pois, por: “a razão é aquilo que permite compreender porque razão uma coisa é em vez de não ser”[74]. Do contrário o estatuto do lógico não se distingue do estatuto do existente. Esta “razão” permite observar só o que é logicamente determinável e não aquilo que existe efetivamente.

Uma sentença nos enuncia o requisito lógico formal para qualquer proposição verdadeira, a saber: “Nada é verdadeiro sem uma razão determinante”; (Prop. V) “qualquer proposição verdadeira indica que um sujeito é determinado em relação a um predicado”[75]. Este requisito para a verdade de uma proposição é necessário, mas não é suficiente para explicar a razão de existência. Na sentença se expressa,  meramente, um requisito da ordem do proposicional, e o que Kant indica é a  evidência de que o que está em jogo é mais alguma coisa que a determinação formal da proposição para encontrar a razão de existência.

Mas, por outro lado e seguindo a argumentação kantiana, também não é pertinente afirmar o contrário, isto é,  “que uma coisa possui em si a razão da sua própria existência”. Kant explica a contradição dessa afirmação recorrendo ao conceito de causa como sucessão no tempo: “...tudo aquilo que contém em si a razão da existência de qualquer coisa é a causa dessa coisa. Se admitirmos a existência de uma coisa que contém em si a razão da sua própria existência, ela seria sua própria causa. Mas, uma vez que a noção de causa é naturalmente anterior à noção de efeito, e a noção de efeito é posterior à causa, a mesma coisa seria então anterior e posterior a si mesma, o que é absurdo”[76]. De acordo com Kant ser causa de si mesmo não é aplicável ao real porque conduz a uma contradição lógica. Mas, a contradição aqui (como também se observará mais adiante), não é somente definida pela lógica formal, mais uma vez, o que se procura é uma interpretação em relação com o existente. Quer dizer, com aquilo que é determinado como  experiência real no espaço e no tempo. A contradição surge porque está suposta essa relação com o real. Apesar de não haver explicitado claramente, ainda, uma teoria da idealidade do espaço e do tempo, Kant recorre reflexivamente a uma diferença entre a ordem “lógica” e a “real”. Ao formular os exemplos se apela ao conceito de causa em relação à experiência possível para poder fundamentá-lo sem “absurdos”. Na experiência tem que haver uma relação de sucessão ou simultaneidade real, (isto é, no tempo e no espaço) entre dois ou mais elementos para que possa ser estabelecida a relação de causalidade. Tem que ser possível uma serialidade para a validade do conceito, por outras palavras, o conceito de causalidade é válido em uma série de elementos dados.

Entretanto, a mera explicação da lógica formal pode ser diferente. A noção de Deus, na qual se postula que a existência divina se determina a si mesma, é uma operação de ordem ideal, mas não real, “...se todas as realidades foram reunidas, sem distinção de grau, em um determinado ser, esse ser existe. Mas se elas são apenas concebidas como reunidas, então o próprio ser existe apenas como idéia”. Kant concebe Deus, neste texto, como uma idéia, (é claro que ainda não no sentido crítico das Idéias da Razão), e apresenta uma demonstração da sua existência do ponto de vista da “essência”, embora não possa se dar uma demonstração “genealógica”.

A diferença entre operações de ordem ideal e de ordem real começa a ser estabelecida a partir da relação com o sensível. A ordem lógica sem qualquer relação com o sensível é uma operação de caráter ideal, desse modo vai-se colocando um limite ao princípio de determinação em relação com a existência. O logicismo parece ser uma espécie de “bunker” da metafísica tradicional pelo fato de fornecer uma aparência de imagem verdadeira às posições dogmáticas. A operação consiste em considerar o que é meramente lógico como se fosse conhecimento real do objeto.

Analisando a Resposta a Eberhard, nesta perspectiva, Lebrun concluirá que  “a tarefa da crítica consistirá assim em descobrir, sob os conceitos ontológicos e os princípios metafísicos da tradição, as regras e os conceitos lógicos aos quais eles só fizeram atribuir uma extensão imprecisa; ela deverá seguir a pista da confusão em todos os níveis”[77]. Com efeito, a tarefa crítica marcará os limites da extensão de certas operações e conceitos, mas, poderíamos dizer também que alguns dos questionamentos feitos por Eberhard à crítica já haviam sido superados por Kant  desde os textos do 1755, como se pode constatar com o seguimento da discussão de Kant com os textos leibnizianos.

Aqui então, temos mais um sintoma daquele mal-estar filosófico. Deus, enquanto determinado como idéia, é susceptível de uma demonstração lógica, e esse é o limite de qualquer tentativa de argumentação neste campo. Mas esta mesma operação é insuficiente para demonstrar a existência “real” (e não meramente ideal) das coisas contingentes. Por um lado, já não é possível qualquer demonstração ontológica da sua existência a partir da idéia de Deus, o trânsito de um conceito para outro está quebrado em termos cognitivos. Por outra parte, o “ser causa de si mesmo”, ainda que possível de ser postulado como ideal,  mostra-se, deste modo, contraditório para explicar a razão de existência das coisas mesmas; devemos ter sim uma razão de verdade, mas, ainda assim é preciso manter uma distinção com relação a esta, do contrário cairemos em um intelectualismo. Assim, a razão de verdade de uma proposição é determinada pela identidade entre o sujeito e o predicado. Por tal motivo, para determinar a verdade dos raciocínios lógicos só é suficiente não entrar em contradição. Mas, para determinar a verdade da razão da existência é necessário procurar essa razão determinante (além ou aquém da formalização lógica).

Com a estrutura proposicional S-P (sujeito-predicado) Kant distingue aquelas proposições nas quais é possível determinar seu valor de verdade meramente com o uso do princípio de contradição, daquelas nas quais não é suficiente esse simples recurso lógico. Isto se complica ainda mais quando Kant nos apresenta o seguinte problema; ao perguntar pelas ações (morais) da vontade: “por que cometo este ato em vez de não cometê-lo?”.  A isto posso responder de dois modos:

1)o fato deve ser colocado como absolutamente necessário e, portanto como existente em si mesmo.

2)é necessário que haja outras coisas determinando-o desta maneira e não de outra, isto é, que excluam, de uma maneira antecedente, o oposto da existência desta coisa.

O primeiro considera-se contraditório, como de resto já foi demonstrado, o segundo, de acordo com Crusius, acarreta uma fatalidade estóica, que Kant explica dizendo: “se tudo o que acontece não se pode produzir sem uma razão anteriormente determinante, então tudo o que não acontece não pode acontecer, dado que é evidente que não existe razão para isso e que sem razão, absolutamente nada se pode produzir”[78]. Segundo esta proposição um artefato, um animal e um humano funcionariam do mesmo modo sem possibilidade de diferença.

Se tudo acontece em virtude de um encadeamento natural, toda vontade, toda ação livre, todo desejo é uma ilusão impossível[79]. Para não cair nesta afirmação e ainda seguir sustentando o princípio de razão determinante, os metafísicos tradicionais recorrem a uma diferença de grau, quer dizer, faz-se uma distinção entre necessidade absoluta e necessidade hipotética (uma espécie de necessidade degradada).

Kant nos adverte do erro desta falsa distinção quando enuncia o nó do problema do seguinte modo, a saber: “Quando distinguimos a necessidade hipotética, de tipo moral, da necessidade absoluta, não está aí em questão a força ou eficácia da necessidade, isto é, de saber se em um ou noutro caso uma coisa é mais ou menos necessária; é o próprio princípio da necessidade o que está em questão...”[80]. Kant dá um passo a mais sobre isto e diz que “...a questão essencial não é saber até que ponto é necessária a existência das coisas contingentes, mas, de onde vem esta necessidade”[81]. A diferença entre as ações físicas e as ações morais (da vontade) não se reduz a uma questão de maior ou menor certeza com respeito à sua existência futura, como se fosse um encadeamento degradado de razões incertas ou uma multiplicidade de variáveis mais ou menos numerosa. O que está em jogo é um outro tipo de determinação. “...nas ações livres dos homens, enquanto as consideramos determinadas, o oposto encontra-se excluído, mas não por razões exteriores aos desejos e às inclinações espontâneas do sujeito, como se o homem fosse empurrado, contra sua vontade a realizar suas ações, por uma necessidade inevitável. Mas na própria inclinação da vontade e dos desejos, na medida em que o homem cede voluntariamente às seduções das representações, as nossas ações são determinadas por um vínculo, sem dúvida, inteiramente indiscutível, mas voluntário, segundo uma lei invariável”[82]. Na ordem das ações físicas, tanto como na dos seres privados de razão é necessária a determinação externa, poder-se-ia falar de uma determinação causal “técnica”, enquanto que a causalidade deve ser interpretada em uma série de fenômenos conexos. Por outro lado, o homem pode agir em um outro sentido, atuando com liberdade, “uma vez que os motivos do entendimento são aplicados à vontade”, isto é, uma ação determinada por razões internas. A causalidade moral é originada pela livre determinação da vontade. A inclinação espontânea da vontade é derivada de um princípio interno de “autodeterminação” e não apenas da relação encadeada com a causalidade externa. A “liberdade não consiste em ser arrastado pelos objetos...”[83] e sim naquela autodeterminação interna que pode reger os nossos atos. A vontade é compreendida aqui como participando de uma ordem distinta que a da causalidade técnica. A vontade coloca em jogo a nossa própria liberdade.

Por tal motivo temos, então, uma diferença de natureza e não de grau entre as ações físicas e as ações morais. Ambos tipos de causalidade, técnica e moral, requerem procedimentos de interpretação diferentes. Isto é, requerem semânticas diferentes, tal como Kant nos mostrará nas críticas teóricas e práticas respectivamente e como já tínhamos advertido quando tratamos, no texto de 1764[84], a diferença entre conceitos matemáticos e reflexão filosófica. Aqui, somente, tentarei aprofundar o primeiro tipo de interpretação semântica, mas, é preciso não esquecer que não é o único[85].

Neste texto encontramos, pela primeira vez, uma exposição clara da diferença entre natureza e liberdade em Kant. Esta diferença surge a partir da reflexão sobre a ambigüidade no uso do princípio de razão suficiente, ou melhor, sobre a determinação do caráter decididamente metafísico do uso de tal princípio. Assim se faz uma melhor caracterização dos juízos determinantes pela qual diferencia-se a determinação física da determinação moral. É importante ver como a ordem da moral, não sendo parte da causalidade natural, também não é um campo de fatos aleatórios feitos pelo acaso, senão uma ordem que deve ser determinada segundo um procedimento diverso ao da natureza, mas não por isso menos rigoroso, tal procedimento não é simplesmente lógico, muito pelo contrário, deve ter algum tipo de realidade, pelo qual será preciso atender aos requisitos semânticos[86].

Neste texto é colocado em questão o estatuto da demonstração lógica e o alcance desta no que se refere ao conhecimento dos objetos reais, mas isso não ficou simplesmente em uma crítica à lógica, permitiu dar mais um passo em direção àquilo que pode ser considerado real e até que ponto e como é possível determiná-lo como tal.

 

Em Acerca da Falsa Sutileza das Quatro Figuras do Silogismo (1762)[87] Kant recorre mais uma vez à tentativa de enunciar a diferença entre o domínio do lógico e o âmbito do real. Neste texto o autor estabelece que o valor do silogismo se encontra “no acordo do pensamento consigo mesmo”, e que para não entrar em conflito com o conhecimento efetivo da realidade é necessário que se clarifique a si mesmo.

Em função disso Kant enuncia duas regras fundamentais para os silogismos:

1) em todo silogismo afirmativo a característica de uma característica é uma característica da própria coisa;

2) em todo silogismo negativo o que contradiz a característica de uma coisa contradiz a própria coisa.

Estas regras são o fundamento da definição do silogismo, a saber: "todo juízo estabelecido através de uma característica mediata"[88]. A partir daqui é possível distinguir entre silogismos puros e mistos, sendo um silogismo puro aquele que contém três proposições interrelacionadas segundo as regras mencionadas. Entretanto, um silogismo misto é aquele que faz intervir uma inferência imediata para chegar à conclusão. Assim sendo, Kant considera pura a figura do tipo:

                     C tem uma característica B,

                     A tem uma característica C,

         logo,     A tem uma característica B.

E mistas as figuras:

Nenhum A é B  

Todo C é B, 

Donde, Nenhum C é A.

Todo A é B        

Todo A é C, 

Donde, Algum C é B.

Nenhum A é B 

Algum B é C, 

Logo, Algum C não é A.

 

Como é possível observar, a distinção é feita em relação à claridade formal das deduções e inferências utilizadas para chegar à conclusão. Kant privilegia a relação categórica para considerar a pureza do silogismo pelo modo em que se deduz a conclusão a partir das premissas. Mas o interesse de Kant não é meramente técnico como poderia parecer à primeira vista. Como conseqüência da sua distinção (entre silogismos puros e mistos) é possível reconhecer uma diferença ainda anterior. É a que estaria dada entre um conceito claro que é possível através de um juízo, e um conceito completo que é possível através de um silogismo, dependendo (aquela diferença de clareza) do grau de completude da série de silogismos em cadeia. Esta concepção da clareza e da completude do conceito rege a concepção kantiana de silogismo puro. Nessa concepção o que está em jogo é a analiticidade do conceito e, portanto a analiticidade da operação silogística. Do mesmo modo podemos afirmar, seguindo o texto kantiano, que tanto a capacidade de conhecer claramente, como a de efetuar silogismos dependem da faculdade de julgar. Não há diferença entre um juízo (do entendimento) e um raciocínio (da razão). A operação se distingue quanto à sua clareza, apenas isso. Por tal motivo é totalmente possível passar da determinação do conceito para o princípio necessário sem qualquer restrição. É tão só uma operação analítica estendida. E é neste sentido que se passa (também) do princípio subjetivo da razão de procurar o incondicionado ao princípio objetivo de constituição de objetos, acreditando assim que entre a idéia e o conceito não há diferença nenhuma e que é possível o mesmo tratamento aos juízos e aos raciocínios.

Este é um típico problema da metafísica dogmática, no qual Kant consegue, somente, diagnosticar o sintoma (o uso abusivo dos silogismos), mas não encontrar a origem (da doença) do problema, isto é, a diferença da origem da operação[89]. Neste sentido é preciso trazer um enunciado decisivo que tenta vislumbrar essa diferença: "uma coisa é distinguir as coisas umas das outras, e outra é conhecer as diferentes coisas. A última só é possível através de juízos..."[90]. Nesta citação Kant adverte que distinguir logicamente significa reconhecer (conhecer) que uma coisa A não é B, enquanto que distinguir fisicamente é ser levado a diferentes ações por diferentes representações[91]. Esta distinção parece, de algum modo, indicar a diferença entre a percepção sensível e o julgamento intelectual como diferentes operações. O julgamento intelectual consiste "no poder que o sentido interno tem de constituir suas próprias representações em objetos do pensamento"[92], e, portanto, em distinguí-las e reconhecê-las como tais, enquanto que na distinção física haveria um reconhecimento meramente sensível. Mas isto parece também sugerir um forte intelectualismo. O privilégio do julgamento intelectual, como verdadeiro reconhecimento e discernimento das representações, degrada e distancia a operação sensível sem qualquer possibilidade de estabelecer uma relação adequada entre ambas. Sem essa relação não há qualquer restrição na operação intelectual e o uso abusivo do silogismo é inevitável por mais pureza que nos pretendamos dilucidar.  Apesar dos seus esforços para clarificar os conceitos, Kant não consegue mais que repetir o erro dogmático.

Como ficou demonstrado, a concepção pré-crítica do silogismo em nada impede passar da determinação do conceito para o princípio necessário. Nenhuma restrição é formulada. Em contrapartida, no texto da CRP Kant muda sua concepção. Ele reconhece três tipos de silogismos, a saber: categóricos, hipotéticos, e disjuntivos; todos eles como iguais em importância. A diferença estabelecida é decisiva com relação ao texto pré-crítico, no qual, como já indicamos, o silogismo categórico é colocado como central[93]. Isto é devido ao princípio que se estabelece como fundamental para todos os silogismos tanto em um texto como noutro. Na versão crítica um princípio é estabelecido para os três silogismos: "o que está submetido à condição de uma regra, o está à regra mesma"[94]. De um outro modo, no texto pré-crítico se enuncia: "a marca de uma marca é também marca da coisa mesma". A mudança não é trivial e se deve a que no texto pré-crítico, o princípio tem uma significação intensional. Ou seja, quando consideramos um silogismo do tipo:

Todo S é P

Todo Q é S

Todo Q é P

consideramos que

a classe S contém P

a classe Q contém S

a classe Q contém P

então a inclusão silogística é intensional

ou, pelo contrário, quando enunciamos um silogismo do tipo

a classe S é parte da classe P

a classe Q é parte da classe S

a classe Q é parte da classe P

então consideramos que a inclusão silogística é extensional

O princípio pré-crítico de significação intensional coincide com a concepção da inferência, também baseada na composição intensional de conceitos. Deste modo é possível observar como o silogismo é interpretado como um juízo analítico estendido. Neste sentido Nussbam (1992) chama a atenção para ver nesta operação uma semelhança com Leibniz. Com efeito, no texto pré-crítico, Kant observa que a noção de níveis de completude de explicação de um conceito é um problema de definição[95] (seja em maior ou menor grau o que está em jogo é sempre a clarificação do conceito). Enquanto que no texto crítico o silogismo já não é definido por uma marca, mas sim por uma regra. Já não se trataria de estender a marca e sim de subsumir sob uma regra. É essa diferença a que permitirá Kant limitar o uso do silogismo no conhecimento dos objetos e diferenciar os procedimentos de doação de sentido em ambas as operações.

Apesar da advertência kantiana no texto pré-crítico de evitar cair-se em quimeras, ele ainda não consegue estabelecer uma relação precisa dos silogismos com a realidade. Como vemos o tratamento crítico desta encruzilhada deverá mudar decididamente, na segunda parte deste trabalho retomaremos e desenvolveremos mais amplamente esta questão.

 

 

 

 

1.6- História de um esquecimento ( acerca de oposição e contradição).

 

 

Como temos visto até agora, a questão da distinção entre as operações da lógica e o âmbito da existência é colocada sucessivamente e de diversos modos nas pesquisas pré-críticas de Kant, desta vez, encontra-se em uma nova relação com a matemática.

Em Ensaio Para Introduzir o Conceito de Magnitudes Negativas... (1763)[96] Kant escreve:  “Do esquecimento do conceito de magnitudes negativas tem surgido uma multiplicidade de falhas ou falsas interpretações...”[97]. Mas, este esquecimento é um efeito do procedimento errado que, -segundo Kant-, os metafísicos adotam com respeito às matemáticas.

A metafísica tenta imitar o método da matemática, mas, com isso, apenas consegue confundir seus procedimentos sem alcançar nenhuma utilidade. Assim a metafísica também não consegue justificar suas proposições, caindo em contradições e construções artificiosas. Isto se deve -de acordo com Kant- à falta de compreensão dos metafísicos tradicionais sobre a matemática, motivo pelo qual são levados a levantar questões erradas, tais como que a matemática coloca por fundamento conceitos que não são tirados da natureza de um outro conceito. Quer dizer, que não são obtidos analiticamente. Tal é o caso do estudo da geometria sobre o espaço[98]. Com efeito, poder-se-ia dizer que a geometria não “tira” analiticamente do conceito de espaço suas propriedades, tal como observamos no texto de 1764[99], mas as constrói. É justamente esse o problema que Kant  vai colocar neste ensaio. Mais do que “imitar o método da matemática” obtendo resultados nefastos para a metafísica, é melhor tentar compreendê-la no que se refere aos seus procedimentos, reconhecendo a diferença entre dois modos de conhecimento racional, a saber, matemático e filosófico.

Trata-se aqui então, de abordar um conceito conhecido em matemática, mas ainda alheio à filosofia: o conceito de magnitudes negativas. Para explicar este conceito, Kant apela às seguintes definições:  “Uma coisa opõe-se a outra: uma delas suprime o que tem sido posto pela outra. Esta oposição é dupla, ou lógica em virtude da contradição, ou real, quer dizer sem contradição”[100].  Kant adverte que a oposição lógica foi a única compreendida na filosofia, esquecendo-se da oposição real.

A oposição lógica só diz respeito àquela oposição pela qual dois predicados suprimem-se em virtude da contradição [ a Ú a ] . Esta operação consiste na afirmação e negação da mesma coisa de uma  vez, e a conseqüência é absolutamente nada (nihil negativum, irrepraesentabile) como declara o princípio de contradição.

A oposição real  é aquela em que dois predicados de uma mesma coisa opõem-se, mas não em virtude do princípio de contradição. Aqui, um suprime o outro, não obstante, neste caso, a conseqüência é algo (cogitabile, repraesentabile). Apesar disso, igualmente, há uma verdadeira oposição sem contradição (nihil privativum). É uma oposição entre dois predicados duma mesma coisa, em que ambos predicados são afirmativos [a, b], e, portanto não é negado por um o que se diz noutro (a oposição real é subdividida por sua vez em opositio actualis e potentialis). Deste modo, uma magnitude é negativa em oposição a outra na medida em que a primeira não pode ser captada junto da segunda,  a não ser mediante a oposição[101].

Kant determina esta oposição real em duas regras fundamentais:

1)só tem lugar na medida em que duas coisas, enquanto fundamentos positivos, uma anula a conseqüência da outra.

2)sempre que existe um fundamento positivo há uma oposição real, embora o resultado possa ser zero, quer dizer que um fundamento está em conexão com outro fundamento positivo que é a negativa do primeiro.

Para esclarecer a possibilidade de aplicação do conceito Kant fornece exemplos de outras ciências além da matemática, como por exemplo: a atração na física, o desagrado em psicologia e o vício na filosofia prática. Em todos esses exemplos não é a contradição, mas sim a oposição o que permite construir e explicar o fenômeno.  Os princípios de identidade e de contradição são limitados à análise, e é por isso que se necessita de mais alguma coisa para poder exprimir a relação com aquilo que efetivamente existe.

Contudo, esta indagação (que não é sistemática, e só tem um caráter problemático), coloca como fundamental, (na sua procura por achar uma operação que enuncie a relação com o objeto), a seguinte pergunta: “Como posso eu entender que porque algo é, algo distinto também é?”[102].

Para resolver esta questão a análise lógica, a partir fundamentalmente do princípio de contradição e o de identidade, permite-me respondê-la em certa medida. Diz Kant: “Eu compreendo como pode se pôr, segundo a regra da identidade, uma conseqüência em virtude de um princípio, posto que mediante a análise do conceito descobre-se que aquela está contida nesta. (...) Posso entender esta conexão do princípio com a conseqüência, porque a conseqüência se identifica com um conceito parcial do princípio”[103]. Através de um procedimento de análise do conceito, segundo a regra da identidade, estabeleço a conexão com o conseqüente. Este tipo de relação chama-se "relação de identidade".  Até aqui a resposta da lógica formal é pertinente, mas a dificuldade do problema começa quando algo se deriva de uma outra coisa, mas não simplesmente segundo o princípio de identidade. Por exemplo, “...a chuva não é posta pelo vento segundo um principio de identidade...”. Aqui temos uma conseqüência real na qual pode se dividir o conceito quantas vezes se quiser sem nunca encontrar a conseqüência contida nele. A lógica formal tradicional não permite formular esta distinção.

O problema aqui colocado é análogo ao da Nova Dilucidatio na qual se mostra a impossibilidade da determinação formal da existência efetiva. Este será, para Kant, um verdadeiro obstáculo a superar, porque, se por um lado ele não tentará reduzir a existência à mera formalização lógica (ao menos depois da Monadalogia), também não conseguirá explicitar, até a elaboração da filosofia transcendental, um procedimento de significação corretamente justificado que permita dar conta desta diferença.

Sendo assim, podemos dizer que o estudo das magnitudes negativas permitiu a Kant refletir sobre os juízos de princípio e conseqüência. Estes podem ser distinguidos em dois tipos:

1)aqueles nos quais a relação é de identidade, isto é, de um princípio lógico se deriva sua conseqüência[104];

2)aqueles nos quais a relação de um princípio real com algo que por ele é posto ou suprimido não pode ser expressa simplesmente pela identidade, é necessária mais alguma coisa do que o princípio lógico para que a validade objetiva do juízo possa ser fundamentada[105].

O que mais uma vez está em jogo é a relação de significação entre os objetos e os conceitos. É por isso que a pergunta sobre o vento e a chuva pode ser traduzida por: Como é que eu posso exprimir em uma proposição com sentido (isto é, possível de ser verdadeira ou falsa) uma relação de necessidade, mas não de identidade? O problema sobre a existência torna-se relevante.

Em O Único Fundamento Para a Demonstração da Existência de Deus (1763)[106] Kant  vai considerar que a existência não é um predicado lógico ou uma determinação lógica, mas sim a posição de uma coisa. No questionamento à demonstração ontológica da existência de Deus, Kant começa estabelecendo a existência em geral como “a posição absoluta de uma coisa”[107]. Distingue “existência” de “atributos”, sendo que “um atributo não é aplicado a uma coisa mais do que de um modo relativo”. Neste sentido a existência também não é um complemento da possibilidade de uma coisa (tal como parece ser em Wolff), ou a completa determinação interna de um objeto (como em Baumgarten).

Deste modo, as provas ontológicas que Kant considera errôneas podem ser caracterizadas, fundamentalmente, em duas espécies:

a) a cartesiana, que parte da pura possibilidade; e

b) a wolffiana, que parte do conceito de causa primeira.

A demonstração cartesiana começa por se fazer a idéia de uma coisa possível que contém toda verdadeira perfeição, sendo a existência entendida ela mesma como um elemento da perfeição da coisa, então se conclui que de acordo com a possibilidade do ser mais perfeito é preciso que ele exista. Assim dizemos : Deus é perfeito, a existência é parte da perfeição; portanto Deus existe.

Com efeito, no texto de Descartes a existência está compreendida na idéia do Ser mais perfeito, do mesmo modo que está compreendida na idéia do triângulo que a soma dos três ângulos é igual a dois retos[108]. Encontra-se assim uma indiferença entre o ideal e o real. Do mesmo modo como é verdadeira a propriedade de um triângulo, de acordo com certas exigências, é também verdadeira a existência de Deus, de acordo com a exigência da sua perfeição absoluta.

Kant rejeita a idéia de que a existência é aquilo que “falta” a uma coisa para que possa ser totalmente determinada, e assim então, deduzida a priori, como acontece com o argumento ontológico de Descartes. Em contrapartida, ele enuncia que a existência não pode ser deduzida pelo simples procedimento lógico, a existência não é um atributo nem mesmo da perfeição. Segundo Kant é preciso distinguir o que é meramente pensado, mesmo sem contradição, do que é existente. De uma definição que relacione diferentes atributos destinados a compor a noção de alguma coisa possível não se pode concluir necessariamente a existência dessa coisa, nem mesmo a existência de Deus[109].

Por outro lado, a prova (wolffiana) que, afirma que pelo princípio de causalidade, aplicado aos dados experimentais, se deduz a existência de uma causa primeira e absoluta, também é posta em dúvida. Pois, o princípio de causalidade é estendido das causas e os efeitos entre as coisas até chegar à necessidade de uma coisa independente de qualquer outra e totalmente necessária. Esta afirmação está apoiada sobre o princípio de razão suficiente. Princípio este que fora da experiência -diz Kant- é sempre discutível na sua aplicação[110]. Deste modo, da simples análise lógica do conceito de causa passa-se a falar dos atributos da causa, sendo estes os da divindade. Tudo sucede como se alguma coisa existe por causa de uma outra coisa que existe absoluta e necessariamente, do qual se podem deduzir  os atributos da mais alta perfeição, sem levar em conta a diferença entre o encadeamento lógico e a existência real de uma coisa e seus atributos.

Neste texto Kant não somente faz uma análise do problema da existência em relação polêmica com outros filósofos, senão que também prepara a distinção, fundamental na crítica, entre sensibilidade e entendimento por meio da diferença entre o argumento ontológico e o argumento cosmológico da existência de Deus. Desta maneira, a questão da existência se apresenta como elemento decisivo para a distinção sensível / intelectual. É por isso que é possível traçar um paralelo entre os dois textos.

Desenvolvamos o exemplo. Em Heidegger (1962)[111]  afirma-se que, já neste texto pré-crítico, está enunciada a tese crítica sobre a existência. “Ali encontramos já a tese de Kant sobre o ser, e nela a dupla forma de enunciado negativo e afirmativo. A redação de ambos enunciados coincide em certo modo com a da  Crítica da razão pura. O enunciado negativo estabelece no escrito pré-crítico que: “A existência não é o predicado ou a  determinação de coisa alguma”. Entretanto o enunciado afirmativo declara que: “O conceito de posição (ou Setzung ) é totalmente simples e o mesmo que o de ser em geral”. Nesta leitura Heidegger nos mostra os dois termos contrapostos: Não-determinação / posição. Assim a existência é vista positivamente como posição de uma coisa com respeito ao sujeito. Posição frente ao sujeito. E negativamente como impossível de ser determinada logicamente a priori. Ambos aspectos são mantidos na elaboração crítica. Mas, seguindo a Heidegger, é  possível explicitar o que vai mudar no segundo período: “Para a interpretação crítico-transcendental do ser do ente, já não vale a tese pré-crítica de que o ser não é um predicado real (óntico), mas sim um predicado transcendental (ontológico)”[112]. Isto não significa que Kant retorne à antiga idéia do real como simples predicado da coisa, muito pelo contrário, na etapa crítica, o questionamento será radicalizado. A existência como predicado lógico é totalmente questionada no que respeita à sua fundamentação; a existência de uma coisa enquanto tal não pode ser determinada a priori logicamente, ela tem que ser dada, colocada, posta perante o sujeito. É neste sentido que também não deve se entender como se fosse um predicado óntico entre outros, como um predicado que falta à coisa para que esta possa ser ela mesma. A existência está no registro do ontológico enquanto que é um modo de ser do objeto, ser dado, ser presente.

O problema conseqüente é saber o que significa em Kant essa “dadidade” do objeto, em que sentido o objeto é dado quando apenas temos acesso ao fenomênico e nunca à coisa em si mesma, em que medida o objeto se faz “presente” quando a experiência na qual se apresenta o fenômeno é uma experiência construída. Isso tudo pode ser pesquisado na CRP em termos semânticos. A passagem do tratamento pré-crítico para a elaboração “ontológica” da existência (nos termos críticos) é coroada em uma formulação “semântica” do problema. O esquematismo das categorias modais é o resultado. Neste sentido uma leitura cuidadosa do esquematismo transcendental, como a forma kantiana de colocar o problema da relação entre ser e tempo, permitir-nos-ia uma aproximação mais acabada ao tema da presentidade na filosofia crítica. Por enquanto apenas mencionamos a questão, já que esse trabalho se estenderia fora dos limites do nosso objetivo.

 

 

 

 

1.7- Os ventos hipocondríacos (acerca do mal-estar e da ironia).

 

 

A distinção entre o campo da lógica e o âmbito da existência (e portanto a limitação dos princípios lógicos formais no conhecimento teórico das coisas existentes), a crítica ao princípio de razão suficiente, a distinção do conhecimento matemático e do conhecimento filosófico, e a diferença de natureza entre a determinação natural e a determinação moral, entre outras coisas, levam Kant a uma crítica tenaz contra o dogmatismo da metafísica tradicional, tal como se observa em Sonhos de um Visionário Explicados Através dos Sonhos da Metafísica (1766)[113], texto este, quase cético. Aquela  longa procura de uma boa metafísica foi desalentada pelos resultados obtidos nas pesquisas anteriormente citadas e, já convencido da impossibilidade de tal empresa, Kant, dedica-se  agora a uma “crítica dos sonhos”.

A obra que motiva o ensaio de Kant é um longo tratado místico-religioso escrito por E. Swedenborg, no qual se ocupa do oculto, das aparições e da relação com os espíritos separados. Este trabalho permite a Kant realizar uma crítica generalizada não só contra os “sonhadores dos sentidos”, quer dizer, aqueles que acham ter visões místicas, mas também, contra os “sonhadores da razão”, aqueles que acham poder conhecer além da experiência. Esta crítica dos sonhos tem duas partes, uma semântica, que trata das significações (os sonhadores da razão), e outra empírica, que trata das perturbações físicas e das doenças mentais (os sonhadores dos sentidos).

A irônica crítica kantiana começa levando a sério a proposta mística e tentando fazer um tratamento racional e especulativo do tema dos espíritos. Kant se pergunta pela significação do conceito de espírito (der Geist). O que é aquilo que o conceito de espírito enuncia? Para nos aproximar a alguma definição o texto indica a possibilidade de podermos dizer que um espírito parece ser uma entidade não material que possui razão. Fato difícil de compreender à primeira vista. “Para entender esse oculto significado -diz Kant- tomo meu mal compreendido conceito em todos seus usos e, observando a quais convém e em quais é rejeitável, espero revelar seu sentido escondido”[114]. Trata-se de achar o significado pelo uso em diferentes proposições, que pertencem a distintos tipos de discurso. No desenvolvimento desse trabalho, Kant faz uma citação de rodapé que esclarece os procedimentos que ele leva em conta para realizar tal tarefa. Neste sentido é pertinente reproduzir algumas partes desta longa, embora importante passagem para, deste modo, poder localizá-los claramente[115]: “Se o conceito de espírito fosse abstraído dos nossos conceitos de experiência, então o procedimento para esclarecê-lo resultaria fácil, só teria que enunciar em tal gênero de  seres aqueles caracteres que nele mostram os sentidos e mediante os quais os diferenciamos das coisas materiais. Mas se fala de espíritos ainda quando se duvida de que existam tais seres. Portanto, o conceito de natureza espiritual não pode ser considerado como abstraído da experiência”. Adverte-nos Kant:  “muitos conceitos surgem de ocultas e obscuras inferências, por causa de experiências, e se transferem depois a outras sem consciência da experiência ela mesma nem da inferência que a partir dela se elaborou”. Donde podemos inferir que ... “assim existem muitos conceitos que, em parte, não são mais que uma ilusão da imaginação, e, em parte, são também verdadeiros posto que as inferências obscuras  nem sempre resultam equívocas. A linguagem usual e a conexão de uma expressão com diferentes contextos nos quais freqüentemente encontra-se uma mesma característica fundamental outorgam-lhe um significado determinado que, em conseqüência, só pode ser desvelado se tirarmos da obscuridade esse sentido oculto mediante uma comparação com todos os usos que concordem com ele ou que o contradigam”[116] Como podemos observar, nesta citação não se trata de rejeitar sem mais o conceito de espírito, nem de fornecer uma definição vazia de referência objetiva; isto é, nem um ceticismo preconceituoso, (e aqui vale lembrar as palavras do prefacio: “sendo néscios preconceitos tanto não acreditar sem fundamento algum em nada do muito que se encontra com certa aparência de verdade,  como acreditar tudo o que diz o rumor público”[117]), nem tampouco, como dissemos, uma credulidade dogmática. Na primeira parte da citação, Kant explica o procedimento dos conceitos empíricos obtidos pela abstração de notas características que nos fornecem os sentidos, na segunda parte trata da transferência dos conceitos. Este último é o procedimento utilizado por Kant no corpo do texto, (conduzido basicamente por meio da oposição às propriedades da matéria, fundamentalmente a da impenetrabilidade), e através do qual chega a uma definição de espíritos, a saber: “seres que não possuem em si mesmos a propriedade de impenetrabilidade e que nunca poderão formar um todo sólido (...) Os seres simples desta classe se chamam de imateriais, e, se possuem razão, espíritos....” (e afirma ainda...).  “Ou o nome de espírito é uma palavra sem sentido ou seu significado é esse”[118].  Mas, no melhor dos casos, esta é uma definição que não nos permite assegurar  sua realidade objetiva, é tão só um conceito sem objeto. “Com efeito, -diz Kant-, geralmente se considera que é possível captar a possibilidade daquilo que pertence aos conceitos comuns de experiência. Pelo contrário, do que se afasta deles e não pode se fazer compreensível por meio de experiência alguma, nem mesmo por analogia, disto realmente não pode se formar nenhum conceito, razão pela qual costuma-se rejeitá-lo como impossível”[119]. Kant faz aqui uma distinção decisiva entre conceitos possíveis, isto é, aqueles que têm seu referente na experiência, e, conceitos impossíveis, ou seja, aqueles que de modo nenhum se dão na experiência e são contraditórios. No texto crítico manterá a questão da referência embora mude a hierarquia das classes de conceitos. Isto possibilitará salvar o estatuto de conceitos de objetos "impossíveis" que são utilizados corretamente na experiência.

Com efeito, nos explica Kant que o conceito de força, embora sendo pertinente à experiência, esta não nos permite compreender a possibilidade daquela por meio da apresentação de um objeto. “Através da experiência só se pode descobrir que as coisas do mundo que chamamos de materiais têm tal força, mas nunca compreender sua possibilidade”[120]. O conceito de força ainda sem objeto, permite-nos pensar uma atividade das nossas representações empíricas. Contudo, não acontece o mesmo com o conceito de espírito, o qual sugere a impossibilidade de pensá-lo neste sentido. Embora devamos dizer também que não se trata de uma impossibilidade provada, “.....pode se supor a possibilidade de seres imateriais sem temor de ser refutado e sem esperança de poder demonstrar essa possibilidade mediante argumentos racionais”[121]. Apesar disso,  sua suposição não permite explicar os fenômenos da experiência de um modo objetivo; “...o recorrer a princípios imateriais constitui um refugio para a filosofia preguiçosa, e, por isso, tem que se fazer todo o possível por evitar explicações dessa espécie...”[122]

Continuando seu trabalho, Kant tenta aplicar o conceito de espírito às ações morais e, da mesma forma como aconteceu anteriormente, também aqui se provará sua impossibilidade, razão pela qual, já sem poder dar uma clara significação ao conceito, nos adverte que: assim como existem “sonhadores da razão” que elocubram em vez de observar, existem também “sonhadores da sensação”, são aqueles que têm trato com os espíritos. Devido a isso, Kant recorre agora a explicar o acontecimento como um fenômeno da imaginação ou algum tipo de perturbação no cérebro ou no sistema nervoso da vista. Assim sendo, o trato com os espíritos só pode ser explicado racionalmente destas duas maneiras. Quer dizer, como uma confusão semântica ou como uma perturbação mental. O que conduz à conclusão de não mais aceitar uma proposta desse tipo no registro das explicações causais da experiência. Que também pode ser alternativamente ilustrada, (de modo muito particular) com uma citação das palavras do poeta que foram pertinentes para Kant, a saber:  “O aguçado Hidibras poderia ter-nos solucionado o enigma, pois segundo sua opinião: quando um vento hipocondríaco se desencadeia nos intestinos, dependendo da direção que tome, se vai para em baixo é um p...., se vai para acima resulta uma aparição ou uma inspiração santa”[123].

Além desta licença literária, a única legitimação possível das “histórias sobre aparições das almas separadas ou sobre influxos de espíritos e todas essas teorias sobre a natureza provável dos seres espirituais e sua relação conosco é só a esperança frente à morte”. Esse “esperar” não explica nada teórica e objetivamente, embora não possa ser rejeitada por ciência alguma. Ao final deste mesmo ensaio Kant faz uma paráfrase do texto de Voltaire[124] na personagem de Cândido e convida-nos a “cultivar o nosso jardim”[125]. Nesse “cultivar” podemos dizer que a esperança, no sentido de “esperar que alguma coisa aconteça, inclusive nossa própria morte”, torna-se regulativa de nossa tarefa.  Assim a esperança fica como um olhar desde a finitude  do homem aquém de qualquer tradição metafísica, longe de todo saber teológico.

Sobre este tipo de questões só pode-se opinar (diria Kant) e até de forma diferente, mas nunca saber algo positivamente ao seu respeito. Além disto só se tem um proveito negativo desse saber; dado que podemos “desenvolver esta teoria até o final, mas só no entendimento negativo porquanto este determina com certeza os limites do nosso conhecimento e convence-nos de que tudo o que nos é dado conhecer são os diversos fenômenos da vida na natureza e suas leis; ora, o princípio desta vida, quer dizer a natureza espiritual, que não se conhece, mas que se supõe, nunca pode ser pensada em forma positiva, posto que não se encontram dados para isto em nenhuma das nossas sensações; convence-nos também de que seria necessário se valer de negações para poder interpretar algo tão diferente de todo o sensível, e inclusive, de que a própria possibilidade de tais negações não se fundamentem nem na experiência, nem nos raciocínios, mas na ficção a que recorre uma razão desprovida de qualquer outro recurso”[126]. O valor negativo do trabalho toma um caráter inteiramente crítico enquanto que nos permite estabelecer os limites  do conhecimento teórico. Esta posição é reafirmada na etapa crítica. Em esta perspectiva poderia ser pensada, com algum esforço, uma teologia negativa. Os textos de alguns comentadores, como Freuler e Caimi, sugerem essa possibilidade. Mas também podemos indicar que esta tarefa, de pensar a esperança e a religião, foi efetivamente desenvolvida em diferentes textos das décadas de 80 e 90, entre os quais contamos a Crítica da Faculdade de Julgar e a Religião nos limites da mera Razão.

Assim, a tarefa abordada não é um simples passatempo para colecionar relatos sobre histórias de fantasmas, Kant assegura que a este trabalho o motiva outro propósito. É deste modo que chegamos a uma declaração fundamental reproduzida nesta citação: “A Metafísica, da qual estar apaixonado é o meu destino (das Schicksal)  (...) oferece dois tipos de vantagem. A primeira consiste em fazer as tarefas que provoca o espírito indagador  quando trata de descobrir mediante a razão propriedades ocultas das coisas. Mas nesta o resultado desalenta a esperança (...). A outra vantagem resulta mais adequada à natureza do entendimento humano e consiste em comprovar se a tarefa é proporcionada àquilo que se pode saber, e que relação tem com os conceitos de experiência sobre os quais devem se apoiar todos os nossos juízos. Neste sentido a Metafísica é uma ciência dos limites da razão humana...”[127]. Aqui (como em qualquer declaração de amor honesta) encontramos uma confissão que, aquém de ser decididamente reveladora, possui uma importância decisiva com relação à  determinação da tarefa empreendida, a metafísica é a verdadeira preocupação de Kant nas suas reflexões. Observemos que este ensaio está longe de ser uma simples rejeição cética da metafísica. Neste sentido é importante observar a carta a Moisés Mendelsohn de 8 de abril de 1766 que fala deste texto. ”Estou tão longe de considerar a Metafísica -objetivamente- como insignificante e inútil que, sobretudo, desde algum tempo (a partir de que acho ter compreendido sua natureza e lugar entre os conhecimentos humanos) estou convencido de que dela depende ainda o autêntico e permanente bem do gênero humano...”[128]. O conceito “Metafísica”, como quase todos os conceitos importantes utilizados por Kant, possui um caráter polissêmico (como observo e advirto ao longo de todo este trabalho).  Até aqui podemos observar que tem pelo menos dois sentidos, um é aquele no qual a metafísica deve ser questionada, trata-se do dogmatismo teórico; outro no qual ela é uma tarefa por se fazer, que não nos fornece nenhum  novo conhecimento, (e é isso que deve ser destacado e lido com atenção), mas nos evita a ilusão dogmática.

A ilusão da razão será um dos tópicos essenciais da etapa crítica de Kant, devido a que ele indagará, a partir do interior mesmo da razão, a geração das suas “ilusões”. Isto não implica em mais um “novo conhecimento”, quer dizer, na extensão dos nossos conhecimentos positivos, e sim em um conhecimento das próprias condições de possibilidade do conhecimento positivo. O projeto da etapa crítica consiste em desarticular a “ilusão metafísica”.

Entretanto,  é possível, no decorrer dos textos kantianos encontrar ainda mais sentidos do termo “metafísica”. Por exemplo, na Crítica esboçará a idéia de uma Metafísica da Natureza e uma Metafísica das Costumes, empresa esta que desenvolverá explicitamente nos correspondentes textos. Por outro lado, nas cartas falará de um compêndio de metafísica que, pela cobrança de seus amigos, parece jamais ter sido escrito. No texto da declaração pública de 1799 decide que a crítica é o próprio sistema metafísico, e assim por diante. 

Esta polissemia também faz problemática a leitura da Arquitetônica na CRP tal como se nota em  Freuler (1992)[129], onde é preciso recorrer até aos manuscritos de aula para dar algumas conclusões ao respeito. Outra perspectiva do tema é dada em Caimi (1992)[130], onde poder-se-ia dizer que se resgatam aqueles dois sentidos (questionamento e tarefa), mas, através de uma leitura dos Progressos da Metafísica... e, a partir da qual, seria possível falar de uma metafísica especial após os resultados da Dialética.

Contudo, neste ensaio, Kant começa a apresentar a idéia de uma filosofia crítica “que julgue sobre seu próprio proceder e conheça não só objetos, mas também sua relação com o entendimento humano”, que trate de analisar os limites do conhecimento teórico e que restrinja as ilusões do pretendido conhecimento metafísico. A atividade filosófica se vê aqui como terapêutica, enquanto que tenta acabar com as ilusões da razão (suas doenças). Neste sentido as metáforas “médicas” empregadas por Kant são muito ilustrativas e permitem explorar diferentes variantes.

O labor crítico deixa de ser um questionamento  de temas parciais para passar a ser uma tarefa. Na procura de uma boa metafísica a crítica era apenas questionamento das incertezas, agora, aquelas incertezas, que se apresentavam como um certo mal-estar, tornam-se verdadeira impossibilidade.

 

 

 

 

1.8- O mal-estar declarado.

 

 

Todos estes trabalhos do período pré-crítico, junto a alguns outros que aqui não desenvolvi, não deixam de fazer aparecer a preocupação de Kant com as ciências. Ele é um profundo conhecedor das ciências da sua época, escreveu durante toda sua vida uma série de monografias sobre temas particulares de ciência da natureza, psicologia, geografia, antropologia, etc..., como também ministrou aulas sobre tais disciplinas. Não só teve simples curiosidade acadêmica, foi um verdadeiro pesquisador. Mas o que podemos destacar como fio condutor de sua tarefa filosófica é sua insistência em enunciar a impossibilidade da metafísica em tratar com fundamento seus próprios problemas. O interesse kantiano pelas ciências é um interesse “filosófico”, se compreendermos por isso as condições em que é formulada uma questão. Independentemente de achar ou não uma solução para tal ou qual problema particular no âmbito das ciências o que realmente interessa é saber como é que elas funcionam. Kant observa permanentemente a certeza dos avanços da ciência, enquanto que a metafísica fica atrapalhada em contradições e desajustes semânticos; esse será o nó kantiano, frente à afirmação dogmática e à rejeição cética, Kant estabelecerá o problema da metafísica como um problema semântico. Esse problema deverá ser sistematizado.

Sua primeira tentativa de sistematização será esboçada em  Dissertatio...(1770)[131], mas, só nos anos oitenta poderá ser realmente feita. É pertinente dizer aqui que também algumas cartas e reflexões da época indicam assim o problema. A idéia geral de uma crítica da razão pura já aparece em cartas e escritos de 1766. Na Rx. 4929 (escrita em 1776 ou 1778) podemos ler: “Tentei com toda seriedade demonstrar proposições e seus contrários, não para erigir uma doutrina da dúvida, mas, suspeitando de uma ilusão do entendimento, para descobrir onde residia. O ano de 69  me proporcionou uma grande luz”[132] . Aqui Kant  já parece ter observado o conflito da razão consigo mesma. O ano de 1769 também teria sido o momento da transição à concepção da idealidade do espaço e do tempo, (entre o texto sobre as regiões do espaço de 1768[133] e a Dissertatio de 1770) que, como veremos, tem uma função essencial no tratamento desses problemas.

A reveladora carta a Garve de 21 de setembro de 1798, como observamos no inicio deste trabalho, nos aponta mais um dado acerca da origem da sistematização dos problemas: “o ponto de partida não foi a investigação da existência de Deus, da imortalidade, etc..., mas a antinomia da razão pura... Foi ela que me acordou pela primeira vez  do sonho dogmático e me levou à crítica da própria razão, para fazer cessar o escândalo de uma aparente contradição da razão consigo mesma”[134]. Com efeito, pareceria ser que com a formulação da Antinomia aquele “mal-estar” encontra seu ponto mais crítico. O mal-estar começa a ser formulado e elaborado como tal.

Entretanto, encontramos em Prolegômenos...(1783)[135] uma outra confissão que contribui a esclarecer o assunto, a saber: o problema levantado por David Hume, “o mais engenhoso dos céticos”, coloca em questão a metafísica toda, (esta passagem é decisiva na fala de Kant) “a advertência de David Hume foi precisamente o que há muitos anos interrompeu pela primeira vez meu sonho dogmático e deu às minhas investigações uma direção totalmente diferente”[136]. Hume perguntou-se pelo conceito da conexão de causa e efeito, força e ação, etc. e exigiu a razão pela qual se pensa que algo pode estar constituído de tal modo que, se é colocado, também, necessariamente, uma outra coisa deve ser colocada....“tentei, diz Kant, em primeiro lugar ver se a objeção de Hume não se podia representar em geral, e encontrei logo que o conceito de nexo, de causa e efeito, não é o único mediante o qual o entendimento pensa a priori  as conexões das coisas, mas, a metafísica toda consiste inteiramente nisso” [137]. É a elaboração sistemática do questionamento humeano o que fará com que achemos a chave do problema.

Portanto seja qual for o ponto de partida de Kant, o que está em jogo nos textos é uma questão semântica. Tanto as antinomias da razão como o questionamento da aplicação do princípio de causalidade são um e o mesmo problema semântico que conduz à pergunta pelas condições de possibilidade da metafísica enquanto conhecimento do supra-sensível. Esse ponto é também colocado em Progressos...(1791)[138] sob a forma da pergunta sobre o “que é que a razão quer com a metafísica?”[139]. Deste modo, Kant indagará as condições de possibilidade da significação das perguntas pelo sensível e pelo supra-sensível.

No período pré-crítico, então, temos os sinais de uma nova maneira de colocar os problemas da metafísica que já não terá nada a ver com a construção de mais uma ontologia, (naquele sentido em que o realismo transcendental falava das coisas em si, solução esta decididamente questionada), nem mesmo com simples critérios logicistas, este será o início da futura filosofia transcendental.

 

 

 

 

1.9- Conclusão

 

 

O ponto de partida deste trabalho foi a proposta de leitura da “razão como razão problemantizante”. As investigações aqui consideradas, e que foram desenvolvidas em Loparic (1982), Lebrun (1970) e em Allison (1983), compartilham uma leitura da CRP a partir dos problemas necessários da razão. As perspectivas destes trabalhos indicam um ponto em comum: “a questão da problematização na filosofia crítica”. Quer dizer noutras palavras, a razão enquanto “razão problematizante”. Esta questão torna quase que inevitável à preocupação semântica. Porém, a pesquisa deverá levar em conta que os problemas devem poder ser formulados em um certo campo semântico, isto é, respondendo a certos requisitos semânticos que constituam uma ordem de sentido, para poder ter referência e significação e assim terem possibilidade de serem verdadeiros ou falsos.

No entanto esta problemática, como indicamos, já é desenvolvida, em determinados aspectos, nos textos do período pré-crítico. Isto foi possível  mostrar a partir de uma reconstrução, embora introdutória, não meramente cronológica ou evolutiva e sim temática destes textos, a saber, a relação entre ciência e metafísica, a distinção entre lógico e real, a diferença entre oposição e contradição e a explicitação do próprio problema da metafísica como problema de significação. No seu afã de procurar uma boa metafísica Kant encontra problemas de significação em cada um desses tópicos. Na relação entre a ciência da natureza e a metafísica, que é uma das problemáticas fundamentais da tarefa kantiana já nos primeiros escritos, coloca-se o problema dos diferentes registros argumentativos de cada tipo de discurso, o uso adequado das hipóteses válidas para a explicação de fenômenos físicos, a necessidade de um procedimento construtivo para a ampliação segura do conhecimento. Na distinção entre o lógico e o real questiona-se o alcance das regras da lógica formal tradicional (através do estudo do princípio de razão suficiente e da teoria do silogismo) para determinar as coisas existentes, distinguindo, deste modo, não só o estatuto lógico do real (e assim o ideal do existente) como também o registro da natureza e o da liberdade. Na diferença entre oposição e contradição mostra-se mais uma vez a impossibilidade da determinação formal da existência através da sua caracterização como atributo. É preciso, por tal motivo, uma outra consideração, não meramente lógica, da existência. Na explicitação do problema da significação questiona-se o uso indevido de hipóteses e conceitos sem qualquer referência e formula-se a tarefa da metafísica como o trabalho de evitar o surgimento da ilusão dogmática.

De acordo com este percurso nós podemos então extrair como conclusão que os textos pré-críticos kantianos são uma tentativa fracassada de procura de uma boa metafísica, mas, por outro lado, permitiram também mostrar os erros semânticos que os metafísicos tradicionais cometiam na formulação e resolução dos seus problemas. Isto levou Kant a fazer um questionamento decisivo a esse tipo de prática que quase se assemelhava ao ceticismo. No entanto, Kant, em vez de rejeitar aqueles problemas sem mais discussões, se propôs pesquisar sua própria possibilidade, tanto no que se refere à sua origem como à sua solubilidade. Aquela preocupação semântica espalhada por uma série de trabalhos deve-se sistematizar a fim de tratar já não cada problema em particular, mas sim a metafísica toda no seu conjunto.

Aquela metafísica tão procurada jamais foi escrita. Um mal-estar impediu sua concretização. Entretanto, esse mesmo mal-estar permitiu o desenvolvimento de um modo de abordar os problemas filosóficos que até então não teria sido explicitado sistematicamente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Parte 2

 

 

A interpretação crítica do problema da metafísica

 

 

2.1- Introdução

 

 

A passagem da etapa pré-crítica para a crítica (que pode ser caracterizada, em alguns dos seus aspectos, como a passagem da preocupação semântica nos problemas metafísicos à problematização semântica da metafísica ela mesma como questão), pode ser abordada a partir da concepção da razão como "razão problematizante". Ou seja, a razão tem problemas necessários, gerados pela sua própria natureza, enquanto que ela mesma, como aparelho, é um problema no seu funcionamento. Por outras palavras, a razão gera seus problemas necessários que exigem ser respondidos adequadamente, mas, nesta geração, a formulação daqueles pode resultar confusa e isso também é um problema. Por tal motivo é imprescindível, não somente atender à geração de problemas sem mais, senão também cuidar da sua formulação adequada. É por isso que é preciso observar seu funcionamento enquanto que “problematizante” nos dois sentidos. Nesta seção do trabalho tentarei colocar essas duas questões.

Tal como demonstrei na primeira parte, a metafísica dogmática foi questionada na etapa pré-crítica a partir da problemática da significação, em função disso a metafísica torna-se  tarefa crítica”. Isto é, uma pesquisa sobre as condições de possibilidade e limites do nosso conhecimento. Embora aquela pesquisa seja a questão central da crítica, será preciso,  antes de mais nada, mostrar que os problemas mesmos da metafísica não são uma invenção extravagante de alguma mente especulativa, senão que são gerados pela própria natureza da razão de acordo com seu próprio funcionamento. O que é realmente extravagante é o modo dogmático de resolução destes problemas, que interpreta como princípio objetivo de constituição de objetos o princípio subjetivo de funcionamento da razão, criando, desta maneira, uma ilusão transcendental e levando a razão à contradições e obscuridades. É assim também como surge o ceticismo que, assinalando a falta de uma fundamentação válida para as afirmações dogmáticas, acaba rejeitando os problemas mesmos; gerando, deste modo, uma “história da metafísica” como a história da luta entre céticos e dogmáticos sem nunca dar com o verdadeiro problema, a própria possibilidade da metafísica segundo o tratamento crítico.

Esta reconstrução nos permite ver como os distintos sentidos com que o termo “metafísica” está vinculado associam-se ao modo como é compreendida uma determinada região de problemas da razão. Da mesma maneira também é interpretada a história na qual emerge essa compreensão e, portanto, a tarefa que deve ser empreendida de acordo com o diagnóstico formulado.

Nosso propósito visa agora, apenas, colocar o problema com relação àquilo que considero medular no texto kantiano, ou seja, a questão da significação.

 

 

 

 

2.2- Os sentidos da metafísica.

 

 

Retomando as palavras da seção anterior podemos dizer que aquele período “dogmático”, dos textos pré-críticos de Kant, não foi tão dogmático já que permitiu assinalar as falhas contidas nos empreendimentos da metafísica tradicional na tentativa de formular e resolver problemas. Do mesmo modo, a suposta “mudança cética” dos Sonhos de um visionário... que, pela avaliação de muitos comentadores (contemporâneos a Kant e contemporâneos a nós) parecia acabar com toda e qualquer preocupação metafísica, também não foi tão cética, já que nos indica uma tarefa a cumprir, que não é a do simples questionamento, mas sim, de crítica da metafísica tradicional.

Para ser mais preciso, não se trata simplesmente de dar argumentos pró ou contra tal ou qual problema metafísico, de estar a favor ou contra a metafísica sem mais problemas que o de se colocar em um dos lados da oposição, mas sim de passar de uma reflexão no interior da metafísica a uma reflexão sobre a metafísica.

Não se trata só da validade dessa ou daquela resposta metafísica, senão da reflexão sobre a metafísica mesma como válida e legítima. Existe uma diferença decisiva entre “refletir no interior da metafísica” ( in der Metaphysik denken) e “refletir sobre ela”  (über sie denken)[140], e nessa diferença se baseia a essência da filosofia crítica. A reflexão no interior da metafísica permitia, ainda, questionar os metafísicos que não teriam conseguido escrever uma boa metafísica. Por outro lado, na “reflexão sobre a metafísica” é ela mesma a que está em jogo e que deve ser julgada. Ou seja, no segundo momento, a preocupação já não seria tanto a de escrever uma metafísica certa, como a de pesquisar as condições da sua própria possibilidade.

 Com efeito, tal como se mostrou no tratamento dos textos pré-críticos, o propósito de Kant era alcançar essa metafísica tão valiosa que ninguém tinha conseguido escrever. Essa tentativa está explicitamente enunciada em uma carta a seu amigo J.H. Lambert de 31 de dezembro de 1765. Como presente de final de ano, Kant escreve a seu colega que está trabalhando no método da metafísica e que, de acordo com um novo esquema filosófico, deveria publicar dois pequenos ensaios, a saber, uma fundamentação metafísica da filosofia natural e a fundamentação metafísica da filosofia prática. Como sabemos, esses textos foram efetivamente publicados, mas, em um outro “esquema” filosófico distinto daquele eununciado na carta a Lambert. Na época da publicação dos textos a “metafísica” em Kant já tinha mudado de sentido. Foi preciso, antes de mais nada, escrever uma Crítica, para depois, pensar em princípios metafísicos. Esta alteração nos planos, e a mediação da crítica, é decisiva para o  sentido do termo "metafísica"; por tal motivo, é possível dizer, sem temor a erro, que aqueles pensamentos publicados nos textos dos anos oitenta, não são aqueles sobre os quais Kant refletia nos anos sessenta. É verdade que este não é o único texto onde Kant fórmula suas intenções metafísicas (pré-críticas), mas, também é verdade que este texto tem a característica de confundir ainda mais àquele que não considere os diferentes planos de trabalho. É, por isso, muito importante indicar esse deslocamento de sentido para acompanhar de perto as mudanças da empresa kantiana.

Tal como escreve Lebrun: na etapa pré-crítica Kant  “continua a pensar que, se a metafísica jamais existiu, foi por falta de rigor nos estudiosos e não por falta de reflexão sobre a natureza dessa ciência...”[141]. Com efeito, a procura desse rigor levou Kant (nos textos pré-críticos) a se defrontar com problemas semânticos intransponíveis, enquanto não fosse abordada uma verdadeira reflexão sobre a natureza mesma da metafísica (tal como acontece no texto crítico). Por tal motivo é necessário estar atento, mais do que à uma ruptura textual-literal (crítico / pré-crítico), a um deslocamento do sentido do texto. É nessas condições que será possível agora abordar a “natureza da metafísica”, ou seja, refletir sobre a metafísica.  Perguntar-se pela origem dos seus problemas e pela nossa capacidade de resolvê-los. Para isso é preciso, tal como sugere Freuler (1992)[142], uma definição de metafísica e uma decisão sobre a metafísica no projeto crítico. O trabalho de reflexão crítica sobre a metafísica, poderíamos dizer, está metodologicamente encaminhado por esses dois momentos de “definição” e de “decisão”. Referindo o termo “definição” ao primeiro momento do procedimento de reflexão transcendental e não apenas à mera definição gramatical dos conceitos. Muitas das críticas a Leibniz e à metafísica dogmática em geral vão neste sentido; isto é, a mera definição gramatical não é um ponto de partida válido para o desenvolvimento de uma ciência[143] e muito menos ainda da metafísica. Por isso a questão da definição deve ser considerada aqui como uma instância reflexiva.

Heidegger (1986) vai ainda mais longe dizendo que esta operação crítica será uma verdadeira fundamentação da metafísica. Deste modo, o questionamento da metafísica specialis torna-se "problema da possibilidade interna desta ciência"[144]. Independente de qualquer controvérsia histórico-interpretativa, a leitura heideggeriana assinala, neste ponto, o giro que eu quero resgatar. O duplo jogo entre metafísica como dogmática e metafísica como tarefa. Metafísica como a ciência do supra-sensível e metafísica como ciência dos primeiros princípios do conhecimento humano. O conceito de metafísica neste último sentido parece ser tomado por Kant do texto de Baumgarten (Metaphysica 2da. ed 1743 parágrafo 1: Metaphysica est scientia prima cognitionis humanae principia continens)[145] e acarreta , adverte-nos Heidegger, uma ambigüidade fundamental ao envolver, nesta definição, tanto a ontologia como a cosmologia, a psicologia e a teologia naturalis. Assim sendo, pareceria ser que a metafísica “não é somente um ‘conhecimento do ente como ente’, mas também ‘um conhecimento da região suprema do ente’, a partir da qual se determina o ente na sua totalidade”[146]. Deste modo o inteligível acaba determinando o sensível. Sabemos, pela história da metafísica de acordo com Heidegger, que esta dualidade (sensível / inteligível em todas suas formas)  domina o problema da metafísica desde os começos do pensamento ocidental; trata-se de uma operação de oposição na qual um dos elementos hierarquicamente superior determina ao outro (oposição e subordinação). A ambigüidade originária se perde e a oposição se torna rígida. Assim, a metafísica é o conhecimento fundamental do ente na sua totalidade, mas, ao empreender essa tarefa (e responder às perguntas “em que consiste a essência do conhecimento do ser do ente?, até que grau se desenvolve um conhecimento do ente na sua totalidade?, porque se converte em um conhecimento do conhecimento do ser?”[147]), começa a constituir-se um conceito dogmático. Este dogmatismo é atribuído por Heidegger a dois elementos essenciais: a interpretação cristã do mundo e o ideal de conhecimento racional (matemático)[148]. Seguindo esta linha, Heidegger coloca Kant dentro da tradição dogmática.

A partir desta interpretação heideggeriana, por um lado, e levando em conta o enunciado (sobre a questão da crítica à metafísica) neste trabalho, por outro, a pergunta que surge é a seguinte: “Tratar-se-ia então, de uma definição e uma  decisão sobre a antiga metafísica na base, simplesmente, de uma nova?”[149]. Assim sendo: Qual seria o giro do pensamento kantiano? Qual seria a novidade se só se trata de mais uma metafísica dogmática?

A diferença que Kant logra formular, é justamente a que permite observar aquela oposição como gerada por uma "ilusão transcendental". É essa a diferença de leitura estabelecida por Kant na filosofia transcendental através das observações e questionamentos semânticos, indicados nos textos pré-críticos e desenvolvidos sistematicamente nos textos críticos. É desse modo que Kant consegue desarticular, nos seus aspectos fundamentais, essa oposição (indicada por Heidegger) através duma crítica da razão. Com efeito, a tentativa da metafísica dogmática de conhecer os "objetos inteligíveis" teórica e objetivamente, do mesmo modo que é possível conhecer os "objetos sensíveis" e ainda, por cima, pretender a subordinação dos últimos aos primeiros, é considerada por Kant como uma ilusão carente de qualquer fundamento objetivo. Os textos pré-críticos, tal como foram reconsiderados anteriormente, mostraram os erros semânticos nos quais se incorre cada vez que essa ilusão pretende tornar-se realidade. A tarefa crítica mostrará tanto o funcionamento do aparelho cognitivo[150] na formulação desses problemas quanto sua operação falida de resolução. Por outras palavras, o funcionamento do aparelho cognitivo permite observar como a organização dessas relações de oposição e subordinação, que ordenaram a metafísica desde sempre, são uma mera ilusão da razão.

Dito isto demos um passo a mais  na questão metafísica. Heidegger define a metafísica como a tentativa de pensar o ser como presença; o que é, é em relação com o que é presente. Isso é possível observar em Kant no tratamento do que é cognoscível. O cognoscível que é deve ser presente. Assim é como funciona o conhecimento teórico objetivamente válido[151]. Para que alguma coisa seja cognoscível deve ser concebida necessariamente como presença. Mas, não toda e qualquer existência é no sentido de ser presente. Deus existe (de acordo com Kant), mas é à toa que o procuremos entre as pedras. O fracasso da empresa pré-crítica mostra claramente que é impossível indicar seu lugar. A sua existência não se faz presente nem como objeto sensível nem como idéia platônica. Trata-se apenas de um operador da razão, de uma idéia regulativa, de um exigência no âmbito moral. Deste modo Deus não faz presentes as coisas enquanto coisas. Não existe qualquer relação entre presenças. A impossibilidade de uma demonstração ontológica da existência de Deus já não permite manter a antiga oposição. Kant prova nesses textos que é impossível organizar a dicotomia Sensível / Inteligível sem incorrer em erros semânticos na formulação das suas proposições. Uma formulação adequada impede tal transgressão, e, portanto impede também a organização da oposição e o tratamento da existência de Deus como presença.

 

Na época crítica o problema de Deus é desenvolvido nos três textos críticos fundamentais[152] sob o domínio teórico, prático e teleológico; como também na Religião dentro dos limites da mera razão. Na época pré-crítica, a questão é tratada no texto de 1763 com uma resolução cosmológica. Ainda que com aspectos diferentes, todos estes textos, apresentam a impossibilidade de ordenar a oposição que Heidegger mostra como fundamental no discurso da metafísica. O texto kantiano procura mostrar que o que realmente está em jogo não é a elaboração complexa de outra prova ontoteológica. Muito pelo contrário, trata-se de desmontar a estratégia argumentativa da metafísica e indicar sua falsidade para, deste modo, não mais formular problemas sem sentido adequado. É por isso que é preciso uma teoria da significação que determine os alcances do nosso conhecimento sem cair em qualquer (erro semântico) ilusão de formular uma falsa relação de oposição. Somente depois disso será possível saber (decidir) se, na crítica, trata-se de uma “metafísica da metafísica”, um “fora da metafísica” ou tal vez nenhuma das duas coisas (a oposição dentro/fora quiçá seja ela mesma também uma armação metafísica), mas este último é um problema que simplesmente mencionarei por encontrar-se além dos limites desta pesquisa.

 

É de notar como Heidegger coloca brilhantemente as questões fundamentais da metafísica que ultrapassam, como sabemos, esta breve indicação. Não ignoro que as colocações e as preocupações heideggeriana têm um sentido mais abrangente do aquele que se desenha no horizonte em que aqui nos movimentamos. Por exemplo, o problema da “presença” vai além de nossa simples menção. Mas, mesmo assim, o que eu quero assinalar é como esses dois tópicos essenciais do discurso metafísico (oposição e presença) podem ser interpretados também em termos kantianos.

 

 

 

 

 

2.3- Os problemas necessários da razão.

 

 

Apesar do forte questionamento feito por Kant contra os metafísicos nos textos do período pré-crítico, e especialmente no do ano de 1766 (Sonhos...), na passagem para o texto crítico poderá ser comprovado que, de acordo com Kant, os problemas da metafísica, eles mesmos, não são, como parece, a simples imaginação de uma legião de ilusionistas, muito pelo contrário, pertencem à própria natureza da razão.

É interessante observar que a elaboração do conceito da tarefa filosófica, como uma pesquisa dos limites, é trabalhada em um texto dedicado à desarticulação do discurso místico. Como sabemos, é em Sonhos... onde Kant, escrevendo sobre Swedenborg, desarticula o discurso da revelação e do espiritualismo e prepara os primeiros elementos da atividade filosófica como filosofia crítica, e esta, por sua vez, como pesquisa dos limites. O texto kantiano não tenta construir um discurso oposto ao discurso da revelação. O que Kant coloca em questão é a própria organização discursiva da revelação, seus conceitos, seus princípios, as operações do texto místico. É nesse quadro que Kant enuncia a tarefa crítica.

Não obstante, e seguindo o texto kantiano, o discurso místico de Swedenborg diferencia-se radicalmente do discurso metafísico abordado na Crítica da Razão Pura, embora o que esteja na base das duas desarticulações seja a questão do sentido. Poderíamos dizer que se trata de ilusões, mas de ilusões diferentes, de discursos ilusórios organizados de modo diferente. As operações discursivas que permitem organizar o edifício metafísico produzem outros movimentos além dos da revelação.

No que segue, observaremos como a razão funciona neste novo caso, que não é “apenas” um caso.

Do mesmo modo que as formas lógicas do nosso conhecimento (no entendimento) podem conter a origem dos nossos conceitos puros a priori, -procedimento este, que Kant se encarrega de mostrar-nos na Analítica Transcendental da primeira crítica, deduzindo as categorias da tábua dos juízos-, assim também, a forma dos raciocínios  contém a origem dos nossos conceitos da razão (CRP A 321/ B 378).

Procedo brevemente à demonstração da sua obtenção, indicando a operação de inferência da razão nos raciocínios:

1- (maior)  concebo uma regra  pelo entendimento.

2- (menor) subsumo um conhecimento na condição dessa regra mediante a faculdade de julgar.

3- (conclusio) determino o conhecimento pelo predicado da regra pela razão.

Na conclusão do silogismo, restringimos um predicado a determinado objeto, após tê-lo pensado na premissa maior em toda sua extensão, sob certa condição. Esta quantidade completa da extensão, com referência à tal condição, chama-se universalidade, a qual, na síntese das intuições, corresponde à totalidade das condições.

É útil, neste ponto, lembrar a diferença da concepção do silogismo em relação ao texto de 1762[153]. A distinção entre intensional e extensional não é (como já demonstrei) uma indicação meramente técnica, o segundo caso não é um procedimento de simples análise, senão que se refere a uma composição da extensão mediante uma regra. Assim sendo, o conceito transcendental da razão (idéia) é apenas o conceito da totalidade das condições relativamente a um condicionado dado (Erscheinung). Como, porém, só o incondicionado possibilita a totalidade das condições e, reciprocamente, a totalidade das condições é sempre em si mesma incondicionada, um conceito puro da razão (idéia) pode ser definido como o conceito do incondicionado, na medida em que contém um fundamento da síntese do condicionado (CRP A 322/ B 379).

Uma vez apresentado o procedimento geral do raciocínio da razão, podemos abordar as suas distintas figuras. A relação que a premissa maior representa, como regra, entre um conhecimento e a sua conclusão, constitui as diversas espécies de inferências da razão. É por isso que, de acordo com o modo como seja efetuada essa relação, pode haver três espécies de raciocínios, a saber: categóricos, hipotéticos e disjuntivos (CRP A 304/ B 361).

Com respeito a isto, Kant esclarece na Logik Jäsche[154] que os raciocínios não podem ser divididos, como os juízos, em relação à sua “quantidade” porque toda maior é uma regra e, porém universal; em relação à sua “qualidade” porque sua afirmação pode ser afirmativa ou negativa indistintamente; em relação à sua “modalidade” porque a conclusão deve ser sempre necessária. Por esta razão, o princípio de divisão está baseado na “relação[155]. Cada raciocínio, ou seja, cada espécie de relação procura um conceito puro da razão diferente:

1)um incondicionado da síntese categórica em um sujeito;

2) um incondicionado da síntese hipotética dos membros de uma série;

3)um incondicionado da síntese disjuntiva das partes em um sistema;

(síntese predicativa, conjuntiva e disjuntiva respectivamente).

Assim sendo, para encontrar tal conceito, cada raciocínio progride para o incondicionado por meio de pro-silogismos. Quer dizer:

1) para um sujeito que já não é predicado;

2) para uma pressuposição que já nada pressupõe; e,

3) para um agregado de elementos ao qual já nada mais é exigido.

Do mesmo modo que no caso das categorias (para o entendimento), é preciso compreender isto como uma “operação” da razão. Cada operação não é, apenas um tecnicismo lógico, é uma operação de composição de uma série de elementos.  Cada relação é uma relação de composição ininterrupta até o absoluto, mas só “idealmente”. A este respeito,  Kant nos diz:  “...a razão, no seu uso lógico, procura a condição geral do seu juízo  (da conclusão) e, deste modo, o raciocínio não é também mais que um juízo obtido, subsumindo sua condição em uma regra geral (a premissa maior). Ora, como esta regra, por sua vez, está sujeita à mesma tentativa da razão e assim (mediante um pro-silogismo) se tem de procurar a condição da condição, até onde for possível, bem se vê que o próprio princípio da razão em geral (no seu uso lógico) é encontrar para o conhecimento do condicionado, o incondicionado pelo qual se lhe completa a unidade. Esta máxima lógica só pode converter-se em princípio da razão pura, se admitirmos que, dado o condicionado, é também dada (isto é, contida no objeto e na sua ligação) toda a série das condições subordinadas, série que é, portanto, incondicionada” (CRP A 307/B 364).

A regra de funcionamento lógico passa a ser princípio transcendental, e assim, a gerar problemas necessários da razão, enquanto este seja tomado subjetivamente. Quer dizer, que deve ser compreendido como um requerimento de sistematicidade (uma petição: a de seguir avançando), mas, fora disto, não é possível fazer qualquer uso empírico, objetivo, desse princípio que seja considerado legítimo. Nesse caso estaríamos atuando de modo “transcendente”. O proceder da razão por raciocínios não depende da experiência, mas apenas do seu próprio funcionamento, no entanto também não é constitutivo daquela, apenas tem uma função regulativa.

De acordo com o procedimento da razão, qualquer série cujo expoente é dado, pode prolongar-se indefinidamente. Isto é, o mesmo ato da razão conduz à ratiocinatio polysyllogistica, que é uma série de raciocínios, que pode ser prosseguida indefinidamente, quer pelo lado das condições (per prosyllogismus), quer pelo lado do condicionado (per episyllogismus)  (CRP A 311/ B 387). Pelo primeiro ato é gerada a síntese regressiva, pelo segundo a síntese progressiva. A primeira diz respeito às condições, a segunda, respeito ao condicionado. Esta última síntese, gera problemas “arbitrários”[156].Ou seja, problemas sobre as conseqüências do condicionado, e é potencialmente aberta; enquanto a primeira, gera problemas “necessários” da razão pura sobre a condição do dado. São problemas necessários enquanto carecermos de princípios para a compreensão integral do que é dado no fenômeno, e não de conseqüências que podem ser prolongadas indefinidamente (CRP A 411/ B 438). Com efeito, no caso da progressão teríamos, virtualmente, a possibilidade de incorporar sempre mais um elemento à série, não obstante, no caso da regressão deveríamos poder estabelecer um princípio ou primeiro termo.

Estes conceitos puros da razão (idéias, ou primeiros termos das sínteses regressivas), aos quais chegamos pelo pensamento e só são concebidos por ele, são necessários, na medida em que nos prescrevem a tarefa de fazer progredir, tanto quanto é possível, a unidade do entendimento até ao incondicionado (CRP A 323/ B 380). De fato, a diversidade das regras e a unidade dos princípios é uma exigência da razão para levar o entendimento ao completo acordo consigo mesmo (CRP A 305/ B 362).

Neste sentido, a razão relaciona-se apenas com o uso do entendimento, na medida em que lhe prescreve a orientação (die Richtung) para uma certa unidade de todos seus atos com respeito a cada objeto ( CRP A 326/ B 383). Um princípio de unidade tal não prescreve aos objetos nenhuma lei constitutiva e não contém o fundamento da possibilidade de os conhecer e de os determinar como tais (empiricamente), é simplesmente uma lei subjetiva, de caráter heurístico que permite a sistematização do nosso conhecimento. A razão não contém o fundamento constitutivo da experiência dita possível (CRP A 306/ B 362). É apenas e nada menos que no interior deste quadro onde a razão opera e formula problemas.

As idéias, então, servem ao entendimento só de cânone, lhe permite estender seu uso ao máximo e torná-lo homogêneo; por  meio daquelas o entendimento não conhece, mas ganha sistematicidade (CRP A 329/ B 386).

 Como vemos, a teoria dos problemas necessários da razão está baseada na interpretação extensional do silogismo. Lembremos mais uma vez o texto pré-crítico de 1762 tratado na parte I deste trabalho. Ali Kant compreende a dificuldade de relacionar o que é possível de se dizer em um raciocínio logicamente correto com o que realmente acontece na experiência. Na tentativa de cuidar adequadamente do problema, ele diferencia entre silogismos puros e mistos, acreditando que mais uma regra sintática acabaria com as conseqüências indevidas dos raciocínios na ampliação do conhecimento. Tratava-se, naquela época, de ajustar o aparelho sintático, explicitar as inferências envolvidas. Errou.  O que deveria mudar era justamente a própria interpretação do silogismo. Se Kant continuasse a ver o silogismo na sua interpretação intensional (tal como no texto de 1762) jamais haveria conseguido formular sistematicamente os problemas da razão e teria ficado no domínio da mera ilusão. Não teria conseguido diferenciar os operadores do discurso místico (à la Swedenborg) e do discurso metafísico (à la Leibniz). Teria ficado no nível do questionamento, e então sim, quiçá, poderíamos afirmar que a elaboração kantiana seria mais uma figura da repetição metafísica ou apenas um discurso contra a metafísica[157].

Kant assume de fato a metafísica como uma operação que produz uma região de problemas que independem da particularidade da obra de um escritor. A metafísica, enquanto região de problemas necessários da razão, vai além de uma mera disciplina universitária. Surge pelo próprio funcionamento dos nossos dispositivos de conhecimento e da nossa linguagem. Kant mostra como, na modernidade, esse tipo de problemas se apresenta naturalmente na medida em que tentemos nos colocar questões de ordem cognitiva. Por isso, a metafísica enquanto problema, não pode ser resolvida nem com a elaboração de mais um tratado nem com a rejeição direta. Acreditar que se acaba com a metafísica por que simplesmente não se fala mais dela é tão questionável como acreditar na resolução dogmática de seus problemas. Ambas as alternativas fundamentam-se dicotomicamente na interpretação da metafísica como mera disciplina. Esta interpretação desconsidera a necessidade da sua emergência caindo assim em uma verdadeira ilusão. O que está em jogo no texto kantiano é o fato de que a questão da metafísica não é apenas um ato da vontade, ou mais uma decisão a ser tomada do tipo “fazer ou não fazer metafísica”, senão que são as próprias operações de nossa racionalidade que articulam e desarticulam essa classe de discursos.

 

 

 

 

2.4- A ilusão transcendental.

 

 

Uma vez estabelecido o caráter "necessário e natural" dos problemas da metafísica, segundo o próprio funcionamento do aparelho cognitivo, é possível agora obter uma avaliação mais precisa da operação que está no fundo do modo tradicional de tratar estes problemas, e detectar, desta maneira, o “equivoco” do dogmatismo metafísico. “Equivoco” este, também gerado a partir do próprio funcionamento do aparelho cognitivo. Sendo assim, tornar-se-á indispensável voltar a considerar o funcionamento da razão em vistas a avaliar o “erro” criticamente, e não mais simplesmente rejeitar o dogmatismo como acontece no ceticismo. Por tal motivo acompanharei a reflexão kantiana sobre o engano da razão.

“Os sentidos não erram, não podem errar porque não julgam”. Kant define o erro do juízo em relação ao objeto. Só se erra julgando. Deste modo, temos um tipo de erro que surge da aparência transcendental (der transzendentale Schein), “...na nossa razão (considerada subjetivamente como faculdade humana de conhecimento) há regras fundamentais e máximas relativas ao seu uso, que possuem por completo o aspecto de princípios objetivos, pelo qual sucede que, a necessidade subjetiva de uma certa ligação dos nossos conceitos, em favor do entendimento, passa por uma necessidade objetiva da determinação das coisas em si. Ilusão esta, que é inevitável...” (CRP A 297/ B 353). Trata-se de uma ilusão natural e inevitável que toma princípios subjetivos por objetivos, nisto consiste a “aparência transcendental”. Aquela necessidade de unidade e ordem do entendimento, efetuado por um procedimento da razão, que permite sistematizar os fenômenos que o próprio entendimento determinou na experiência, acaba se tornando determinação dos objetos. A idéia do incondicionado é concebida como se tivesse a mesma realidade objetiva que o condicionado.

A realidade transcendental (subjetiva, não empírica) das idéias da razão, funda-se, como temos explicado, em que, por um raciocínio necessário, somos levados a tais idéias. Mas quando inferimos mais alguma outra coisa que uma mera idéia e lhe outorgamos realidade objetiva, então estamos operando com raciocínios dialéticos. Assim sendo, do mesmo modo que o anterior, temos  três espécies de raciocínios dialéticos, a saber:

a) o primeiro assenta-se no conceito transcendental de sujeito, do qual infiro a unidade absoluta deste sujeito;

b) o segundo assenta-se no conceito transcendental da totalidade absoluta da série de condições de um fenômeno dado em geral; e

c) o terceiro na totalidade das condições necessárias para pensar objetos em geral. 

A primeira contém a unidade absoluta do sujeito pensante, a segunda contém o conjunto de todos os fenômenos e a terceira a unidade absoluta da condição de todos os objetos do pensamento em geral. Deste modo, o sujeito pensante é objeto da psicologia, o conjunto de todos os fenômenos é objeto da cosmologia, e a condição de todas as coisas, o ente de todos os entes, é objeto da teologia (CRP  A 334/ B 391). Cada idéia, tomada objetivamente, fornece o “objeto” (alma, mundo, Deus) da metafísica especial. Isto permite que os metafísicos misturem as idéias com os conceitos e confondam a unidade sintética incondicionada com a síntese do condicionado. “A razão, diz Kant, parte de princípios, cujo uso é inevitável no decorrer da experiência e ao mesmo tempo, suficientemente garantidos por esta. Ajudada por estes princípios eleva-se cada vez mais alto (como de resto lho consente a natureza) para condições mais remotas. Porém, logo se apercebe de que, desta maneira, sua tarefa há de ficar sempre inacabada, porque as questões nunca se esgotam; vê-se obrigada, por conseguinte, a refugiar-se em princípios, que ultrapassam todo o uso possível da experiência...” Este é o erro semântico fundamental que possibilita o salto metafísico. Esta indistinção de objetos (sensíveis e ideais) é a origem da ilusão de podê-los conhecer com os mesmos princípios. Continuemos ainda mais com a citação: “os princípios de que se serve (a razão), uma vez que ultrapassam os limites de toda experiência, já não reconhecem nesta qualquer pedra de toque. O teatro destas disputas infindáveis chama-se Metafísica” (CRP A VII-VIII). Com efeito, a metafísica constitui uma região de problemas da razão, e até a mais importante. Mas, tal como o dogmatismo a desenvolvia, só conseguia entrar em contradições e obscuridades. Esta tentativa de completar a série de todas as condições até chegar à sua unidade completa leva além da experiência. Isto, diz Kant, “existe como disposição natural (metaphysica naturalis), pois a razão humana, impelida por exigências próprias, (...), prossegue irresistivelmente para esses problemas que não podem ser solucionados pelo uso empírico da razão nem por princípios extraídos da experiência” (CRP B 21). A indicação é essencial. Os problemas metafísicos, mesmo sendo originados pelas exigências próprias do desenvolvimento cognitivo, não são possíveis de serem solucionados cognitivamente no âmbito da experiência. Surgem do cognitivo, mas não pertencem ao cognitivo. A metafísica é desta maneira, e só desta maneira, compreendida como disposição natural, quer dizer: metafísica enquanto região de problemas surgidos do próprio funcionamento da razão.

Uma vez alcançada esta definição e no interior desse esquema de operações cabe, depois, decidir sobre a validade da formulação e resolução de tais problemas. Ou seja, dada a definição daquilo que se interpreta como uma operação metafísica, estamos em condições de um posicionamento (dogmático ou crítico) frente a esta questão.

Os três problemas (sobre a alma, o mundo e Deus) se originam naturalmente, como se explicou, na procura da extensão do nosso conhecimento empírico sobre as aparências ou aparecimentos (Erscheinung), de acordo com as três relações lógicas básicas nas quais podemos tentar essa ampliação, a saber: a relação sujeito-predicado (raciocínio categórico), a relação antecedente-consequente (raciocínio hipotético), a relação parte-agregado (raciocínio disjuntivo) (CRP B 379). É por isso que a “naturalidade” da disposição metafísica estaria tanto na base do dogmatismo como  na base da crítica. O que está em jogo, e é aquilo pelo qual se estabelece a diferença entre ambas “tendências”, não é o ato de rejeitar a disposição, mas sim denunciar os falsos problemas criados a partir dela. O conceito de “naturalidade” dos problemas metafísicos não visa “naturalizar” e, portanto “neutralizar” o significado da metafísica, como se se procurasse uma justificativa ante a qual resignar-se. Muito pelo contrário, o conceito de “naturalidade” permite assumir o problema da metafísica como “problema”. Essa operação dita “metafísica” torna-se “problema” e não adianta nem o gesto da indiferença nem uma proclamação de guerra, a operação continua a estar aí, no texto, e é por isso que o “posicionamento” crítico não é um trabalho sobre livros ou autores, é um trabalho no texto sobre a desarticulação da operação da razão.

Neste sentido, coincidindo com Greier (1993)[158] entre outros comentadores, é possível observar que a Dialética Transcendental é uma crítica às três disciplinas da metafísica especial. Também em Torretti (1980) podemos ler uma interpretação semelhante. Ele diz que, em Kant, o entendimento constrói a experiência incorporando seus objetos em uma rêde de relações, assim, cada objeto fica condicionado pelos outros que também são condicionados. Entretanto, a razão procura encontrar o incondicionado para cada série de condições, representado em uma idéia que não pode corresponder a nenhum objeto empírico. No entanto, a ilusão transcendental, consiste em tomar essas idéias como representações de objetos efetivamente existentes. Essa ilusão possibilita a tentativa da  metafísica especial de pretender conhecer os objetos supra-sensíveis[159]. Produz o “salto” metafísico do sensível  para o supra-sensível. Nesse “salto” tudo sucede como se do mesmo modo em que é apresentado o sensível seja também apresentado o supra-sensível, mas, nesta relação de oposição sensível / supra-sensível o segundo termo, hierarquicamente superior, determina o primeiro. O faz ser enquanto tal. (Todo criado deve ter uma causa: seu criador; então: é porque existe o Criador que existe o criado). É justamente o pretendido estatuto cognitivo desta operação que Kant desorganiza no texto crítico. E não somente ali, lembremos também, por exemplo, no texto pré-crítico de 1763[160] o questionamento da prova ontológica. Em ambos os casos se procura uma desarticulação da operação que ordena o texto.

Mas, para complicar ainda mais as coisas, no segundo raciocínio apresenta-se um novo fenômeno, trata-se da antitética. Esta “antitética” é caracterizada por Kant como um “escândalo” da filosofia,  como a “eutanásia” da razão  (CRP A 407/ B 434). A razão, aqui, entra em conflito consigo mesma. Neste caso “a razão não produz propriamente conceito algum, apenas liberta o conceito do entendimento das limitações inevitáveis da experiência possível, e tenta alargá-lo para além dos limites do empírico” (CRP A 409/ B 435). Isto acontece de acordo com o mesmo princípio que já explicamos, porém, desta vez aplicado às categorias do entendimento. “A razão, para um condicionado dado, exige a absoluta totalidade da parte das condições, fazendo da  síntese empírica uma integridade absoluta, e progredindo essa síntese até ao incondicionado (que nunca é atingido na experiência, mas apenas na idéia). A razão exige-o em virtude do seguinte princípio: se é dado o condicionado, é igualmente dada toda a soma das condições e, por conseguinte, também o absolutamente incondicionado, mediante o qual era possível aquele condicionado” (CRP A 411/ B 438). As idéias cosmológicas ocupam-se da totalidade da síntese regressiva e procedem in antecedentia e é por isso que também são problemas necessários da razão (CRP A 411/ B438). Essa regressão, do condicionado para a condição, esse alargamento para o transcendental, acontece com aquelas categorias que permitem gerar a série regressiva, a saber: quantidade, realidade, causalidade e necessidade.

Há, então, quatro idéias cosmológicas:

1) a partir da síntese regressiva da quantidade surge a idéia baseada na integridade absoluta da composição do total dado de todos os fenômenos,

2) a partir da síntese regressiva da realidade surge a idéia baseada na integridade absoluta da divisão de um todo dado no fenômeno,

3) a partir da síntese regressiva da causalidade surge a idéia baseada na integridade absoluta da gênese de um fenômeno em geral,

4) a partir da síntese regressiva da necessidade surge a idéia baseada na integridade absoluta da dependência da existência do mutável no fenômeno.

A idéia de integridade absoluta reside na razão independentemente da possibilidade ou impossibilidade de lhe ligar conceitos empíricos adequados (CRP A 417/ B 444) na experiência. Esta também é uma operação que depende somente do funcionamento da razão, sem qualquer necessidade de se ligar com fenômenos da experiência. Muito pelo contrário, é essa sua impossibilidade. O procedimento é o seguinte: dados os fenômenos a razão exige a integridade absoluta das condições da sua possibilidade, na medida em que estas constituem uma série e, portanto, exige uma síntese absolutamente completa   (CRP A 415-6/ B443). A operação da razão propõe-se estender a série até sua completude absoluta, achando o incondicionado. O incondicionado procurado pela razão pode conceber-se de duas maneiras: ou como consistindo na série total, neste caso a regressão é infinita; ou o incondicionado absoluto é uma parte da série a que os restantes membros estão subordinados. No primeiro caso a série é virtualmente infinita, no segundo há um primeiro termo, que:

1) em relação ao tempo se chama início do mundo, em relação ao espaço, limite do mundo;

2) em relação às partes de um todo dado em seus limites, simples;

3) em relação às causas, espontaneidade absoluta (liberdade);

4) em relação à existência de coisas mutáveis, necessidade natural absoluta (CRP A417/ B445).

Sobre cada um destes casos, de problemas da cosmologia clássica, a razão entra em conflito consigo mesma. Um jogo de argumentações contrapostas surge a partir do próprio funcionamento da razão. Pode se fornecer, deste modo, provas afirmativas ou negativas do início do mundo, da simplicidade da matéria, da questão da liberdade, ou mesmo, da existência de Deus. Todas elas terão apenas o valor da contra-argumentação. Embora nenhuma se possa afirmar em si mesma.

Muitas dessas demonstrações foram tratadas, em maior ou menor medida, como casos particulares nos trabalhos pré-críticos. O resultado desses ensaios manifestou o surgimento do problema semântico na formulação de tais questões. Mas só o tratamento crítico vai retomar essa problemática a partir da sua própria raiz. Quer dizer, a partir da operação que as torna possíveis.

Com efeito, o problema da razão aqui exposto reside em que ao nos projetarmos para além da experiência não temos um fundamento a partir do qual possamos afirmar com certeza alguma coisa acerca de tais questões. Diz Kant: “Como, porém, até agora todas as tentativas para dar resposta a essas interrogações naturais, como seja, por exemplo, se o mundo tem um começo ou existe desde a eternidade, etc..., sempre depararam com contradições inevitáveis, não podemos dar-nos por satisfeitos com a simples disposição natural da razão pura para a metafísica (...); pelo contrário, tem que ser possível, no que se lhe refere, atingir uma certeza: a do conhecimento ou ignorância dos objetos, por outras palavras, uma decisão quanto aos objetos das suas interrogações ou quanto à capacidade ou incapacidade da razão para formular juízos que se lhes vinculem; conseqüentemente, para estender com confiança a nossa razão ou para lhe pôr limites seguros e determinados” (CRP B 22). Assim sendo, de um lado temos uma disposição natural, uma “naturalidade” para os problemas necessários da razão, produto das operações de funcionamento do próprio aparelho cognitivo; e do outro, a ilusão inevitável, como o resultado de outra operação, que surge quando tentamos responder a tais problemas. Isto coloca a razão como aparelho “problematizante”, mas também como limitado na sua capacidade de (problematizar) funcionamento de acordo com determinados requisitos, do contrário a problematização da razão deixa de ser tal para tornar-se resposta dogmática.

A metafísica dogmática esquece (o caráter finito da nossa razão[161]) qualquer restrição, pretendendo alcançar com o conhecimento ainda  aquilo que é inatingível na experiência. Com efeito, as próprias restrições do nosso conhecimento permitem observar que as “ilusões transcendentais” não são o produto de um simples “erro” técnico, ou de medição, que poderia ser solucionado com um ajuste de observação na experiência. Isto é, como se a pergunta pela origem do Universo ou a divisão da matéria pudesse ser respondida objetivamente apenas com o melhoramento do nosso instrumental de pesquisa. Neste sentido, na metafísica (como disciplina cognitiva) também não se adiantaria a resposta que deveria ser confirmada ou refutada pelo procedimento científico. Tal como queriam alguns epistemólogos deste século. Quer dizer, a metafísica também não é um acervo de hipóteses a testar.

Kant, na sua empresa crítica, nos mostra que o modo de abordagem dos problemas necessários da razão oa modo da metafísica tradicional, carece da certeza da ciência. Embora queira imitá-la, só consegue, de fato, confundir seu objeto, o modo de conhecimento e seus limites[162]. Pareceria ser devido aos êxitos alcançados pela razão na matemática que os metafísicos acharam-se estimulados por essa tentativa de “imitar a ciência” e irem além da experiência. A confiança desmesurada da razão em si mesma teria dado o impulso para o “salto metafísico”. Uma interpretação errada da matemática pelos metafísicos, somada ao uso irrestrito da lógica formal, poderia ter oferecido a ilusão de rigor na argumentação dogmática[163]. É assim como a metafísica, no seu afã de conhecer “objetivamente” seus “objetos”, afirma suas proposições sem nenhuma base real. Tal como explicamos anteriormente, ao tratarmos dos textos pré-críticos, esse procedimento foi questionado em cada caso. Agora, o labor crítico consiste em compreender o problema na sua totalidade. E é unicamente deste modo que a ilusão da razão mostrará o infundado da formulação dogmática.

Na Dialética Transcendental, especialmente, mas também em muitos outros textos, se coloca em questão o sentido da enunciação através de seu modo de operar. Não se ataca esta ou aquela resposta, senão que se aponta para a operação que possibilita essa ou qualquer resposta.

É assim que aquele modo de abordagem da metafísica tradicional, questionado por Kant, gera sua imagem oposta como em um espelho. Isto é, a confiança dogmática gera a revolta cética, e é desta maneira que dois estados da razão dão inicio à sua história. Para desvelar isso é preciso voltar ao ponto de partida[164].

 

 

 

 

2.5- A história da metafísica.

 

 

Repetimos mais uma vez a pergunta : que quer a razão com a metafísica?[165]. Qual é, aqui, seu fim? Qual é o interesse da razão com essa “disposição”?  Trata-se de uma pergunta extensa e ambiciosa (como estamos tendo oportunidade de observar); para respondê-la rigorosamente deveríamos ir além dos limites deste trabalho. Não obstante, será necessário dar apenas, com relação ao nosso objetivo, uma primeira aproximação, a saber: a metafísica é o passo do sensível para o supra-sensível[166]. Neste sentido Kant nos declara que a metafísica, até agora, tem sido um “mar sem ribeiras”, um “oceano” no qual não se têm limites nem horizontes[167] (CRP A 235-6/ B294-5). Mas essa situação não é fruto do acaso. As contradições da razão consigo mesma não são, como vimos, um simples engano deste ou daquele metafísico em particular. O procedimento tem um fundamento que está na base de toda e qualquer especulação dogmática. Trata-se de um modo de operar da razão para estender o conhecimento à margem da experiência.

Os metafísicos, tentando atingir o supra-sensível, partem de princípios ontológicos (sistema dos conceitos e princípios do entendimento), só válidos para objetos da experiência, e os estendem a objetos transcendentais[168]. O resultado desta operação não pode ser confirmada nem refutada por experiência alguma. A possibilidade de verdade ou falsidade das suas proposições não têm qualquer “pedra de toque”, o que permite que teses contrárias sejam colocadas com igual autoridade para tentar a resolução de tais problemas. Em oposição a estes emergem os céticos, que, observando a falta de fundamentação na proposta de resolução dada, rejeitam os próprios problemas apelando para uma ignorância necessária. A sentença é clara: “nada podemos saber sobre tais questões”. A conclusão é precisa: “limitemo-nos a um habitus”.

O dogmatismo e o ceticismo constituem dois momentos da razão, poder-se-ia dizer que dinamizam sua própria história. Com a composição de um texto em sentido alegórico Kant percorre, no prefácio da edição de 1781 da CRP, a intrincada história da metafísica até chegar ao seu diagnóstico final. “Houve um tempo -nos conta Kant- em que esta ciência (a metafísica) era chamada rainha de todas as outras (...). Inicialmente, sob a hegemonia dos dogmáticos, seu poder era despótico. Porém, como a legislação ainda trazia consigo o vestígio da antiga barbárie, pouco a pouco, devido a guerras intestinas, caiu essa metafísica em completa anarquia e os céticos, espécie de nômades, que têm repugnância em se estabelecer definitivamente em uma terra, rompiam, de tempos a tempos, a ordem social. Como, felizmente, eram pouco numerosos, não puderam impedir que seus adversários, os dogmáticos, embora sem concordarem em um plano prévio, tentassem repetidamente restaurar a ordem destruída” (CRP A VIII-IX). O relato é quase comovedor e não é pouco comum em Kant este modo de se referir à origem “histórica” dos fatos. Nesta apresentação das conquistas e dos infortúnios da rainha das ciências ele não rejeita o estilo literário para falar dos tesouros mais importantes, tal vez o mais digno, da humanidade, a saber: a metafísica. Muito pelo contrario, recorre até aos versos de Ovídio para ilustrar o acontecimento[169]. Esta estratégia tem um objetivo preciso. Não se trata simplesmente de poupar esforços na redação de uma história da filosofia mais rigorosa e trabalhosa, longe disso, o que Kant tenta ilustrar por meio desta ficção é o aspecto relevante da situação da razão quanto aos seus problemas necessários. A ficção literária tem a força de desenhar um acontecimento que não é meramente empírico. Em História Filosofante da Filosofia Kant nos diz, em relação a este tópico, que “uma representação histórica da filosofia relata pois como e em que ordem tem-se filosofado até agora. Mas o filosofar é um desenvolvimento paulatino da razão humana e esta não pode ter progredido pelo caminho empírico nem mesmo ter começado por ele e, além diso, por meros conceitos. Deve-se ter dado um estado de necessidade da razão (seja teórico ou prático) que tenha obrigado a se elevar desde seus juízos sobre as coisas aos fundamentos e ainda até os primeiros princípios”[170]. Esta reflexão sobre a história da filosofia nos sugere que é preciso pensar uma história que não comprometa toda e qualquer reflexão filosófica em uma continuidade empírica. As estratégias discursivas da História se caracterizam por conformar séries de elementos que conduzem a alguma parte, dessa maneira uma teleologia naturalis  governa os fatos empíricos desde sempre, afogando qualquer diferença; para se deslocar deste gesto instalador é preciso pensar em estados de necessidade da razão como acontecimentos, é preciso pensar em uma história filosofante. Em uma tentativa similar Kant ensaia uma variante. No começo, um “tempo fabulado” abre a possibilidade originária da metafísica, que não sendo apenas um fato cronologicamente determinado é, por isso, colocado como “ficcional”[171], enquanto que a entrada em cena das personagens dinamiza seu jogo, desencadeando o atual estado de coisas. Aqui Kant assinala dois momentos, o dogmatismo e o ceticismo como fundamentais para o desenvolvimento alcançado pela metafísica. É assim como a “rainha de todas as ciências” encontra-se em uma encruzilhada: “A razão humana, em um determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem totalmente suas possibilidades” (CRP A VII).  A razão, como razãoproblematizante”, propõe-se problemas que a metafísica, como ciência teórica, não pode resolver, ou tenta de modo dogmático. Quer dizer, mediante afirmações sem nenhum fundamento objetivo, mas também não pode rejeitar, porque pertencem à natureza do seu funcionamento. É este então o problema fundamental no qual encontra-se a metafísica ao procurar as condições últimas eleva-se, com esses princípios, além da experiência até perder qualquer “pedra de toque” que permita decidir sua validade, ou seja, até perder a possibilidade de toda significação objetiva.

Esta situação gera dois pólos opostos, os dogmáticos afirmam o que os céticos rejeitam. Este é o modo como os dogmáticos e os céticos alternam-se entre o despotismo e a anarquia sem nunca dar com o verdadeiro problema, a saber, o conhecimento da razão e a constituição de um tribunal que lhe assegure as legítimas pretensões (CRP A XI). A situação da metafísica pode seguir alternando-se indefinidamente entre uma ilimitada confiança em si mesma e o completo ceticismo. É preciso um terceiro momento, o crítico, que devolva à razão sua confiança sem cair em contradição e em obscuridades[172] .

A dicotomia entre dogmatismo e ceticismo é explicada por Kant a partir da concepção da história da metafísica em relação ao método (CRP A 855-856/ B883-884), mas, em certo sentido, poderíamos dizer também que coincide com a história intelectual do próprio Kant. Um duplo jogo se apresenta neste sentido, a saber: a primeira face explicada nos Progressos...(1791)[173], a segunda nas cartas em que confessa ter  “acordado do sonho dogmático...”.

Com efeito, podemos constatar, nos textos kantianos, que se apresenta uma interpretação sistemática dos três estádios da razão (dogmático, cético e crítico), que pode ser observado na própria produção filosófica do ocidente. Contudo, também é possível aplicar essa mesma interpretação à própria produção de Kant. Esta última tarefa foi feita por muitos comentadores até ao abuso, entretanto a concepção da “história” em sentido kantiano foi muito pouco trabalhada, quando não foi diretamente deixada no esquecimento total.

 

 

 

 

2.6- A tarefa crítica

 

 

Perante à mencionada dicotomia (ceticismo versus dogmatismo) apresenta-se, como terceiro momento, a tarefa crítica. O estatuto diferenciado desta última é devido ao que já não será, simplesmente, a reiteração da operação de se colocar em um dos lados da oposição e intentar uma resolução a um problema metafísico particular com recursos mais sofisticados, construindo assim uma nova metafísica, ou pelo contrário, rejeitando-a após a generalização de um ensaio cético sobre este ou aquele problema. Para a nova filosofia transcendental a sistematização do tratamento dos problemas deve ser rigorosa, e Kant nisto é explícito: “...atrevo-me a afirmar não haver um só problema metafísico, que não se resolva aqui ou, pelo menos, não encontre neste lugar a chave da solução” (CRP A XIII). É preciso destacar que o termo "sistematização" (tantas vezes reiterado no texto kantiano) deve entender-se em relação com a questão da "chave da solução" dos problemas da metafísica. Kant não se propõe enumerar a lista completa de todos os problemas e dar uma solução a cada um em particular, senão dar a "chave" da solução, ou seja, indagar a condição da sua solubilidade de acordo com uma formulação adequada. A tarefa crítica de desarticulação de operações, através da análise das significações, é essa chave. E assim, “... a filosofia transcendental, entre todo o conhecimento especulativo, tem a particularidade de nenhuma questão respeitante a um objeto dado à razão pura, ser insolúvel para essa mesma razão humana e nenhum pretexto de ignorância inevitável e de insondável profundeza do problema pode desligar-nos da obrigação de lhe darmos plena e cabal resposta”  (CRP A 477/ B 505). Com relação a esta citação, podemos ler em Loparic (1988)[174] como se desenvolve a questão sobre a ignorância da razão especulativa e o método cético. É importante destacar a demonstração que se faz (no citado artigo) da radicalização de Kant no uso do mencionado método para poder, deste modo, formular e resolver os problemas da metafísica. Segundo esta perspectiva e de acordo com Kant, o método cético (totalmente diferente do ceticismo) é próprio da filosofia transcendental. Por meio dele coloca-se a questão de submeter a crítica à razão mesma, de disciplinar seu raciocínio. Trata-se “de assistir a um conflito de afirmações, ou antes, de provocar, não para se pronunciar, no fim, a favor de uma ou outra parte, mas para investigar se o objeto da disputa não será mera ilusão, que qualquer delas persegue e com a qual nada ganharia, mesmo se não encontrasse resistência, tal modo de proceder, digo, é o que se pode denominar método cético ” (CRP A 423-4/ B 451). O método cético, na tarefa crítica, serve para dinamizar o labor da razão com vistas a indagar os limites das nossas operações, o contrário do ceticismo.

Conseqüentemente, levando em conta este procedimento, a crítica tentará investigar em que reside a possibilidade mesma da dicotomia (dogmatismo-ceticismo), através da pesquisa sobre o fundamento dos problemas necessários da razão, e assim, procurar suas condições de possibilidade de resolução ou determinar sua insolubilidade. Para isso é necessário estudar a capacidade da razão humana de resolver problemas, assinalar o infundado das afirmações e procurar um fundamento a partir do qual possa decidir sobre tais problemas. Essa é a tarefa kantiana: “uma crítica da faculdade da razão em geral, com respeito a todos os conhecimentos que pode aspirar, independentemente de toda experiência, portanto, a solução do problema da possibilidade ou impossibilidade de uma metafísica em geral e a determinação tanto das suas fontes como da sua extensão e limites” (CRP A XII).

Como é claro, esta citação explicita a necessidade de pesquisar as condições de possibilidade da razão para responder aos seus problemas inevitáveis, problemas necessários, e não apenas arbitrários. É verdade que na parte Analítica Kant pesquisa os elementos necessários para formular problemas no âmbito do conhecimento teórico, mas o alvo final é a estrutura dos problemas da metafísica e mais precisamente a própria operação metafísica como problema. Nesse sentido, a preocupação de Kant pelas ciências terá um valor destacável que não se deve desconsiderar, mas também não se deve mal-interpretar privilegiando uma das fases do trabalho. É importante lembrar aqui uma citação de Gerard Lebrun (1970) contra a leitura epistemologista da CRP que diz: “A leitura de Hume não animou Kant a fazer-se o servidor da física-matemática: ela apenas lhe sugeriu que modo de investigação seria capaz de decidir quanto ao valor do saber metafísico, depois que ele constatou primeiro, que este consistia unicamente de proposições sintéticas, segundo, a anomalia que representa essa ciência”[175]. A preocupação kantiana não fica, apenas, no âmbito do fenomenalismo e muito menos ainda na justificação metafísica da ciência da época. Fato que também Heidegger nos adverte ao analisar a volta de Kant no século XIX no meio da época do positivismo[176]. O que está em questão é um exame da razão no seu funcionamento, e é neste quadro mais abrangente que as ciências ocupam seu lugar. Um exame da razão nesse sentido permite-nos:

a) distinguir entre juízos analíticos e sintéticos em geral ( tópico que não foi atendido pela metafísica dogmática);

b) estabelecer a pergunta  sobre “como são possíveis os juízos sintéticos a priori?” (apenas anunciada pela dúvida humeana); e

c) desenvolver o problema acerca de como é possível um conhecimento a priori a partir de juízos sintéticos[177].

Este último tópico torna possível decidir até onde podemos chegar com o conhecimento teórico objetivo. Deste modo é útil uma pesquisa sobre a formulação de problemas nas ciências matemáticas. Não para explicitar uma epistemologia que determine os critérios práticos da verdade das proposições, mas sim para saber quais são as condições de possibilidade de verdade ou falsidade de uma proposição teórica e objetivamente bem formulada, e decidir até onde é possível avançar nesse âmbito de problemas.

A CRP, assim entendida, é uma teoria da solubilidade dos problemas necessários  da razão, e é em função disso que Kant tenta determinar o poder de solucionar problemas que a razão tem. É por meio deste poder que é pertinente caracterizar a razão como um dispositivo respondedor de perguntas[178]. O princípio de funcionamento de dito dispositivo é: “Dado qualquer questionamento prescrito pela natureza da razão podemos responder ou provar que não tem solução possível”. Assim, dado um problema da razão tenho de encontrar a solução ou provar sua insolubilidade.

Para poder chegar a elaborar essa questão Kant pretende identificar, em princípio, quais seriam as condições de possibilidade dos problemas solúveis. Por esse motivo faz uma pesquisa sobre a eficácia da nossa razão, sua estrutura, alcance e limite. Esta é a única maneira -segundo Kant- de sair do fracasso da metafísica tradicional que, quando a razão levanta questões  inevitáveis, na procura da sua solução só leva a afirmações sem sentido. Isto acontece por não ter uma semântica adequada que ofereça uma teoria da referência e da verdade dos conceitos e das proposições usadas na formulação dos problemas. A crítica kantiana tenta evitar esses erros por meio de uma semântica construtivista.

Que posso eu conhecer? É a pergunta kantiana que está em jogo.

A revolução da matemática e da física é o exemplo do que conseguiram as ciências ao transformarem seu método. Por tal razão, é pertinente, “neste ponto, tentar imitá-las, tanto quanto o permite a analogia, como conhecimentos racionais com a metafísica. Até hoje se admitia que o nosso conhecimento  se devia regular pelos objetos; (...) Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento (...). Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira idéia de Copérnico”(CRP B XVI).

As leituras “epistemologistas” da Crítica da Razão Pura interpretaram este enunciado como proclamando uma extensão do projeto físico-matemático, descuidando todo o que neste trabalho se considera essencial do empreendimento crítico. Por outra parte, as leituras "metafísicas" (fundamentalmente escolares) observam neste “giro copernicano” a maior radicalização do subjetivismo, tentando encontrar no idealismo transcendental o antigo idealismo (que Kant se encarrega de refutar em vários de seus textos). Desta maneira, conseguem ver uma suposta ”incoerência” entre os problemas da dialética e os princípios da analítica[179] argumentando que estes últimos seriam uma verdadeira contribuição para o esclarecimento da construção da experiência, entretanto a dialética seria apenas uma regressão metafísica. Esta operação de interpretação é pelo menos estranha, sobretudo se levarmos em conta que são aqueles os problemas que Kant quer resolver, e não, como às vezes se sugere, fazer uma proposta epistemológica. A tarefa da dialética transcendental, diz Kant, é “investigar se o princípio, segundo o qual a série das condições (na síntese dos fenômenos ou também do pensamento das coisas em geral) se estende até ao incondicionado, tem ou não valor objetivo, e quais são as conseqüências daí decorrentes para o uso empírico do entendimento. Investigar, pois, se esta necessidade da razão, devido a um mal-entendido, foi considerada um princípio transcendental da razão pura, postulando com excessiva precipitação, essa integridade absoluta da série das condições nos próprios objetos e, nesse caso, perguntar quais são os mal-entendidos e as ilusões que podem insinuar-se  nos raciocínios cuja premissa maior é extraída da razão pura (premissa que talvez seja mais uma petição que um postulado) e que se elevam da experiência a essas condições...” (CRP A 308-9/ B 365-6). A menos que demonstremos que Kant tenha caído na mesma ilusão que ele próprio denuncia, não tem como haver uma incoerência na passagem da analítica para a dialética. Quando compreendemos que a tentativa de Kant não é fornecer mais uma prova (com critérios epistemológicos mais o menos certos enunciados na analítica) para ociosos problemas metafísicos (desenhados na dialética), então estamos em condições de pensar a “revolução copernicana” relacionada com a possibilidade mesma da capacidade cognitiva. Considero que a mudança “copernicana” de focalização deve ver-se a partir da pergunta: “Até que ponto conhecemos? Qual é o limite da nossa capacidade?”. O que está em jogo nesta questão é uma pergunta pelo conhecimento ontológico, mais do que pelo conhecimento Ôntico, tal como sugere Heidegger[180]. E não apenas, como quer Strawson, a continuação do subjetivismo que o precedia[181].

 A investigação da nossa capacidade cognitiva, como Kant a empreende, nos permitirá atingir o limite que, de ser ultrapassado, só nos forneceria um conhecimento ilusório: “... toda aparência ilusória (Schein) consiste em que o fundamento subjetivo do juízo é tido por objetivo, um autoconhecimento da razão pura em seu uso transcendente será o único meio contra os extravios nos quais a razão incorre quando interpreta mal  sua missão... “. Portanto temos duas tarefas, não devemos confundir os campos de sentido passando indistintamente do dado ao não-dado, e devemos cuidar adequadamente das operações da razão para não misturar princípios objetivos e subjetivos que nos conduzam à mera ilusão. Tal como Kant afirma, continuando com a citação anterior, “... esta inevitável aparência (Schein) ilusória não pode ser contida dentro de limites mediante investigações objetivas e dogmáticas das coisas, senão só mediante uma investigação subjetiva da razão mesma como fonte das idéias”[182]. Com efeito, é o modo de conhecer o que está em jogo. O giro copernicano tenta pôr a atenção nesse “modo” de conhecer, suas condições, em oposição à antiga concepção do realismo transcendental que coloca a atenção nas coisas em si mesmas, a partir da organização de uma ontologia. A Tarefa desta crítica da razão especulativa consiste neste ensaio de alterar o método que a metafísica até agora seguiu, operando assim nela uma revolução completa, segundo o exemplo análogo ao dos geômetras e dos físicos. Análogo com tudo o que acarreta de diferente em uma relação de semelhança. É por isso que a Crítica da Razão Pura desenvolve um tratado acerca do método de solução de problemas e não um sistema metafísico.  E antes ainda é um projeto de desarticulação da operação metafísica.

 

 

 

 

2.7- Conclusão

 

 

O período pré-crítico permitiu indicar as falhas da metafísica dogmática contidas na sua tentativa de formular e resolver problemas, como também enunciar a tarefa a seguir depois de explicitado o fracasso da tradição. A reflexão sobre distintos problemas particulares no interior da metafísica (desenvolvidos nos textos pré-críticos) foi substituída por uma reflexão sobre a metafísica enquanto tal (tematizada no texto crítico). Este deslocamento fez com que a metafísica seja  reconsiderada, caracterizando seus problemas como problemas surgidos necessariamente do próprio funcionamento da razão, e sua tentativa de resolução como uma ilusão dessa mesma razão. Indica-se assim o duplo processo, a dupla operação, por um lado a operação que coloca o problema, por outro lado a operação que tenta resolvê-lo. O surgimento dos problemas necessários da razão é desenvolvido apelando para a teoria do silogismo, mostrando como um princípio de funcionamento lógico organiza os dados do nosso conhecimento. Por outra lado, a ilusão é explicada através do esclarecimento da interpretação errada que se faz dos raciocínios e do princípio de funcionamento lógico. Deste modo se confunde a necessidade lógica da conclusão de um raciocínio com a necessidade real da existência de um objeto, como também o funcionamento lógico com a realidade sensível dos objetos da experiência. Tanto a necessidade dos problemas como a ilusão da sua resolução dogmática formam parte do próprio funcionamento operativo do aparelho cognitivo.

Ao desvelar o funcionamento do aparelho cognitivo em relação com os problemas da metafísica, também compreendemos a história de suas resoluções e rejeições. Neste sentido “metafísica” e “ceticismo” compartilham um chão comum constituindo uma falsa oposição. Com efeito, em ambos os casos trata-se de um realismo transcendental que ignora a questão semântica que deve supor para formular sua proposta. Porém, a tarefa crítica (enquanto idealismo transcendental) será explicitar a questão semântica através de uma pesquisa sobre a possibilidade de formulação e resolução de problemas.

A partir daqui é possível concluir do presente texto que o deslocamento do pensamento kantiano dos textos pré-críticos para a tarefa crítica está determinada pela sistematização dos problemas. Tal sistematização não consiste em criar um novo sistema com o velho estilo dogmático, mas sim no modo em como são tratados os problemas. Passa-se das tentativas particulares de tratamento de problemas da metafísica à colocação da mesma como problema e se perguntar pela sua origem, modo e objeto de conhecimento. Essa passagem faz da problemática da significação o núcleo central da tarefa crítica. Enquanto que o dogmatismo e o ceticismo não conseguem uma formulação adequada dos problemas, a crítica tentara procurar as condições adequadas de formulação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Conclusão Final

 

 

De acordo com o desenvolvido neste ensaio estamos em condições de enunciar algumas conclusões gerais sobre o labor de Kant. Temos visto como a problemática da significação se apresenta através das distintas questões colocadas nos textos do período pré-crítico. A significação dos conceitos e das proposições emerge como obstáculo na formulação e resolução de problemas. Isto faz com que não seja possível dar um tratamento adequado às questões da metafísica. Assim sendo, Kant abandona a empresa de elaborar uma boa metafísica para pesquisar as condições de possibilidade dessa disciplina. Desse modo passa da tentativa de resolver um a um os problemas metafísicos à investigação da possibilidade mesma de resolução dos problemas. O avanço das ciências (matemáticas e física) e a certeza dos seus conhecimentos, servem a Kant para procurar as condições de possibilidade das proposições teórica e objetivamente válidas. Com isso Kant empreende uma pesquisa sobre os limites da nossa razão, examina as operações que o aparelho cognitivo executa para que um problema possa ser colocado e resolvido, e aborda especialmente as operações da própria metafísica. É deste modo como a questão da formulação e resolução de problemas, tratada desde cedo, leva a uma desarticulação, uma desmontagem da operação metafísica. A desarticulação dos raciocínios permite encontrar um tratamento adequado daqueles problemas.

Assim sendo, os problemas da metafísica especial, que Kant queria resolver nos primeiros textos, revelam-se insolúveis na ordem do conhecimento teórico. Este último tem o limite da referência possível, e os "objetos" metafísicos são objetos sem referência. Sobre a base da referência ao objeto se indica a operação metafísica no “salto” para o supra-sensível.

De acordo com a “história filosofante” da filosofia os problemas da razão foram tratados alternadamente segundo o dogmatismo metafísico ou segundo o ceticismo. Poderíamos dizer que os primeiros tentaram resolver ditos problemas colocando os princípios antes que as perguntas, enquanto que os segundos ficaram nas perguntas sem podê-las ordenar. A filosofia crítica tentou desenvolver a própria possibilidade dos problemas, isto é, seu sentido e seu campo de formulação, e deste modo estabelecer uma teoria dos problemas.

Assim sendo, podemos dizer que a pesquisa sobre os limites do conhecimento teórico coloca a razão como problematizante. Deste modo poderíamos formular uma teoria dos problemas ainda mais extensa que a dos teoricamente solúveis, e uma teoria da significação além da elaborada no esquematismo transcendental. Essa teoria da significação deve ser pesquisada não somente a partir da relação entere conceito e objetos (tal como é desenvolvida na razão especulativa), ou fatos (tal como pode ser desenvolvida a partir da razão prática) mas também em relação ao próprio sujeito. Quer dizer, não só é possível formular teorias da significação que estejam na base dos problemas elaborados  a partir de proposições determinantes, senão que também podemos pesquisar a semântica da própria reflexão. O juízo estético é o exemplo mais escabroso da semântica da reflexão. Isto tudo é dito para reafirmar, mais uma vez, que as proposições cognitivas têm um campo de sentido determinado e delimitado segundo um procedimento de doação de significação aos conceitos, qualquer proposição além destes procedimentos carece de sentido objetivo. Contudo, isso não significa que careçam de qualquer sentido. Cada região de problemas deve poder ter uma teoria da significação que forneça sentido às suas proposições.

A interpretação dos textos do primeiro período da obra kantiana nos permite reconstruir um fio condutor que esclarecerá o texto crítico. A metafísica como problemática no interior do texto kantiano é também ali explicitada à luz da questão semântica. Isto permite expor a desarticulação crítica do projeto da metafísica e a finitude de nosso alcance.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pós-Texto

 

 

Aquilo que  insiste no texto, (no epígrafe, no pré-texto, no desenvolvimento de nossa pesquisa) é a possibilidade da pergunta, a possibilidade enquanto tal da pergunta e a possibilidade da pergunta enquanto tal. E insiste em dois sentidos, como aquilo que é tratado, tematizado, sistematizado, e como aquilo que atravessa (o sistema) a pesquisa. A questão não é apenas dar a resposta correta, é, antes, saber se tem uma resposta possível, o que nos leva a procurar não apenas critérios de respostas, e se saber se a pergunta, ela mesma, é possível como pergunta. Como é que uma pergunta surge? Como é que a pergunta aparece, em que horizonte, a partir de quais relações? É isso o que insiste no texto, uma pergunta pela pergunta. A questão que aqui está em jogo é anterior ao critério e ao cálculo. É aquilo que o critério e o cálculo precisam para ser executados, aquilo do qual o critério e o cálculo não podem dar conta.

Diante de uma pergunta podemos estar motivados a responder, dar nossa opinião, calcular o resultado ou nos perguntar pelo sentido da pergunta. Aí, já não estaríamos mais diante da pergunta, daríamos a volta em torno dela. Esse “dar a volta em torno” é um posicionamento, mas de um outro tipo que aquele da resposta. É um posicionamento que desloca à pergunta pela pergunta, e já não precisa dizer “esta pergunta está mal formulada”, com a intenção de dar uma boa resposta. A pergunta pela pergunta tenta, antes de qualquer resposta, se diferenciar seja do “respondedor compulsivo” seja daquele que diz “essa pergunta não me interessa”, em ambos os gestos opera o mesmo impensado...

 

_E Deus...??? Você não respondeu à pergunta por Deus.

_Quem poderia apenas com a limguagem contornar uma questão dessas... ? Será que é possível entender, apenas sob as condições da linguagem, aquelas palavras ... ?

 

Freund es ist auch genug. Im fall du meher willt lesen,

So geh und selbst werde die Schirft und selbst das Wesen.

( Angelus Silesius, Cherubinischer Wandersmann)

 

 

 

 

 

 

APÊNDICE

 

Lista de textos pré-críticos

 

1746     Ideias sobre o verdadeiro modo de calcular as forças vivas....

1754     Investigação sobre a pergunta, acerca de se a terra no seu movimento de rotação tem experimentado alguma mudança.

1754     A pergunta acerca de se a terra envelhece, considerada desde o ponto de vista físico.

1755     História natural geral e teoria do céu....

1755     Sobre o fogo...

1755     Nova Dilucidatio...

1756     Sobre as causas dos tremores com ocasião da desgraça que tem afetado aos países do ocidente de Europa a fins do ano passado.

1756     História e descrição natural do notável acontecimento do terremoto que sacudiu grande parte da terra a fins de 1755.

1756     Novas considerações sobre os tremores registrados desde algum tempo.

1756     Monadologia física...

1756     Novas anotações para explicar a teoria dos ventos.

1757     Esboço e anuncio de um curso de geografia física.....

1758     Nova concepção do movimento e do repouso.....

1759     Ensaio sobre algumas considerações sobre o otimismo.

1760     Pensamentos em relação à prematura morte do Senhor Johann Friedrich von Funk.

1762     A falsa sutileza das quatro figuras do silogismo.

1763     O único fundamento possível para a demonstração da existência de Deus.

1763     Ensaio sobre o conceito de magnitudes negativas e sua introdução na filosofia.

1764     Observações sobre o sentimento do belo e do sublime.

1764     Ensaio sobre as doenças da cabeça.

1764     Recensão do escrito de Silberschlag: Teoria do meteorito aparecido o 23 de julho de 1762.

1764     Investigação sobre a nitidez dos princípios da teologia natural e da moral.

1765     Noticia da disposição dos seus cursos para o semestre de inverno de 1765-6.

1766     Sonhos de um visionário, explicados através os sonhos da metafísica.

1768     Do primeiro fundamento das diferentes regiões no espaço.

1770     Dissertação de 70. Sobre a forma e os princípios do mundo sensível e inteligível.

1771     Recensão do escrito de Moscatis: Da diferença corporal essencial entre a estrutura do animal e o homem.

1775     Sobre as diferentes raças dos homens.

1776-7  Ensaios sobre filantropia.

 

A edição da Academia de Berlim contém (nos seus volumes I e II) os escritos acima enumerados, como também as cartas daqueles anos (volume X cartas 1747-1788). Outros textos de interesse para o estudo deste período são as diferentes versões da Lógica (volume XXIV.1 e .2), e da metafísica (volume XXVII e XXVIII).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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[1] Filme argentino El jugete ravioso (traduzido para o protuguês como O brinquedo raivoso)

[2] Roberto Godofredo Christophersen Arlt escritor argentino 1900-1942.

[3] Carta a Garve 21 de setembro de 1798. AK XII pp 256-258. No caso das correspondências nossas traduções foram conferidas (quando foi possível) com a tradução de Arnulf Zweig em inglês. Philosophical correspondence 1759-1799. London and Chicago: The University of Chicago Press 1990.

[4] AK X, 269.

[5] Resposta a Eberdhard.

[6] AK V, 8, nota; “Um crítico que quis dizer algo como censura desse trabalho, tem acertado mais do que ele poderia achar, dizendo que não se expus nenhum princípio novo de moralidade, mas apenas uma fórmula nova. Mas, quem queria introduzir um novo princípio para toda moralidade e inventar esta por primeira vez?”

[7] A informação foi  tirada da obra de Heidegger Die Frage nach dem Ding. Tradução utilizada em espanhol de Garcia Belsunce-Szankay. La pregunta por la cosa. La doctrina kantiana de los principios trascendentales. Buenos Aires: Editorial Alfa Argentina 1975. pag 56.

[8] CRP B XLIII A citação da paginação  da Crítica da Razão Pura (CRP) será feita como de costume, A corresponderá à primeira edição e B à segunda. As traduções utilizadas foram duas, uma portuguesa, a da 3.ra. edição da Fundação Caluoste Gulbenkian feita por Manuella Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, que foi a mais utilizada, e outra castelhana feita por Del Perojo-Armengol, da Editorial Losada SA Buenos Aires. Onde surgiram dificuldades foi consultada a edição da Academia de Berlin, Kant’s Gesammelte Schriften,1902 , 29 vol., isto também vale para todos os outros textos de Kant citados neste mesmo trabalho.

[9] Heidegger La pregunta por la cosa pag. 55.

[10] AK 18 pag. 60-1.

[11] Carta Garve 21/09/1798.

[12]Loparic, Z. (1982) Scientific Solving-Problem in Kant and Mach. Tese de Doutorado em Filosofía. Catholic University of  Louvain. Esta tese é apresentada e desenvolvida sob diferentes aspectos também em outros artigos do mesmo autor que serão aqui oportunamente citados.

[13] A citação foi tirada de Loparic (1983) Heurística Kantiana. Cadernos de História e Filosofia das Ciências número 5 pp 73-89, pag 75, mas, também em Loparic 1982 pag XII o teorema é explicitado e desenvolvido.

[14] Loparic (1982) prefacio, introdução e cap VI, este último é o lugar do tratamento específico da semântica transcendental. Também em Loparic (1983) encontramos uma síntese daquele tratamento.

[15] Loparic (1982) cap VII, VIII. Também em Loparic (1983) e (1988). Nesses textos é possível encontrar uma classificação dos problemas em Kant segundo a origem, os dados, as incógnitas e o método de solução. Esta classificação é o resultado de uma primeira e fundamental distinção entre problemas solúveis e problemas insolúveis.

 [16] Lebrun, G. (1970) Kant et la fin de la Métaphisique. Paris: Armand Colin.

[17] Allison, H. (1983)  Kant’s Transcendental Idealism. New Haven and London: Yale University Press.

[18]Allison (1983) pag. 25. É preciso enunciar que não se trata de um “metodologismo”, o autor tenta caracterizar o idealismo transcendental ao longo do texto fazendo referência às “epistemic conditions”.

[19] Allison (1983) cap. XI.

[20] As condições epistêmicas ou transcendentais do conhecimento humano não devem ser confundidas com condições epistemológicas, devendo ser cuidadosa a separação entre o empírico e o transcendental, do contrário podem surgir erros de interpretação. As condições epistêmicas do conhecimento humano tratam das condições transcendentais como condições de possibilidade do conhecimento, entretanto, as condições epistemológicas tratariam dos critérios daquele conhecimento possível. Ver Allison (1983) cap I, ver também Pippin, R. (1986) Buchbesprechungen em K.S. 77 H. 3 p. 365-71, especialmente a pag 367.

[21] Lebrun (1970) pag 5.

[22] O caracter metafórico da sentença em questão não é “apenas” metafórico. O valor das metáforas na obra kantiana é inquestionável e irredutível. Isto é, possuem um valor inquestionável no sentido em que não são de modo nenhum inocentes o decorativas, muito pelo contrário indicam o sentido do texto, orientam o rumo da empresa. Portanto, também não são redutíveis a uma leitura linear, transparente. Para abordar aquela metáfora, e saber em que sentido Hume teria “acorado” Kant do sonho dogmático, deveriamos levar em conta a relação Kant-Hume no interior da produção kantiana, tentado observar qual é o lugar que esta ocupa nesse horizonte e de que modo se conecta com outras peças centrais do quebra-cabeças, por exemplo as Antinomias. Este é o trabalho que, em parte, tentamos desenvolver aquí.

[23] Este tipo de classificação encontra-se em Philonenko L’Oeuvre de Kant, em Hartman Kants Erkenntnistheorie und Metaphysik, em Torretti Kant; pela sua parte Ernst Cassirer em Kants Leben und Lehre opõe-se à aplicação da antinomia empirismo-racionalismo para medir os textos kantianos, mesmo os da primeira época, argumentando que não são pertinentes para pôr de manifesto os caractéres principais do “método”, até alí poderiamos concordar com os termos cassireanos, só que sua proposta é logo desenvolvida em um horizonte biográfico, cronologico, evolutivo. Ver-se-a que nossa proposta se distancia de qualquer problema psicológico ou rasgo característico da vivencia pessoal do autor, o nosso trabalho é textual e por conseguinte o que aquí importa são as operações do próprio texto, independentes de qualquer intenção do autor.

[24]  Philonenko ( 1983)L’Oeuvre de Kant. pag 27.

[25] AK. XVIII. O destaque é meu.

[26] AK. X, p. 211-214..

[27] Kant (1783) Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten können. AK IV 252-383. Tradução castelhana utilizada de M. Caimi, Editorial  Charcas Bs.As. 1983.  Ver, para este tópico, especialmente o prólogo.

[28] Para um estudo da gênese da Filosofia Crítica ver Torretti, R. (1980) Manuel Kant. Estudio Sobre los Fundamentos de la Filosofía Crítica. Buenos Aires: Editorial Charcas.

[29] O neologismo “indevido” é para nos referir àquilo que não é dado na experiência, isto é, o denominado “supra-sensível”.

[30] A metáfora da razão doente é estrategicamente explorada por Kant, ver por exemplo Reflexio 5073, Ak XVIII. Mas, poderiamos arriscar também, que não é “apenas uma metáfora”. A leitura das cartas nos abre outra perspectiva. Ler as cartas privadas das pessoas não só é ilegal, mas também, às vezes, um ato quase que obsceno, neste caso, a atitude está justificada pelo valor histórico daqueles documentos; mas, mesmo assim, este exercicio continua a ser obsceno. Obsceno no mais estrito sentido. Obsceno enquanto que oculta e revela aquilo que há de mais íntimo. Apresentemos de uma vez a nossa obscenidade.  Os problemas intestinais e digestivos não eram para Kant sem importância, ele acreditava em uma relação direta entre estes e os problemas mentais. Na carta a Herz de 20/08/1777 Kant pergunta se aqueles problemas intestinais que ele tinha não teriam relação com suas dores de cabeça; mas, essa preocupação não acaba alí, no Ensaio Sobre As Doenças Mentais ele explicita essa relação tematicamente. Não é preciso lembrar que sua própria morte tem a ver com aquelas dores (provavelmente meningite). Por outro lado, nas conexões diretas entre as lutas “intestinas” e as “doenças” da razão, explicitadas em varias metáforas utilizadas nos textos críticos, parece revelar-se um processo de interiorização dos problemas e das suas soluções. A interiorização dos problemas da razão surgem, quiçá, como metáfora da interiorização das doenças. Kant parece não acreditar em intervenções externas (talvez, e arriscamos deliberadamente, porque nenhum médico conseguiu a cura das suas doenças). Aqui se impõe uma interrogante: Metáfora... ou  Somatização?. Tal vez sejam as duas coisas. O certo é que esta obcenidade devela um material para análise que não deve ser rejeitado.

[31] Sobre esta questão é possível consultar vários textos. Entre eles Cassirer, E. (1968) Kant, Vida y Doctrina.Mexico: FCE, que trata o tópico em forma biográfica

[32]  Lebrun (1970) fundamentalmente nos primeiros capítulos.

[33]  Torretti (1980) o tratamento é em relação quase exclusiva com seu estudo sobre o espaço e o tempo em toda a primeira parte do trabalho.

[34]  Kant (1755) Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels oder Versuch von der Verfassung und dem mechanischen Ursprunge des ganzen Weltgebäudes, nach Newtonischen Grundsätzen abgehandelt. A.K. I 214-368.Tradução francesa utilizada de Anne-Marie Roviello. Paris: Librarie Philosophique J.VRIN 1984.

[35] A breve ilustração histórica foi tomada de R.Torretti 1980.

[36] Kant (1755) Meditationum Quarundam de Igne Succincta Delineatio. AK I 369-384. Tradução castelhana utilizada de Chacón-Regera em Alianza Editorial Madrid 1987. Esta disertação latina foi apresentada por Kant o 17 de abril de 1755 e defendida publicamente o 13 de maio, com o que, o 12 de junho, foi promovido com o título de “Honores Magistri Philosophiae”, seu doutorado em filosofia (ver AK I 562-3-4) .

[37] AK I 371 o destaque é meu.

[38] AK I 375.

[39] Ver Cassirer, E. (1968) Kant, Vida y Doctrina.Mexico: FCE pag 40.

[40] Ver Gedanken von der wahren Schätzung der lebendingen Kräfte...parag. 88.

[41]Kant (1756) Metaphysicae cum geometria iunctae usus in philosophie naturale cuius specimen I. Continet monadalogiam physicam.AK I 473-487. Tradução portuguesa de José Andrade em Textos pré-críticos. Editora Res Portugal 1983. Este texto foi a tese defendida por Kant para ter dereitos a dar aulas. ver AK.I 579-80.

[42] Kant (1755) Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels oder Versuch von der Verfassung und dem mechanischen Ursprunge des ganzen Weltgebäudes, nach Newtonischen Grundsätzen abgehandelt. A.K. I 214-368. Tradução francesa de Anne-Marie Roviello. Paris: Librarie Philosophique J.VRIN 1984.

[43] Kant (1755) Meditationum Quarundam de Igne Succincta Delineatio... AK I 369-384. Tradução castelhana utilizada de Chacón-Regera em Alianza Editorial Madrid 1987.

[44] Kant (1755 c) Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova dilucidatio.AK I 385-416. Tradução portuguesa utilizada de José Andrade, em Textos Pré-críticos.

[45] Kemp Smith (1984) em  A Commentary Kant’s “Critique of Pure Reason”  New Jersey: Humanities, sugere que Leibniz e Hume compartilham uma denúncia contra o empirismo, só que no caso de Hume  mantém-se a tese de que a indução deve ser observada como um processo não racional, enquanto que Leibniz argumenta a favor do caráter “self-legislative” do pensamento puro. Ver pag xxx.

[46] Kant (1764) Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsätze der natürlichen Theologie und der Moral. AK II 273-301. A tradução portuguesa de Alberto Reis em Textos pré-críticos lê “evidência” na palavra “Deutlichkeit”, nós preferimos ler “esclarecimento. O escrito kantiano foi motivado por uma pergunta sugerida  pela Academia de Ciências de Berlin. Ver  AK. II 493-5.

[47] AK II 275.

[48] Kant já conhecia o método de análise e síntese dos geômetras gregos. Em Loparic (1982) há um tratamento sobre as relações entre o método dos gregos e o método crítico kantiano.

[49] AK II 277.

[50] AK. II, 278-9

[51]  Ferrarim,A. (1995) Construction and Mathematical Schematism Kant on the Exhibition of a Concept in Intuition. KS. 86 H2 pp 131-174.

[52] op. cit. pag 133.

[53] AK. II, pp 283.

[54] AK X pp 62-67.

[55] AK XIII pp 29-30.

[56] É possível ler, no período crítico, cada região de problemas como delimitada por campos semânticos que não são  possíveis de transgredir sem quebrar o sentido do problema. É por isso que os problemas da moral não vão poder ser resolvidos pela razão teórica. A beleza de uma flor ou a liberdade de um individuo não poderão ser matemáticamente demonstráveis. Kant sabe disso, e sabe que são precisas outras exigências semânticas para que essas proposições fazam sentido.

[57] AK II, pp. 285.

[58] AK. II, pp 285.

[59] AK. II, pp 286.

[60] AK. II, pp 286.

[61] Kant (1766) Träume eines Geistersehers erläutert durch Träume der Metaphysik. AK II 315-373. Tradução castelhana utilizada de Chacón e Reguera. Alianza Editoril. Madrid.1987.

[62] AK.II, pp 335.

[63] AK.II, pp 331.”... recorrer a princípios imateriais é um refugio da filosofia preguiçosa, e por isso tem que se fazer tudo o possível por evitar explicações deste tipo com o fim de que sejam conhecidos os fundamentos dos fenômenos mundanos.”

[64] Kant (1755 c) Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova dilucidatio. AK I pp 385-416. Tradução portuguesa utilizada de José Andrade, em Textos Pré-críticos.

[65] Kant (1764) Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsätze der natürlichen Theologie und der Moral. AK II pp 273-301. Tradução portuguesa utilizada de Alberto Reis em Textos pré-críticos.

[66] Kant (1766) Träume eines Geistersehers erläutert durch Träume der Metaphysik. AK II pp 315-373. Tradução castelhana utilizada de Chacón e Reguera. Alianza Editoril. Madrid.1987.

[67] Na CRP encontramos vários textos, especialmente nos prefácios e na dialética.

[68] Kant(1791) Welches sind die wirklichen Fortschritte, die die Metaphysik seit Leibnizens und Wolffs Zeiten in Deutschland gemacht hat? Tradução castelhana utilizada de Felix Duque. Madrid: Tecnos.

[69] Este tópico será desenvolvido mais claramente em 1.7.

[70] AK. I, p 389.

[71] A abordagem desta questão também está desenvolvida no artigo  de Loparic Sobre a Negação em Kant. Neste artigo Loparic toma como ponto de partida a seguinte sentença kantiana: os problemas necessários da razão levam a obscuridade e a contradições. Estas obscuridades e  contradições são consideradas como baseadas em erros não formais e sim transcendentais. Por tal motivo é preciso sua formulação em termos semânticos.

[72] Loparic (1990) The Logical Structure of First Antinomy. K.S 81 H 3 pp 280-303.

[73] AK I, p. 391-2

[74] AK I, p. 393

[75] AK I, p. 393

[76] AK I, p. 394, o destaque é meu.

[77] Lebrun (1970) Kant et la fin de la Métaphisique. Paris: Armand Colin.p cap II sec V

[78] AK. I, p. 399.

[79] Entretanto, ainda hoje, a psicologia de orientação condutista não faz a mínima diferença entre o físico e o moral, pelo qual não precisa do conceito de desejo nem de apetite. Mais ainda, esses conceitos carecem de qualquer sentido. A partir do seu paradigma fisicalista só faz sentido aquilo que pode ser empiricamente demonstrado e mensurado, mesmo nas “condutas” humanas, deste modo a imprecisão na predição das conductas é justificada pela “multiplicidade de variáveis” que intervém.

[80] AK. I, p. 400.

[81] AK. I, p. 400.

[82] AK. I, p. 400.

[83] AK. I, p. 401.

[84] Kant (1764) Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsätze der natürlichen Theologie und der Moral.AK II 273-301 Tradução portuguesa utilizada de Alberto Reis em Textos pré-críticos.

[85] A distinção do moral em relação com o natural é enunciada, como podemos observar, já nos primeiros textos kantianos. Aqui serão destacados fundamentalmente aqueles textos onde surgiram questões de significação na formulação de problemas teóricos. Um tratamento análogo é possível fazer no âmbito da moral. Os problemas morais têm também procedimentos de doação de sentido que permitem formulá-los e resolvê-los sem necessidade de recorrer a -como diz Kant- “falsas tábuas” de oposições ou mecanismos “naturalizantes” da vontade, e apelando somente para nossa razão.

[86] Em Loparic (1990) La Finitud de la Razón: Observaciones Sobre el Logocentrismo Kantiano.Actas del Coloqui de Lima conmemorativo del bicentenario de la tercera Crítica, chama-se a atenção para uma semântica da razão prática.

[87] Kant (1762) Die  falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren AK II 45-61. Tradução portuguesa utilizada de Alberto Reis em Textos Pré-críticos.

[88] AK. II, p. 48.

[89] Na etapa crítica será decisiva a diferença da origem do juízo (do entendimento) e do raciocínio (da razão). O juízo permite estender o conhecimento teórico objetivo de acordo com determinados procedimentos de doação de sentido formulados no esquematismo transcendental, enquanto que o raciocínio só permite sistematizar o conhecido, também de acordo com procedimentos de doação de sentido formulados no esquematismo analógico e no simbolismo.

[90] AK. II, p. 59.

[91] Ver no texto citado a consideração final.

[92] AK. II, p. 60.

[93]Na Logik Jäsche, ambas posições co-existem, na sec. 57 enuncia-se a posição crítica, e na sec.63 a posição pré-crítica.

[94] sec 57 da Logik :"Lo que esta sometido a la condición de una regla, lo está a la regla misma"(Tradução Garcia Moreno e Ruvira. Bs.As.: Tor); "What stands under the condition of a rule also stands under the rule itself" (Tradução Nussbaum, KS 83, pag 281); "Ce que est soumis à la condition d'une règle, est également soumis à la règle elle-même"(Tradução Guillermit, Paris: Librarie Philosophique).

[95]Nussbaum, Ch (1992) Critical and Pre-critical Phases in Kant's Philosophy of Logic. K.S. 83 H 3 pp 280-293.

[96]Kant (1763) Versuch, den Begriff der negativen Grössen in die Weltweisheit einzuführen.AK II 165-204. Tradução castelhana utilizada de Atilano Dominguez . Madrid: Alianza Editorial.

[97] Ak.II,169.

[98] Ver cap. III, sec 4. deste trabalho.

[99] Kant (1764) Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsätze der natürlichen Theologie und der Moral.  AK II 273-301.

[100]AK II 171.

[101] Com relação aos juízos negativos (“que não o são tão somente do ponto de vista da forma lógica, mas também do ponto de vista do conteúdo”), Kant falará na  Disciplina da Razão Pura;  para um estudo mais preciso sobre o tema na época crítica ver Loparic Sobre a Negação em Kant.

[102] AK. II,  p. 202.

[103] AK. II,  p. 202.

[104]Aqui o princípio de identidade já parece ser tomado com as restrições que  forem definidas no texto de  1755c.

[105]A restrição do princípio de não-contradição é aprofundada neste texto em relação ao de 1755c.

[106]Kant (1763) Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes . AK II 63-163. Tradução francesa utilizada é de Festugière. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin 1972.

[107] Op.cit. primeira parte, primeira consideração.

[108] Descartes, R. (1637) Discurso do  método.... Tradução castelhana utilizada de  Eugenio Frutos . Barcelona: Ed. Planeta. 1984 ( ver quarta parte).

[109] Kant (1763) terceira  parte , parágrafo  2.

[110] op.cit. parágrafo 3.

[111] Heidegger (1962)A tese de Kant sobre o Ser.  Tradução castelhana utilizada de Garcia Belsunce.  Editada em  Que es metafísica? e otros ensayos .BsAs. : Ediciones Siglo Veinte. pag 137-8

[112] op. cit pag 152.

[113] Kant (1766) Träume eines Geistersehers erläutert durch Träume der Metaphysik. AK II 315-373. Tradução castelhana utilizada de Chacón e Reguera. Alianza Editoril. Madrid.1987.

[114] AK. II, p. 320.

[115] Citação de AK. II, p. 320.

[116] Este procedimento, agora desenvolvido em os Sonhos... já é enunciado no texto de 1763 quando trata a diferença entre os conceitos da matemática e da metafísica.

[117] AK. II, p. 318.

[118] AK. II, p. 321.

[119] AK. II, p. 322.

[120] AK. II, p. 322. Tal como já indicamos, é impossível conhecer objetivamente a natureza de uma força.

[121] AK. II, p. 323.

[122] AK. II, p. 331.

[123] AK. II, p. 348.

[124]  Celà est bien dit, respondit Candide, mais il faut cultiver notre jardin. cfr. Volteire, Oeuvres III. París: Gallimard.1967, pag 237.

[125]  AK. II, P. 373.

[126] AK. II, 351-2.

[127] AK. II, 367.

[128] AK. X  69-73.

[129] Kant et la Metaphysique Spéculative. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin.

[130] Consideraciones Acerca de la Metafísica de Kant. Revista Latinoamericana de Filosofía. vol.XVIII. No. 2.

[131] Kant (1770) De mundi sensibilis atque inteligibilis forma et principiis. . Ak II 385-419. Tradução portuguesa de José Andrade .

[132] AK XVIII 69.

[133] Kant (1768) Von dem ersten Grunde des Unterschiedes der Gegenden im Raume. AK II 375-383. Tradução castelhana utilizada de Atilano Dominguez. Alianza Editorial. Madrid. 1992. Tradução portuguesa de Alberto Reis. RES- Editora. Porto-Portugal.

[134] Carta a Garve 21 de setembro de 1798. AK XII pp 256-258.  Ver Al-Azm, S. (1972) The Origens of Kant’s Argument in the Antinomies. Oxford: Oxford University Press.

[135] Kant (1783) Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten können. AK IV 252-383.

[136]Op.cit. p. 259.

[137] Proleg. 260

[138] Kant (1791)

[139] Progressos...259.

[140] O próprio Kant sabia disso nos seus pensamentos mais intimos. Ver Reflexio 4984, AK XVIII, pag. 51.

[141] Lebrun (1993) tradução portuguesa de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Pag 32.

[142] Freuler (1992) Kant et la metaphysique spéculative. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin.

[143] Isso foi indicado na parte I quando se tratou o texto Investigação acerca da evidência dos princípios da Teologia Natural e da Moral (1764).

[144] Heidegger(1986) Kant e o problema da metafísica. . Tradução castelhana utilizada de Gred Ibscher Roth. México: FCE .

[145] citado por Heidegger (1986) pag 15.

[146] op.cit. pag 17.

[147] op.cit.pag.17.

[148] op.cit.pag.18.

[149] “Tenha a bondade, apenas mais uma vez, de lançar um olhar sobre toda a obra e observar que não é de metafísica que eu trato na Crítica, mas de uma ciência nova e até agora não investigada: a crítica de uma razão julgando a priori.” Carta a Garve de 7 de agosto de 1783, AK. X, 340. É claro que não alcança com uma declaração de intenções para não fazer metafísica, mas esta citação ilustra o modo como Kant concebía sua obra e é nesse sentido que eu estou tentando interpretá-la.

[150] O conceito de “aparelho cognitivo”  é utilizado no sentido de Loparic (1982) e (1983); a saber: ”...o problema que Kant se propôs na crítica enquanto propedêutica à filosofía transcendental (teoria dos cânones de adquisição do conhecimento puro em geral) era o de especificar os limites da capacidade heurística de nosso aparelho cognitivo” (pag 89). O termo “Aparato Cognitivo” é também utilizado por Luis Eduardo Hoyos Jaramillo em La Filosofía Trascendental bajo la óptica de la teoria evolucionista del conocimiento. Rev. Lat. de Filos., vol XX, nro. 2 (noviembre 1994), pag. 195-219.”É indubitavelmente acertada a opinão segundo a qual a filosofia kantiana não se defronta com o problema da origem das estruturas a priori do conhecimento senão que as considera como presupostos necessário de todo conhecimento possível. Daí também segue a interpretação de acordo com a qual o problema de por quê essas determinadas estruturas constituem nosso aparelho cognitivo e não outras, é um problema não solucionado por Kant, e muito provavelmente insolúvel em termos kantianos”. (pag 199) É possível não concordar com esta forma de colocar o problema da “origem” das estruturas a priori do conhecimento humano. De fato, nos termos de Kant, é a reflexão transcendental a que nos permite decidir quais são as estruturas de nosso “aparelho cognitivo”. Mas, o que é importante para destacar é o uso do termo “aparelho cognitivo” para designar essas estruturas.

[151] Como já indicamos anteriormente a presença do objeto deve ser cuidadosamente interpretada nos termos do esquematismo transcendental, tema este que é de dificil tratamento até para o próprio Heidegger quem nunca se desvinculou do problema e o mencionou desde o texto de Ser e Tempo até o seminario de Zähringen em 1973.

[152] Refiro-me às três críticas onde se trata como idéia, como postulado e como fim final. Mas, também tem outros textos onde o problema de Deus pode ser trabalhado, a saber, várias cartas e reflexões e sobretudo nos Progressos da Metafísica...

[153]  O texto Kant (1762) Die  falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren  AK II 45-61. Tradção portuguesa utilizada de Alberto Reis em Textos Pré-críticos.

[154] Logik Jäsche sec. 60.

[155] Como mostrei anteriormente o tratamento dos raciocínios na Logik tem as indicações suficientes para, junto com aquele texto de 1762 e a CRP, poder realizar um trabalho esclarecedor sobre a origem lógica das Idéias.

[156] A diferença entre problemas arbitrarios e necessários é tratada por Loparic em Scientific Solving Problem in Kant and Mach. Cap VII.

[157]Não ignoro que esta é uma tese forte, mas parece o resultado pertinente de uma pesquisa apurada sobre o tópico em questão.

[158] Greier  (1993)  Ilusion and Fallacy in Kant’s First Paralogism  Kant-Studien    pp 257-282. Em Lebrum (1970) o problema é demonstrar em que sentido se trata de uma crítica à metafísica especial.

[159]Torretti (1980). Ver especialmente pag. 524.

[160] Kant (1763) Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes . AK II 63-163. Tradução francesa utilizada  de Festugière. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin 1972.

[161] Kant utiliza o conceito de razão em dois sentidos, um é amplo, indicando a totalidade do nosso aparelho cognitivo, outro é estreito, designando a razão propriamente dita. Neste caso utilizo o termo na sua primeira significação.

[162] Porleg. 265.

[163] Essa interpretação pode se lêr nos Progressos da Metafísica....  Especificamente em  AK. XX pag 262.

[164] Os manuscritos de Os Progressos da Metafísica desde Leibniz e Wolff são uma tentativa de tratar tematicamente aqueles problemas. A leitura desses textos nos permite colocar o problema da metafísica e da sua história em termos decididamente filosóficos e não apenas historiográficos.

[165] Ver Progressos... 259.

[166] Esta caracterização da metafísica é dada várias vezes no  manuscrito Progressos da metafísica...

[167] Progressos... 259.

[168] Progressos... 260.

[169] ...Modo maxima rerum,/ Tot generis natis que potens.../ Nunc trahor exul, inops.  Ovidio Metamorfoses. . O recurso à poesía ou ao romance é também usado nos Sonhos e  na Antropologia com o mesmo caráter ilustrativo.

[170] O destaque é meu.

[171] Este modo "ficcional" refere à origem histórica é também encontrado no “Conflicto das faculdades”, na realidade, além da metáfora usada aqui por Kant o que está se assinalando é um acontecimento necessário da razão, e não simplesmente um fato histórico-emprírico dado pelo acaso.

[172] Progressos... 264.

[173] Neste texto manuscrito, jamais apresentado nem para o público em geral durante a vida de Kant, nem para o concurso da Academia de Ciências de Berlin (motivo pelo qual foi escrito), tenta colocar os estadios da razão em relação explícita com a formulação e resolução dos seus problemas. O progresso da metafísica, e aqui Kant questiona a pertinência do conceito de “progresso”, só teria algum sentido se olharmos para o modo de colocar os problemas. O progresso da metafísica também é questionado  na seguinte citação: ”...a metafísica é, na sua essência e intenção final, um todo acabado: todo ou nada. O que para seu fim final se requer não pode ser tratado fragmentariamente, como seria o caso da matemática ou a ciência da natureza, sempre em progresso sem fim...” (Progressos 259)

[174] Loparic (1988) Kant e o Ceticismo. Manuscrito XI, 2, pp 67-83.Este artigo assinala a impossibilidade demonstrada por Kant de qualquer fundamentalismo filosófico no dominio do conhecimento humano.

[175] Lebrun (1970) tradução portuguesa utilizada Kant e o fim da metafísica , pag. 23-24, da editora Pontes, São Paulo. Em toda a primeira parte deste livro Lebrum tenta desarticular as leituras que pretendem uma epistemologia, tanto como aquelas que pretendem uma reciclagem da antiga metafísica na CRP.

[176] Heidegger (1975)La pregunta por la cosa.pp 56-58.

[177] Prolegômenos 265-6.

[178] Z. Loparic (1982) Scientific solving-problem in Kant and Mach desenvolve esta proposta  amplamente.

[179] Strawson (1966) The bounds of sense, an essay on Kant’s Critique of pure Reason. London: Mathuen. Strawson propõe que o idealismo transcendental é uma desafortunada adesão à Crítica. O idealismo transcendental está desconectado do argumento analítico da positiva “metafísica da experiência”. Esse texto funda uma estratégia interpretativa quase dominante na literatura inglesa sobre a CRP. Neste sentido, continuando essa linha de pesquisa Nagel, Gordon (1983) The structure of experience. Kant’s System of Principles”Chicago: University of Chicago Press. Faz um tratamento das condições da experiência em relação com as significações mas, detem sua pesquisa antes de chegar a qualquer ponto de conflito com a anterior interpretação.

[180] Heidegger (1986) Kant e o fim da metafísica.

[181] Neste sentido é muito simples cair na tentação de fazer da Crítica um tratado de psicologia, tal como em Warnock,M.(1976) Imagination. London: Faber and Faber. Ela escreve: “A crítica mostra a verdade psicológica geral”.

[182] Prolegômenos... 328-329.