(Des-)Articulação dos Problemas da
Metafísica
(Classificações, Transformações e
Conseqüências da Teoria Silogística de Kant) [1].
Daniel
Omar Perez
Departamento de Filosofia,
Universidade Estadual do Oeste do
Paraná,
Campus Toledo-Pr.
Este
texto visa reconstruir a interpretação do silogismo, nas duas grandes etapas do
pensamento de Kant, a fim de mostrar a sua importância fundamental na
formulação dos problemas necessários da razão na Crítica da Razão Pura.
.
Introdução:
Na
distinção das grandes etapas do pensamento kantiano (pré-crítico/crítico)
podemos indicar, como é de uso, alguns pontos de ruptura, que dão origem à
novidade do pensamento crítico em relação ao “racionalismo” sustentado nos
textos anteriores; mas também podemos elaborar algumas linhas de continuidade,
que darão certa coerência à “obra do autor”[2].
Nossa tentativa aqui será, antes que aderir ou rejeitar cortes ou genealogias,
reconstruir a interpretação do silogismo em dois textos de Kant, a saber: Die falsche Spitzfindigkeit der vier
syllogistischen Figuren (1762)[3]
e Kritik der reinen Vernunft (1781-87)[4],
utilizando como ponto de passagem a Logik
Jäsche[5]
. Esta reconstrução nos permitirá:
1- avaliar as mudanças de um texto para outro
na questão específica da interpretação do silogismo,
2- apresentar o fio condutor que serve de
fundamento para a efetivação da mudança,
3- indicar a conseqüência fundamental com
relação à teoria dos problemas em Kant, especialmente os da metafísica.
Neste
sentido, procurar-se-á reconhecer em que medida os problemas da metafísica
estariam vinculados e veiculados com e por problemas da linguagem e, em que
medida também, poderíamos esclarecer a própria atividade filosófica trabalhando
sobre problemas da linguagem.
O silogismo categórico como juízo
estendido:
No
ano de 1762 Kant escreve um texto tematizando especificamente o problema do
silogismo. O texto, titulado Acerca da
falsa subtileza das quatro figuras do silogismo, está dividido em seis parágrafos. Por ordem de exposição
cada parágrafo tratará: 1- o conceito do silogismo; 2- as regras dos
silogismos; 3- a distinção, introduzida por Kant, segundo as regras
anteriormente formuladas, entre silogismos puros e mistos; 4- o desenvolvimento
da distinção, figura por figura; 5- a
conclusão lógica específica segundo os resultados da análise; e finalmente, na
última consideração, as conseqüências metafísicas que a pesquisa apresenta.
No
texto pré-crítico o conceito de silogismo é definido por Kant a partir da
análise do juízo. Segundo a estrutura proposicional S-P Kant afirma que:
“julgar é comparar algo como uma característica ( Merkmal ) com uma coisa”[6].
Onde a “coisa” é o sujeito S, a “característica” é o predicado P e a relação de comparação é expressa pela
cópula ou marca, sinal, signo de união, reunião, relação (Verbindungszeichen) “ser” (sein).
Assim, na proposição “S é P” predicamos afirmativamente P de S. Com a
introdução do sinal da negação “S é ¬P” predicamos negativamente P de S.
Deste modo, dado um predicado qualquer é possível de afirma-lo ou nega-lo em
relação a uma coisa. Esta relação deve ser imediata já que é nela que se funda
o ato de comparação do juízo.
Na
extensão desta operação surge o silogismo propriamente dito. A introdução de
uma característica mediata (ein
mittelbares Merkmal), isto é “a característica de uma característica da
coisa”[7],
nos permite completar o juízo em um raciocínio. Deste modo, a definição real (Realerklärung) de silogismo é dada por
Kant nos seguintes termos: “Todo juízo
estabelecido através de uma característica mediata é um silogismo; ou em outras
palavras, um silogismo é a comparação de uma característica com uma coisa por
meio de uma característica intermediária”[8].
Assim,
no silogismo, somos levados do predicado, característica imediata ou
intermediária, ao predicado do predicado, ou característica mediata. Onde
S-P-p’ seriam os elementos envolvidos na operação. Sendo que para conhecer
claramente a relação entre S e p’ sirvo-me do terminus medium P. No exemplo de Kant “a alma humana é um espírito”
se usa o termo médio “racional”, formulando-se a operação do seguinte modo:
Tudo o que é Racional
é Espírito, a Alma do homem é
Racional Logo, a Alma do homem
é Espírito. |
TUDO
R------E A------R LOGO,
A-----E |
Onde
se Espírito é uma característica de Racional
Racional é uma característica da
Alma,
então,
Espírito é também uma característica da
Alma.
No
caso dos silogismos negativos se procede do mesmo modo com a introdução do
sinal de negação. Seja o caso de demonstrar a proposição “A duração de Deus não
é mensurável através de tempo algum”, entre o sujeito Deus e a característica mediata não-mensurável
pelo tempo, introduz-se a característica imediata imutável .
Sendo:
Nada
do que é imutável é temporalmente mensurável
Deus
é imutável,
logo,
Deus é não-mensurável.
Deste
modo é enunciada a regra universal de todos os silogismos afirmativos e
negativos, a saber:
A
característica de uma característica é a característica da própria coisa. |
O
que contradiz a característica de uma coisa, contradiz a própria coisa[9]. |
De
acordo com Kant, estas regras servem de fundamento àquilo que os lógicos da sua
época consideraram o “fundamento supremo” de todos os silogismos positivos e
negativos:
O
que é afirmado universalmente de um conceito, é igualmente afirmado para todo
o que é contido nele. |
O
que é negado universalmente em relação a um conceito, é-o igualmente, em
relação ao que é compreendido nele[10]. |
A
prova deste princípio estaria dada pelo procedimento de abstração. O que
pertence ou não pertence a um conceito é obtido por meio da abstração. A
abstração está ligada diretamente aos princípios de identidade e de contradição
que estão na base de todas estas operações. Assim, a identidade entre S e p’ se
verifica ou rejeita com a introdução do termo intermediário P, temos aí um
silogismo puro. Escreve Kant: “Quando um silogismo contém, apenas, três
proposições inter-relacionadas segundo as regras que expusemos, chamo-lhe
silogismo puro (ratiocinium purum)...”[11].
É o caso dos exemplos anteriores. Na interpretação de Kant, para demonstrar que
“a alma humana é um espírito”, devemos obter, por abstração, do sujeito A, a
característica imediata C, e desta a característica mediata B. É através da
identidade entre um elemento e outro que se conforma a operação silogística.
Assim:
C
(contém) B
A
(contém) C
logo,A
(contém) B
A
regra deste tipo de silogismos da primeira figura seria expressa nos seguintes
termos: “uma característica B de uma característica C de uma coisa A é a
característica dessa mesma coisa”[12].
Mas se o silogismo “só é possível através da ligação de mais de três juízos,
chamar-lhe-ei -diz Kant- silogismo misto (ratiocinium
hybridum)”[13]. Em cada
caso é necessária a introdução de uma ou mais inferências que explicitem aquilo
que está implicitamente colocado na proposição anterior. Os exemplos de Kant
ilustram esta distinção.
Vemos
o caso da segunda figura silogística que é expressa na regra: “o que
contradiz à característica de uma
característica, contradiz à própria coisa”. “Esta proposição é verdadeira
-escreve Kant- porque aquilo que é contradiito por uma característica contradiz
igualmente essa característica, mas o que contradiz uma característica está em
conflito com a própria coisa e, consequentemente, o que é contradito pela
característica de uma coisa está em conflito com a própria coisa. Torna-se
claro que é apenas porque posso converter
simplesmente a maior enquanto proposição negativa que posso deduzir a conclusão
através da menor”[14].
O processo de conversão dos termos da premissa maior, na introdução de uma
quarta proposição, permite explicitar adequadamente o raciocínio, mas este
deixa de ser puro. Assim, temos entre a premissa maior (“nenhum espírito é
divisível”) e a conclusão (“nenhuma matéria é espírito”), duas proposições, a
saber, a conversão lógica da maior e o termo médio.
Nenhum espírito é
divisível nada do que é
divisível é espírito Toda matéria é
divisível; logo, nenhuma matéria
é espírito |
Nenhum E contém D nenhum D contém E Todo M contém D nenhum M contém E |
Na
terceira figura, (que funciona sob a seguinte regra “o que é compatível ou
incompatível com uma coisa é também compatível ou incompatível com algumas
coisas que estão contidas numa outra característica da coisa”) também se introduz,
por outro modo de conversão, uma quarta proposição. “Esta proposição -escreve
Kant referindo-se à regra do silogismo- só é verdadeira porque posso transpor,
por conversão (per conversionem logicam)
o juízo no qual é dito que uma outra característica convém à coisa; o que o
torna conforme à regra de todos os silogismos”[15].
Exemplo:
Todos os homens são
pecadores Todos os homens são
racionais alguns racionais são
homens logo alguns racionais
são pecadores |
Todo
H contém P Todo
H contém R alguns
R contém H alguns
R contém P |
No
segundo e terceiro caso de silogismo as três últimas proposições conformam a
figura do silogismo “puro”. Onde a maior contém o predicado da conclusão. Mas
isto dá-se só com a introdução de uma nova operação. Assim a segunda proposição
fica como a maior.
Nos
casos da quarta figura, tratada por Kant, afirma-se que já não é possível dar
uma regra que subsuma essa operação. “A forma de tirar conclusões nesta figura
é tão contrária à natureza, e funda-se num número tão elevado de deduções intermédias,
que devem ser pensadas como proposições intercaladas, que a regra universal que
eu poderia extrair seria muito obscura e incompreensível”[16].
Neste tipo de operações é possível utilizar conversões ou contraposições para
explicitar a cadeia de inferências que conduz da premissa maior à
conclusão.Note-se no exemplo:
Nenhum homem estúpido
é sábio; nenhum sábio é
estúpido. Alguns sábios são
piedosos; alguns piedosos são
sábios. Alguns piedosos não
são estúpidos. |
Nenhum
E contém S nenhum
S contém E Alguns
S contém P Alguns
P contém S Alguns
P contém não E. |
Na
segunda e na quarta proposição são introduzidas as inferências que permitem
explicitar a passagem de uma sentença à outra até chegar à conclusão.
Com
isto tudo, Kant quer mostrar que com a excepção do silogismo categórico (ou da
primeira figura), todos os outros raciocínios introduzem conclusões
intermediárias para completar o conceito. Portanto, não são propriamente
silogismos. Mas de modo algum significa que sejam falsos. A importância desta distinção,
e aqui está o objetivo da tarefa kantiana neste texto, funda-se na tentativa de
explicitar os passos em função da clareza das conclusões segundo regras
lógicas. “A meta (der Zweck) da
lógica, não é confundir, mas resolver (aufzulösen),
expôr alguma coisa, não de uma forma velada, mas com evidência (augenscheinlich). É por isso que essas
quatro espécies de raciocínios (Schlußarten)
devem ser simples, sem misturas e sem inferências auxiliares, feitas de uma
forma escondida; se não for assim não lhe devemos dar o direito de aparecer
numa exposição lógica como sendo as fórmulas da apresentação mais clara de um
raciocínio”[17]. É o
trabalho de esclarecimento da sintaxe lógica o que está em jogo, sua
caracterização e seu limite.
O
privilegio de Kant para a primeira figura baseia-se na afirmação que diz: “um
conceito claro (deutlicher Begriff)
só é possível através do juízo, e um conceito completo (vollständiger), só é possível através de um silogismo (Vernunftschluß)”[18].
Na extensão do processo de abstração passamos, em uma ordem de continuidade, do
juízo para o silogismo. Deste modo, “para que um conceito seja claro, é
necessário que eu reconheça (erkenne)[19],
claramente, alguma coisa como característica de alguma coisa, o que é um juízo”[20].
E mais adiante Kant explicita: “o juízo não é o conceito claro em si mesmo, mas
a operação (Handlung)[21]
pela qual ele se torna verdadeiro; pois é a representação que surge da própria
coisa depois desta representação, que é clara”[22].
Se prolongarmos esta Handlung -operação- no silogismo chegaremos à
completude do conceito. É de destacar como Kant hierarquiza a “operação” como
aceso à verdade. Uma operação baseada na sintaxe lógica é fundamento de verdade
de uma proposição.
Entre
clareza e completude, entre juízo e raciocínio, há uma relação de continuidade
sustentada no mesmo fundamento; “... temos necessidade da mesma faculdade da
alma (Grundkraft der Seele) para os
conceitos claros e para os conceitos completos (visto que é, exatamente, a
mesma faculdade que reconhece, imediatamente, qualquer coisa como
característica de uma coisa que serve também para representar de novo, nesta
característica, uma outra característica e para assim pensar a coisa através de
uma característica afastada), assim, salta também aos olhos, que o entendimento
(Verstand) e a razão (Vernunft), isto é a capacidade de
conhecer claramente (das Vermögen,
deutlich zu erkennen) e a de efetuar silogismos (und dasjenige, Vernunftschlüsse zu machen), não são, quanto ao seu
fundamento, faculdades diferentes (keine
verschiedene Grundfähigkeiten sein)”[23].
É nesse fundamento que se sustenta a unidade da distinção lógica ou
conhecimento, que Kant não diferencia, neste texto, senão apenas com relação às
representações sensíveis. “Distinguir logicamente, é reconhecer (Logisch unterscheiden heißt erkennen)
que uma coisa A não é B, o que é sempre um juízo negativo; distinguir
fisicamente (physisch unterscheiden)
é ser levado (getrieben werden) por
representações diferentes a cometer ações (Handlungen)”[24].
Isto é colocado por Kant para diferenciar um tipo de procedimento racional de um tipo não racional, como poderia ser o exemplo da conduta dos animais, onde
também poderíamos isolar um conjunto de representações e operações. Sem ter,
por isto, uma elaboração conceitual.
Mas
o que é de destacar, e neste ponto Kant apenas consegue enunciar a questão, é o
problema daquilo que torna possível o juízo. Trata-se da indagação da “força (Kraft) ou capacidade (Fähigkeit) que não é outra coisa que a
faculdade (Vermögen) do sentido
interno (des innern Sinnes) para
constituir (zu machen) suas próprias representações em objetos de pensamento”[25].
O que aqui está em jogo é a relação entre a distinção física e a distinção
lógica. Trata-se de procurar a operação que permite passar das representações
sensíveis às representações lógicas, das sensações ao pensamento.
Por
um lado, Kant desenvolve toda uma teoria do silogismo baseado no princípio de
identidade e de não-contradição. Toda e qualquer proposição deve ser
considerada analítica, para que, a partir da análise do conceito, possamos
decidir sobre a sua relação com o predicado ou com o predicado do predicado. A
distinção lógica baseada no procedimento da abstração funda-se na análise de
conceitos. No entanto, Kant afirma explicitamente, como temos já citado, que
aquilo que torna possível o juízo é a operação de provocar (zu machem) representações lógicas a
partir de representações de caracter sensível.
Aqui
surge um primeiro conflito no texto kantiano. Se a conexão entre os termos de
um silogismo deve ser explícita ou implicitamente analítica, quer dizer, as
premissas e conclusões devem ser proposições analíticas (e isto está sustentado
pelo princípio que diz: “todos os juízos ou são idênticos ou são
contraditórios”), então Kant não precisaria de fazer referência à efetividade
das coisas. Não teria porque se incomodar em procurar “a capacidade que torna
possível o juízo” em relação com representações sensíveis. Se o simples
esclarecimento analítico do conceito na forma do juízo e do raciocínio for suficiente,
então as três páginas nas quais Kant fala sobre a conduta de um boi perante sua
cavalariça, a relação entre o assado e o cachorro, seria “pura literatura”, no
sentido pejorativo das palavras, pertenceria a esse “barroquismo” kantiano que
tantas vezes foi julgado como artificial por alguns comentadores ingleses. A
questão é que estas afirmações sobre a distinção lógica e a distinção física
não parecem ser ornamentais, localizam-se na “Consideração Final” (Schlussbetrachtung), no momento em que
Kant deve mostrar para que é que serve tudo esse trabalho, que não é a mera
“ginástica dos eruditos” (Athletik der
Gelehrten). Mas, por outro lado, se não é mero ornamento, para que
introduzir esse problema? ... logo após de uma quase apologia da analiticidade
dos conceitos. A estrutura da argumentação do texto parece se quebrar, justo no
momento decisivo, no momento em que Kant deveria ser consequentemente
leibniziano.
Parece
surgir um “mal-estar” em Kant na hora de aceitar incondicionalmente a tese de
que todas são representações do mesmo tipo, só que algumas são confusas. Se ele
tivesse optado por essa proposta nada teríamos a dizer acerca da sua conclusão,
a não ser que ele apreendeu e até melhorou os ensinamentos do mestre. Mas não.
Parece estar anunciando outra coisa, algo que não foi suficientemente
elaborado.
Se
Kant fosse mais um racionalista, e especificamente um “leibniziano”, não teria
qualquer motivo para se perguntar pela força (Kraft) que permite constituir (zu
machen) as representações em objetos do pensamento. A resposta é clara para
qualquer leibniziano. Não podemos afirmar apressadamente que Kant já tenha
diferenciado sensibilidade e entendimento ao modo crítico, mas também não está
aderindo à teoria leibniziana de representações claras e representações
confusas. Ele as denomina “representações físicas” e nada tem a ver com
qualquer conceitualização confusa.
Sem
rodeios enunciaremos nossa proposição. Existe uma estreita relação entre: 1- a
tentativa do esclarecimento analítico dos silogismos; 2- a questão de marcar
essa relação entre representações físicas e o pensamento; e 3-a mudança da
concepção do silogismo elaborada na Crítica da Razão Pura. Esta mudança está
direcionada por aquele “mal-estar” que irrompe no texto.
Kant
está nos indicando o alcance e o limite da formulação e resolução de problemas
através da análise conceitual. Uma análise que é desenvolvida segundo operações
sintéticas, a saber: quando tenho um
juízo, formulo um conceito claro; quando tenho um silogismo, formulo um
conceito completo. Este seria um modo de estender o meu conhecimento da
coisa, quer dizer, uma espécie de predicação obtida por análise. Onde, na
medida em que seja confirmada, segundo uma coerência sintática, podemos dizer
que obtemos uma conclusão verdadeira, que alcançamos a verdade. Mas, no momento
de reafirmar essa convicção analítica, Kant chama a atenção para a relação
entre o pensamento e a sensibilidade, as representações lógicas e as
representações físicas, as palavras e as coisas. É aí que está marcado o limite,
é aí que a interpretação deveria entrar em crise.
Aquém
de constituir o trabalho aqui apresentado em uma “ginástica de eruditos” (Athletik der Geleherten), e antes de
passar a conclusões pressurosas, tentaremos a prometida reconstrução do texto
crítico, onde trata-se dos silogismos, e, logo de alguns rodeios necessários,
que esclarecerão alguns pontos, abordaremos o problema de forma radical (ou
quase). Nesse momento de nossa tarefa o confronto com a tese de Nussbaum[26]
permitirá, sob outra perspectiva, elucidar o sentido da mudança da concepção
lógica para, deste modo, aprofundar naquele “mal-estar” que fico em aberto na
nossa leitura do texto anterior.
No
“Uso lógico da razão”, na Crítica da
razão pura, Kant distingue “entre aquilo que é conhecido imediatamente (unmittelbar erkannt) e o que só é deduzido (was nur geschlossen
wird). Conhece-se imediatamente (wird
unmittelbar erkannt) que há três
ângulos numa figura limitada por três linhas retas; mas só é deduzido (ist nur geschlossen) que estes ângulos
são iguais a dois retos”(A303/B359). Temos, assim, procedimentos diretos e
indiretos, inferências e raciocínios.
Em
função disto, e para definir ainda mais acuradamente os termos, podemos dizer
que: “Em todo raciocínio (Schlusse)
há uma proposição que serve de princípio (Grunde)
e outra, a conclusão (Folgerung) que
dela é extraída e, por fim, a dedução (Schlußfolge)
(a conseqüência), pela qual a verdade da última está indissoluvelmente ligada à
verdade da primeira”(A303/B360). Assim sendo, as inferências podem ser
imediatas ou mediatas. As primeiras denominam-se inferências do entendimento (Verstandsschluß), onde “o juízo inferido
já se encontra no primeiro, de tal modo que dele pode ser extraído sem
intermédio de uma terceira representação...”. Por exemplo, da proposição :
“todos os homens são mortais”, é possível inferir imediatamente que “alguns
homens são mortais”, “nada do que é imortal é um homem”; mas não que “todos os
sábios são mortais”. Para deduzir esta última conclusão daquele princípio será
necessária a intervenção de um juízo intermediário que possibilite a passagem
adequadamente. É a introdução do juízo intermediário entre o princípio e a
conclusão o que define o conceito do silogismo, ou inferência da razão. Sendo
esta a definição, a regra que funda a operação silogística será a seguinte:
1-
(maior) concebo uma regra pelo
entendimento.
2-
(menor) subsumo um conhecimento na
condição dessa regra mediante a faculdade de julgar.
3-
(conclusio) determino o conhecimento
pelo predicado da regra pela razão.
O
exemplo:
Todos os Homens são
Mortais os Sábios são Homens logo, os Sábios são Mortais |
Todo H------M S------H logo, S------M |
Na
conclusão do silogismo, restringimos um predicado a determinado objeto, após
tê-lo pensado na premissa maior em toda a sua extensão, sob certa condição. Mas
o que é realmente importante destacar nesta nova formulação é o conceito de “regra”. É sob a extensão da “regra”
universal que subsumo um conhecimento particular para chegar à conclusão. Já
não se trataria da analiticidade de um conceito e de um processo de abstração
que captaria a identidade entre o Sujeito e o predicado. É a afirmação da maior
tida como verdadeira, que assegura a verdade da conclusão, entanto que
aplicação de uma regra universal ao caso particular. Que “todos os homens sejam
mortais” é aqui uma regra e não apenas uma relação de identidade entre mortal e
homem. Por outra palavras, “é necessário que seja mortal para que seja homem”.
Se
lembrarmos o texto pré-crítico, observaremos que a regra última, ou princípio
de todos os silogismos, estava enunciada em termos de “característica”,
enquanto que agora aparece em termos de “regra”. A passagem se daria da análise
do conceito para a aplicação da regra. Um esquema das duas concepções
apresenta-se na Lógica Jäsche, que do § 41 a § 93 ambas desenvolvem-se sem aparente solução de
continuidade. Por exemplo, no § 57 o princípio geral de todos os raciocínios é expresso
nos seguintes termos: “Aquilo que está sob a condição de uma regra (Was unter der Bedingung einer Regel steht,),
está também sob a própria regra (das
steht auch unter der Regel selbst)”. Assim, o raciocínio “estabelece uma
regra geral e uma subsunção à condição da regra. Donde se deduz que a conclusão
não está contida a priori no
singular, mas no geral, e que é necessária sob certa condição”. Em função
disto, a regra é definida como “uma asserção submetida a uma condição geral”. E
mais adiante se afirma que “o conhecimento é a subsunção”[27].
O procedimento de “subsumir sob” torna-se “conhecimento”. Mas no § 63 enuncia-se a seguinte regra: “Aquilo que convém à
característica de uma coisa (Was dem
Merkmale einer Sache zukommt), convém também à coisa mesma (das kommt auch der Sache selbst zu); e o
que contradiz à característica de uma coisa
(und was dem Merkmale einer Sache
widerspricht) contradiz também a coisa mesma ( das widerspricht auch der Sache selbst)”. Sendo assim, teríamos,
aparentemente, duas regras contrapostas para os silogismos. Uma a partir da
subsumsão, outra a partir da abstração. Nesse sentido orienta-se o pensamento
de Nussbaum.
Segundo
o nosso comentador, a longa carreira de Kant teria começado como filósofo
racionalista, mais precisamente aderindo à escola de Leibniz e Wolff, e
finalizado como o criador da filosofia crítica. Esta afirmação não é dita,
apenas, para repetir o que aparentemente todo o mundo sabe, mas para destacar
os dois pontos que definem as mudanças na filosofia da lógica de nosso autor;
tópico este que não teria sido tão documentado nas pesquisas históricas quanto
o que aconteceu no âmbito da metafísica, teoria do conhecimento, filosofia da
ciência e matemática. Deste modo, afirma-se que Kant teria começado por
sustentar uma concepção da lógica que só pode ser consistente em relação com a
concepção leibniziana, de que toda proposição categórica verdadeira é
analítica, para, mais tarde, passar a uma lógica crítica que tem relação com a
filosofia crítica como uma totalidade. Mas, de acordo com nosso comentador, esta
passagem “não teria transcendido inteiramente seus origens pré-críticos”[28].
Com efeito, na etapa pré-crítica teria se dado um privilegio do silogismo
categórico a partir de uma determinada concepção da lógica, enquanto na etapa
crítica propor-se-ia uma equivalência e coordenação entre os três tipos de
figuras silogísticas em questão. Segundo Nussbaum, a mudança de concepção
lógica, elaborada por Kant, não teria conseguido dar conta da tentativa crítica
de já não privilegiar a figura categórica[29].
Isto é, teríamos o mesmo privilegio do silogismo categórico sob duas concepções
da lógica. E Nussbaum dá elementos para sustentar essa afirmação dizendo, que
se compararmos a operação da inferência silogística na CRP com a dos textos
pré-críticos observaremos as diferenças fundamentais entre ambas as concepções,
mas logo poderíamos conferir sua deficiência em relação ao privilegio do
categórico. Na CRP Kant tenta reconhecer três tipos de silogismo como
coordenados e igualmente importantes (categóricos, hipotéticos e disjuntivos).
No texto pré-crítico observa-se o silogismo categórico como central. Na CRP a
formulação do princípio está baseado na “regra” como conceito central, no texto
pré-crítico na “característica”. Em ambos os casos estaria sendo afirmada uma
relação de “contenção”.
Mas
o problema seria saber como deve ser interpretada essa “contenção”. Que
significa “conter”? É isso o que está em jogo na formulação das duas regras.
Nussbaum cita Russell para dizer que tradicionalmente houve uma diferença de
opinião em relação à natureza desta “contenção”. “Quando enunciamos um
silogismo estamos dizendo que se a classe
dos humanos é parte da classe dos mortais, e se a classe dos gregos é parte da classe dos humanos, então a classe
dos gregos é parte da classe dos mortais?
Ou estamos dizendo que se o conceito
mortal é parte do conceito humano, e se o conceito humano é parte do conceito grego,
então o conceito mortal deve ser parte do conceito grego”[30].
Em cada caso a inclusão varia de significação. A etapa pré-crítica seria intensional e a crítica seria extensional e no meio dessa distinção encontrar-se-ia
a Lógica Jäsche. É ai que Nussbaum afirma: “Descobrimos neste último
trabalho uma mistura inconsistente das concepções, crítica e pré-crítica, um
estado de fatos que não é em si mesmo surpreendente, dado o fato que estas
leituras se estendem por toda a carreira de ensino de Kant. Mas isto pode, ao
menos em parte, dar conta da reputação de incerto (unreliability) que este trabalho tem adquirido entre os estudiosos
de Kant”[31]. Finalmente
esta colocada a controvérsia. Ou não só o texto da lógica é inconsistente, mas
também a tentativa de não privilegiar o silogismo categórico na crítica é pouco
sólida e, portanto, só teríamos inconsistências, insolvências e ambigüidades em
Kant; ou é possível dar uma leitura diferente, que mesmo encontrando rupturas e
continuidades, possa dar conta de algum tipo de coerência ao labor de Kant. Não é que pretendamos “restaurar” Kant,
trata-se simplesmente de arriscar uma abordagem que nos permitirá não só achar
um Kant preocupado com tecnicismos lógicos, mas também, e sobre tudo, com
questões de sentido e significação que permitam dilucidar os problemas da
metafísica. Aproximar-nos-emos à leitura do texto da Lógica para verificar a
“inconsistência” de Kant e, logo, trataremos da “insuficiência” de sua empresa,
segundo Nussbaum.
Abordemos
o texto da lógica na sua estrutura. Como temos dito, entre os parágrafos 41 e
93 Kant trata dos raciocínios (von den
Schlüssen). Começa com uma definição geral, do mesmo modo que na crítica,
diferenciando as inferências mediatas das imediatas. Os raciocínios imediatos
pertencem ao entendimento e denominam-se também Verstandesschlüsse. Os raciocínios mediatos (e aqui introduz uma
distinção a mais) são ou da razão ou da faculdade de julgar (Urteilskraft)[32].
Do parágrafo 44 a 55 são desenvolvidos os raciocínios imediatos. Do parágrafo
81 a 93 trata dos raciocínios do juízo. Os raciocínios da Razão, que são os que
estão aqui em questão, são tematizados entre os parágrafos 56 e 80, e é ai onde
vamos a nos deter.
No
§ 56 formula-se o conceito do silogismo,
no § 57 o princípio geral baseado na
“regra” e na “condição da regra”. Assim, uma regra geral é denominada premissa
maior, a proposição que subsume um conhecimento (o sujeito da conclusão ou
termo menor) e a condição (o termo médio) é a premissa menor, e a proposição
que afirma o nega, do conhecimento subsumido, o predicado da regra, é a
conclusão. As premissas constituem a “matéria” e a conclusão a “forma” do
silogismo[33]. Uma vez
apresentado o procedimento geral do raciocínio da razão podemos abordar as suas
distintas figuras. “A relação que a premissa maior representa, como regra,
entre um conhecimento e a sua condição, constitui as diversas espécies de
inferências da razão”. É por isso que, de acordo a como seja efetuada essa
relação, pode haver três espécies de raciocínios, a saber: categóricos,
hipotéticos e disjuntivos (CRP A 304/
B 361). A divisão dos raciocínios racionais baseia-se na relação entre o
sujeito e o predicado da premissa maior. Escreve Kant: “Todas as regras
(juízos) exprimem a unidade objetiva da consciência da diversidade do conhecer,
contém, portanto, uma condição sob a qual pertence um conhecimento, em união de
outro, a uma consciência única. Concebem-se três condições desta unidade: 1-
como sujeito da inerência, 2- como razão da dependência de um conhecer com
relação a outro, 3- como união das partes em um todo”. Kant esclarece que os
raciocínios não podem ser divididos, como os juízos[34],
em relação à sua “quantidade”, porque
toda maior é uma regra e, porém,
universal; em relação à sua “qualidade”,
porque seu enunciado afirma ou nega indistintamente; em relação à sua “modalidade” porque a conclusão deve ser
sempre necessária. Por esta razão, o princípio de divisão está baseado na “relação”. Assim é apresentado por Kant o
fundamento da divisão dos silogismos em categóricos, hipotéticos e disjuntivos.
O sentido da interpretação do silogismo deve ser dada a partir da extensão da regra em qualquer das suas três
possíveis formas. Kant muda seu privilegio pela característica em favor da relação
dos elementos da regra. Deste modo,
a regra do categórico deve ser
interpretada sob o princípio da subsunção
da condição da regra. Desenvolvamos
cada caso.
O
silogismo é dito categórico quando sua premissa maior, na forma de regra, é
pensada sob a condição de “sujeito
da inerência das características”. Assim, no §62 são enunciados seus conceitos fundamentais, a saber”:
1)
o predicado na conclusão; cujo conceito se chama termo maior (terminus maior), porque ele tem uma esfera maior [35]do
que o sujeito;
2)
o sujeito (na conclusão), cujo
conceito se chama termo menor (terminus
minor);
3)
uma característica intermediária (nota
intermédia), que se chama termo médio
(terminus medius), porque é por meio dele que um conhecimento é subsumido
na condição da regra.
Se
levarmos em conta a extensão da esfera
do conceito do predicado da conclusão, então a interpretação, neste caso, deve
ser extensional. Comparemos ambas as interpretações.
S P
P’ |
No caso da
extensionalidade a interpretação é: P’ P S |
Onde: S era o sujeito da
conclusão e da premissa menor, P o predicado da premissa menor e o sujeito da
premissa menor, e P’ o predicado da premissa maior e da conclusão |
Não
há contradição ou inconsistência, mas aprofundamento na interpretação do
silogismo. Para diferenciar ambas as
interpretações podemos utilizar a sugestão de Nussbaum, a partir da concepção
de Russell, de intensionalidade e extensionalidade, e nem por isso achar
qualquer “inconsistent mixture”. E
ainda, dando um passo a mais, podemos também desenvolver, a partir daqui, a
explicação da própria teoria das idéias na CRP. O tratamento dos raciocínios na Logik tem as indicações suficientes
para, junto com aquele texto de 1762 e a CRP, poder realizar um trabalho
esclarecedor sobre a origem lógica das Ideias da Razão. O texto de Nussbaum
limita-se a tomar nota do enunciado da regra sem atender ao estatuto da mesma.
Agora, o que “convém à característica de uma coisa também convém à coisa ....sob
a condição da regra ”. Kant explica na observação do § 57 que “a inferência da razão toma
como premissa uma regra universal e
uma subsunção à condição da regra”. Devemos levar em conta a concepção da regra
introduzida na nova interpretação. Assim, os componentes do silogismo são:1-
uma regra universal ou premissa
maior.; 2- uma proposição que subsume um conhecimento na condição da regra ou premissa menor.; 3- uma
proposição que afirma ou nega do conhecimento subsumido o predicado da regra ou conclusão. (Destaque-se o termo
“regra” na formulação).
É
deste modo que Kant define Regra, a
saber: como “uma asserção sob uma
condição universal”. É destacando o papel da regra, no raciocínio, que ele
consegue incluir as duas outras inferências (hipotéticas e disjuntivas) como
sendo operações da razão.
O
caso das inferências hipotéticas da razão é o mais polêmico. É nesse ponto que
Nussbaum apoia sua afirmação de que Kant, mesmo com a nova interpretação,
estaria privilegiando o silogismo categórico. No § 75 Kant diz que: “uma inferência hipotética é uma
inferência que tem por maior uma proposição hipotética”; até aqui estaria se
marcando o caracter da inferência a partir da relação dos componentes na
premissa maior, mas nas “observações” declara que: “1- as inferências
hipotéticas da razão não têm, pois, terminus
medium, mas nelas a conseqüência de uma proposição a partir de outra é
apenas indicada. Com efeito, na maior
delas indica-se a conseqüência de duas proposições uma da outra, das quais a
primeira é uma premissa, a segunda uma conclusão. A minor é uma transformação da condição problemática em uma
proposição categórica. 2- a partir do fato de que a inferência hipotética só
consiste de duas proposições, sem ter um termo médio, pode-se perceber: que ela não seria (sei) propriamente uma
inferência da razão, mas antes tão-somente uma inferência imediata a ser
demonstrada segundo a matéria ou a forma a partir de um antecedente e um
conseqüente. (...) Toda inferência da razão deve ser uma prova. Ora, a
inferência hipotética traz consigo apenas o fundamento
da prova. Conseqüentemente fica claro a
partir daqui também que não poderia ser uma inferência da razão (dab
er kein Vernunftschlub
sein könne)”[36].
Aqui não temos outra saída a não ser aplicar o princípio do terceiro excluído.
Ou não é uma inferência da razão, e então Nussbaum tem razão em considerar o
texto como inconsistente, e até poderíamos dizer “auto-contraditório”; ou é uma
inferência da razão, e então devemos considerar a última citação como uma
comparação entre o silogismo categórico e o hipotético a modo de esclarecimento,
sem por isso restar importância ao estatuto da regra enquanto princípio de
todas as inferências da razão. Isto é, mesmo tendo duas proposições a
inferência continua a ser da razão por estar fundada em uma premissa maior
enquanto regra, e a partir da qual
podemos operar por modus ponens ou modus tollens. A rigor, se for o caso,
não teríamos nem mesmo duas, mas uma proposição. Outro detalhe a levar em conta
é o cuidado de Kant em redigir esses enunciados usando sei ou sein könne.
Detalhe que nem todas as traduções conservam, passando assim de uma proposição
que poderíamos colocar entre aspas como uma relação de comparação, para uma
sentença afirmativa sobre o caráter da operação lógica[37].
De
modo análogo acontece com as inferências disjuntivas, onde a premissa maior é
uma proposição disjuntiva da qual se infere, segundo modus ponens ou tollens,
a verdade de um membro a partir da falsidade dos outros ou vice-versa. Não nos
deteremos na explicação técnica.
Além
destes tipos de inferências da razão, também temos os “falsos silogismos” ou
“inferências mistas” e os “dilemas” ou “inferências hipotético-disjuntivas”. As
inferências mistas seriam casos impuros do silogismo categórico, e os dilemas
uma combinação de hipótese e disjunção. A apresentação do quadro completo das
inferências da razão, desenvolvido na Lógica,
permite-nos aprofundar na compreensão da mudança de interpretação, saber qual é
a dimensão da nova formulação e em que sentido está orientada. Com estes
elementos podemos ingressar no texto crítico.
Do
mesmo modo que as formas lógicas do nosso conhecimento (no entendimento) podem
conter a origem dos nossos conceitos puros a
priori, -procedimento este, que o próprio Kant se encarrega de mostrar-nos
na Analítica Transcendental da primeira crítica, deduzindo as
categorias da tábua dos juízos-, assim também, a forma dos raciocínios
contém a origem dos nossos conceitos da razão (CRP A 321/ B 378). A operação pode ser formulada da seguinte
maneira: na conclusão do silogismo, restringimos um predicado a determinado
objeto, após tê-lo pensado na premissa maior em toda a sua extensão, sob certa
condição. Esta quantidade completa da extensão, com referência à tal condição,
chama-se universalidade, que, na síntese das intuições, corresponde à
totalidade das condições.
É
útil, neste ponto, lembrar a diferença da concepção do silogismo em relação ao
texto de 1762. A distinção entre intensional e extensional não é (como já
demonstrei) uma indicação meramente técnica, o segundo caso não é um
procedimento de simples análise, senão que se refere a uma composição da
extensão mediante uma regra. E é essa “composição da extensão” a que está em
jogo na Idéia.
Assim
sendo, o conceito transcendental da razão (idéia) é definido como o conceito da totalidade das condições
relativamente a um condicionado dado (Erscheinung).
Como, porém, só o incondicionado possibilita a totalidade das condições e,
reciprocamente, a totalidade das condições é sempre em si mesma incondicionada,
um conceito puro da razão (idéia) pode ser definido como o conceito do incondicionado,
na medida em que contém um fundamento da síntese do condicionado (CRP A 322/ B 379). Trata-se de uma
“composição da extensão” como fundamento da síntese através de uma “regra” como
premissa do silogismo.
Uma
vez apresentado o procedimento geral do raciocínio da razão podemos abordar as
suas distintas figuras. Cada raciocínio, ou seja, cada espécie de relação tenta
procurar um conceito puro da razão diferente:
1)
um incondicionado da síntese categórica em um sujeito;
2)
um incondicionado da síntese hipotética dos membros de uma série;
3)
um incondicionado da síntese disjuntiva das partes em um sistema;
(síntese
predicativa, conjuntiva e disjuntiva respectivamente).
Assim
sendo, para encontrar tal conceito, cada raciocínio progride para o
incondicionado por meio de pro-silogismos. Quer dizer:
1)
para um sujeito que já não é predicado;
2)
para uma pressuposição que já nada pressupõe; e,
3)
para um agregado de elementos ao qual já nada mais é exigido.
Do
mesmo modo que no caso das categorias (para o entendimento), é preciso
compreender isto como uma “operação” da razão, uma operação lógico-discursiva.
Cada operação não é, meramente, um tecnicismo lógico, é uma operação de
composição de uma série de elementos.
Cada relação é uma “relação de composição” ininterrupta até o absoluto,
mas só “idealmente”, só no âmbito lógico do discurso. A este respeito, Kant nos diz: “...a razão, no seu uso lógico, procura a condição geral do seu
juízo (da conclusão) e, deste modo, o
raciocínio não é também mais que um juízo obtido, subsumindo a sua condição em
uma regra geral (a premissa maior). Ora, como esta regra, por sua vez, está
sujeita à mesma tentativa da razão e assim (mediante um pro-silogismo) se tem de
procurar a condição da condição, até onde for possível, bem se vê que o próprio
princípio da razão em geral (no seu uso lógico) é encontrar para o conhecimento
do condicionado, o incondicionado pelo qual se lhe completa a unidade. Esta máxima lógica só pode converter-se em princípio da razão pura, se admitirmos
que, dado o condicionado, é também dada (isto é, contida no objeto e na sua
ligação) toda a série das condições subordinadas, série que é, portanto,
incondicionada” (CRP A 307/B 364).
A
regra de funcionamento lógico passa a
ser princípio transcendental, e
assim, a gerar os problemas necessários da razão, enquanto este seja tomado subjetivamente. Quer dizer, por outras
palavras, que deve ser compreendido como um requerimento de sistematicidade (uma petição: a de
seguir avançando), mas, fora disto, não é possível fazer qualquer uso empírico,
objetivo, desse princípio que seja considerado legítimo. Nesse caso estaríamos
atuando de modo “transcendente”. O proceder da razão por raciocínios não
depende da experiência, apenas do seu próprio funcionamento, no entanto, também
não é constitutiva daquela, apenas tem uma função regulativa.
De
acordo com o procedimento da razão,
qualquer série cujo expoente é dado, pode se prolongar indefinidamente. Isto é,
o mesmo ato da razão conduz à ratiocinatio
polysyllogistica, que é uma série de raciocínios, que pode ser prosseguida
indefinidamente, quer pelo lado das condições (per prosyllogismus), quer pelo lado do condicionado (per episyllogismus) (CRP
A 311/ B 387). Pelo primeiro ato é gerada a síntese
regressiva, pelo segundo a síntese
progressiva. A primeira diz respeito às condições, a segunda, respeito ao
condicionado. Esta última síntese, gera problemas “arbitrários”[38].
Ou seja, problemas sobre as conseqüências do condicionado, e é potencialmente
aberta; enquanto a primeira, gera problemas “necessários” da razão pura sobre a
condição do dado. São problemas
necessários enquanto que carecemos de princípios para a compreensão
integral do que é dado no fenômeno, e não de conseqüências que podem ser
prolongadas indefinidamente (CRP A
411/ B 438). Com efeito, no caso da progressão teríamos, virtualmente, a
possibilidade de incorporar sempre mais um elemento à série, não obstante, no
caso da regressão deveríamos poder estabelecer um princípio, ou primeiro termo.
Estes
conceitos puros da razão (idéias, ou primeiros termos das sínteses
regressivas), aos quais chegamos pelo pensamento e só são concebidos por ele,
são necessários, na medida em que nos prescrevem a tarefa de fazer progredir,
tanto quanto é possível, a unidade do entendimento até o incondicionado (CRP A 323/ B 380). De fato, a
diversidade das regras e a unidade dos princípios é uma exigência da razão para
levar o entendimento ao completo acordo com sigo mesmo (CRP A 305/ B 362).
Neste
sentido, a razão relaciona-se apenas com o uso do entendimento, na medida em
que lhe prescreve a orientação (die Richtung) para uma certa unidade de
todos os seus atos com respeito a cada objeto ( CRP A 326/ B 383) a partir de operações lógico-discursivas. Um
princípio de unidade tal, não prescreve aos objetos nenhuma lei constitutiva e
não contém o fundamento da possibilidade de os conhecer e de os determinar como
tais (empiricamente), é simplesmente, uma lei subjetiva, de caráter heurístico,
isto é, não-algorítmico, que permite a sistematização do nosso conhecimento. A
razão não contém o fundamento constitutivo da experiência dita possível (CRP A 306/ B 362), senão que funciona
discursivamente, contornando, através de uma sintaxe e uma semântica próprias,
sua esfera de influências. É apenas e nada menos que no interior deste quadro
onde a razão (esse lado discursivo do nosso aparelho cognitivo) opera e formula
problemas. É assim então, como as idéias servem ao entendimento só de cânone,
que lhes permite estender o seu uso ao máximo e torná-lo homogêneo; por meio delas o entendimento não conhece, mas
ganha sistematicidade (CRP A 329/ B
386).
Como vemos, a teoria dos problemas
necessários da razão está baseada na interpretação extensional do silogismo.
Lembremos mais uma vez o texto pré-crítico de 1762 tratado na primeira parte
deste trabalho. Ali Kant compreende a dificuldade de relacionar o que é
possível de se dizer em um raciocínio logicamente correto com o que realmente
acontece na experiência. Na tentativa de cuidar adequadamente do problema, ele
diferencia entre silogismos puros e mistos, acreditando que mais uma regra
sintática acabaria com as conseqüências indevidas dos raciocínios na ampliação
do conhecimento. Mas, como observamos, não era por esse lado que ele
conseguiria desenvolver a fundo o problema. O que deveria mudar era justamente
a própria interpretação do silogismo e passar da “abstração” à “subsunção”. Se
Kant continuasse a ver o silogismo na sua interpretação intensional (tal como
no texto de 1762) jamais haveria conseguido formular sistematicamente os
problemas da razão e teria ficado no domínio da mera ilusão. Não teria conseguido diferenciar os operadores do discurso
místico (à la Swedenborg), como o faz
nos Sonhos de um Visionário.., e do
discurso metafísico (à la Leibniz).
Teria ficado no nível do questionamento, e então sim, quiçá, poderíamos afirmar
que a elaboração kantiana seria mais uma figura da repetição metafísica ou
apenas um discurso contra a metafísica.
Kant
assume de fato a metafísica como uma operação que produz uma região de
problemas que independem da particularidade da obra de um escritor. A
metafísica, enquanto região de problemas necessários da razão, vai além de uma mera
disciplina universitária e dos manuais de Wolff e Baumgarten. Surge pelo
próprio funcionamento dos nossos dispositivos de conhecimento, de nossas
operações discursivas e da nossa linguagem. Kant mostra como na modernidade
esse tipo de problemas se apresenta naturalmente na medida em que tentemos nos
colocar problemas de ordem cognitiva. Por isso, a metafísica enquanto problema
ela mesma, não pode ser resolvida nem com a elaboração de mais um tratado,
elaborando uma questão específica, nem com a rejeição direta. Acreditar que se
acaba com a metafísica por que simplesmente não se fala mais dela é tão
questionável como acreditar na resolução dogmática de seus problemas. Ambas as
alternativas fundamentam-se dicotomicamente na interpretação da metafísica como
mera disciplina. Esta interpretação desconsidera a necessariedade da sua
emergência caindo assim em uma verdadeira ilusão.
O que está em jogo no texto kantiano é que a questão da metafísica propriamente
dita não é apenas um ato da vontade, mais uma decisão a ser tomada do tipo
“fazer ou não fazer metafísica”, senão que são as próprias operações da razão,
os próprios mecanismos da nossa discursividade, que articulam e desarticulam
essa classe de discursos.
Uma
vez estabelecido o caráter "necessário e natural" dos problemas da
metafísica, segundo o próprio funcionamento do aparelho cognitivo, é possível
agora obter uma avaliação mais precisa da operação que está no fundo do modo
tradicional de tratar estes problemas, e detectar, desta maneira, o erro do
dogmatismo metafísico. Erro, este, também gerado a partir do próprio
funcionamento do aparelho cognitivo. Sendo assim, tornar-se-á indispensável
voltar a considerar o funcionamento da razão com vistas a avaliar o erro
criticamente, e não mais simplesmente rejeitar o dogmatismo como acontece no
ceticismo. Por tal motivo acompanharei a reflexão kantiana sobre o erro da
razão.
Os
sentidos não erram -diz Kant-, não podem errar porque não julgam. Kant define o
erro do juízo em relação ao objeto. Só se erra julgando. Deste modo, temos um
tipo de erro que surge da aparência
transcendental (der transzendentale
Schein), “...na nossa razão
(considerada subjetivamente como faculdade humana de conhecimento) há regras
fundamentais e máximas relativas ao seu uso, que possuem por completo o aspecto
de princípios objetivos, pelo qual sucede que, a necessidade subjetiva de uma certa ligação dos nossos conceitos, em
favor do entendimento, passa por uma necessidade
objetiva da determinação das coisas em si. Ilusão esta, que é
inevitável...” (CRP A 297/ B 353).
Trata-se de uma ilusão natural e
inevitável que toma princípios subjetivos por objetivos, nisso consiste a
“aparência transcendental”. Aquela necessidade de unidade e ordem do
entendimento, efetuado por um procedimento da razão, que permite sistematizar
os fenômenos que o próprio entendimento determinou na experiência, acaba se
tornando determinação dos objetos. A idéia do incondicionado é concebida como se tivesse a mesma realidade
objetiva que o condicionado.
A
realidade transcendental (subjetiva,
não empírica) das idéias da razão, funda-se, como temos explicado, em que, por
um raciocínio necessário, por um silogismo, somos levados a tais idéias. Mas
quando inferimos mais alguma outra coisa que uma mera idéia e lhe outorgamos realidade objetiva, então estamos
operando com raciocínios dialéticos. Assim sendo, do mesmo modo que o anterior,
temos três espécies de raciocínios dialéticos, a saber:
a)
o primeiro assenta-se no conceito
transcendental de sujeito, do qual infiro a unidade absoluta deste sujeito;
b)
o segundo assenta-se no conceito transcendental da totalidade absoluta da série de condições de um fenômeno dado em
geral; e
c)
o terceiro na totalidade das condições
necessárias para pensar objetos em geral.
A
primeira contém a unidade absoluta do sujeito pensante, a segunda contém o
conjunto de todos os fenômenos e a terceira a unidade absoluta da condição de
todos os objetos do pensamento em geral. Deste modo, o sujeito pensante é
objeto da psicologia, o conjunto de
todos os fenômenos é objeto da cosmologia,
e a condição de todas as coisas, o ente de todos os entes, é objeto da teologia (CRP A 334/ B 391). Cada
idéia, tomada objetivamente, fornece o “objeto” (alma, mundo, Deus) da metafísica especial. Isto permite que
os metafísicos misturem as idéias com os conceitos e confondam a unidade
sintética incondicionada com a síntese do condicionado. “A razão, diz Kant,
parte de princípios, cujo uso é inevitável no decorrer da experiência e ao
mesmo tempo, suficientemente garantidos por esta. Ajudada por estes princípios
eleva-se cada vez mais alto (como de resto lho consente a natureza) para
condições mais remotas. Porém, logo se apercebe de que, desta maneira, a sua
tarefa há de ficar sempre inacabada, porque as questões nunca se esgotam; vê-se
obrigada, por conseguinte, a refugiar-se em princípios, que ultrapassam todo o
uso possível da experiência...” Este é o erro semântico fundamental que
possibilita o salto metafísico. Esta
indistinção de objetos (sensíveis e ideais) é a origem da ilusão de podê-los
conhecer com os mesmos princípios. Continuemos ainda mais com a citação: “os
princípios de que se serve (a razão), uma vez que ultrapassam os limites de
toda experiência, já não reconhecem nesta qualquer pedra de toque. O campo de
batalha (Kampfplatz) destas disputas
infindáveis chama-se Metafísica” (CRP
A VII-VIII).
Com
efeito, a metafísica, constitui uma região de problemas da razão, e até a mais
importante. Mas, tal como o dogmatismo a desenvolvia, só conseguia entrar em
contradições e obscuridades e criar um verdadeiro “Kampfplatz” (campo de batalha). Esta tentativa de perfazer a série
de todas as condições até chegar à sua unidade completa leva além da
experiência. Isto, diz Kant “existe
como disposição natural (metaphysica
naturalis), pois a razão humana, impelida por exigências próprias, (...),
prossegue irresistivelmente para esses problemas que não podem ser solucionados
pelo uso empírico da razão nem por princípios extraídos da experiência” (CRP B 21). A indicação é essencial. Os
problemas metafísicos, mesmo sendo originados pelas exigências próprias do
desenvolvimento cognitivo, não são possíveis de serem solucionados
cognitivamente no âmbito da experiência. Surgem do cognitivo, mas não pertencem
ao âmbito do cognitivo. A metafísica é desta maneira, e só desta maneira,
compreendida como disposição natural, quer dizer: metafísica enquanto região de
problemas surgidos do próprio funcionamento da razão, originados a partir do
funcionamento sintático e semântico da nossa discursividade.
Uma
vez alcançada esta definição e no
interior desse esquema de operações cabe, depois, decidir sobre a validade da formulação e resolução de tais
problemas. Ou seja, dada a definição daquilo que se interpreta como uma
operação metafísica, estamos em condições de um posicionamento (dogmático ou
crítico) frente desta questão.
Os
três problemas (sobre a alma, o mundo e Deus) se originam naturalmente, como se
explicou, na procura da extensão do nosso conhecimento empírico sobre as
aparências ou aparecimentos (Erscheinung),
de acordo com as três relações lógicas básicas nas quais podemos tentar essa
ampliação, a saber: a relação sujeto-predicado (raciocínio categórico), a
relação antecedente-consequente (raciocínio hipotético), a relação
parte-agregado (raciocínio disjuntivo) (CRP
B 379). É por isso que a “naturalidade” da disposição metafísica estaria tanto
na base do dogmatismo como na da
crítica. O que está em jogo, e pelo qual se estabelece a diferença entre ambas
as “tendências”, não é rejeitar a disposição, mas sim denunciar os falsos
problemas criados a partir dela. O conceito de “naturalidade” dos problemas
metafísicos não visa “naturalizar” e, portanto “neutralizar” o significado da
metafísica, como se se procurasse uma justificativa diante a qual resignar-se.
Muito pelo contrário, o conceito de “naturalidade” permite assumir o problema
da metafísica como “problema”. Isto é, pesquisando o modo “natural” em que as
operações da nossa discursividade são feitas. Essa operação dita “metafísica”
torna-se “problema” e não adianta nem um gesto da indiferença nem uma
declaração de guerra, a operação continua a estar aí, no texto, no discurso, e
é por isso que o “posicionamento” crítico não é um trabalho sobre livros ou autores,
é um trabalho no texto sobre a desarticulação da operação.
Neste
sentido, coincidindo com Greier (1993)[39]
entre outros comentadores, é possível observar que a Dialética Transcendental é uma crítica às três disciplinas da metafísica especial. Também em Torretti
(1980) podemos ler uma interpretação semelhante. Ele diz que, em Kant, o
entendimento constrói a experiência incorporando seus objetos em uma rede de
relações, assim, cada objeto fica condicionado pelos outros que também são
condicionados. Entretanto, a razão procura encontrar o incondicionado para cada
série de condições, representado em uma idéia que não pode corresponder a
nenhum objeto empírico. No entanto, a ilusão transcendental, consiste em tomar
essas idéias como representações de objetos efetivamente existentes. Essa
ilusão possibilita a tentativa da
metafísica especial de pretender conhecer os objetos supra-sensíveis[40],
produz o “salto” metafísico do
sensível para o supra-sensível. Nesse
“salto” tudo sucede como se do mesmo modo que é apresentado o sensível é também
apresentado o supra-sensível, mas nesta relação de oposição
sensível/supra-sensível o segundo termo, hierarquicamente superior, determina o
primeiro. O faz ser enquanto tal. (Todo criado deve ter uma causa: o seu
criador; então: é porque existe o Criador que existe o criado). É justamente
esta operação a que Kant desorganiza no texto crítico. E não somente ali,
lembremos também, por exemplo, no texto pré-crítico de 1763[41]
o questionamento da prova ontológica. Em ambos os casos se procura uma
desarticulação da operação que ordena o texto. O que está em jogo é o estatuto
do “predicado”, se é que ainda podemos utilizar esse termo para nos referir ao
elemento P da proposição relacionado com S através da cópula.
As operações da eutanásia.
Mas,
para complicar ainda mais as coisas, no segundo raciocínio apresenta-se um novo
fenômeno, trata-se da antitética. Esta “antitética”
é caracterizada por Kant como um “escândalo” da filosofia, como a “eutanásia” da razão (CRP
A 407/ B 434). A razão, aqui, entra em conflito consigo mesma. Neste caso “a
razão não produz propriamente, conceito algum, apenas liberta o conceito do
entendimento das limitações inevitáveis da experiência possível, e tenta
alargá-lo para além dos limites do empírico” (CRP A 409/ B 435). Isto acontece de acordo com o mesmo princípio
que já explicamos, mas, desta vez, aplicado às categorias do entendimento. “A
razão, para um condicionado dado, exige a absoluta totalidade da parte das
condições, fazendo da síntese empírica uma
integridade absoluta, e progredindo essa síntese até ao incondicionado (que
nunca é atingido na experiência, mas apenas na idéia). A razão exige-o em
virtude do seguinte princípio: se é dado
o condicionado, é igualmente dada toda a soma das condições, e, por
conseguinte, também o absolutamente incondicionado, mediante o qual era
possível aquele condicionado” (CRP
A 411/ B 438). As idéias cosmológicas ocupam-se da totalidade da síntese regressiva e procedem in
antecedentia e é por isso que também são problemas necessários da razão (CRP A 411/ B438). Essa regressão, do
condicionado para a condição, esse alargamento para o transcendental, acontece
com aquelas categorias que permitem gerar a série regressiva, a saber:
quantidade, realidade, causalidade e necessidade.
Há,
então, quatro idéias cosmológicas:
1)
a partir da síntese regressiva da quantidade surge a idéia baseada na
integridade absoluta da composição do total dado de todos os fenômenos,
2)
a partir da síntese regressiva da realidade surge a idéia baseada na
integridade absoluta da divisão de um todo dado no fenômeno,
3)
a partir da síntese regressiva da causalidade surge a idéia baseada na
integridade absoluta da gênese de um fenômeno em geral,
4)
a partir da síntese regressiva da necessidade surge a idéia baseada na
integridade absoluta da dependência da existência do mutável no fenômeno.
A
idéia de integridade absoluta reside na razão independentemente da
possibilidade ou impossibilidade de lhe ligar conceitos empíricos adequados (CRP A 417/ B 444) na experiência. Esta
também é uma operação que depende somente do funcionamento da razão, isto é,
depende apenas de nossa discursividade e sem qualquer necessidade de se ligar
com fenômenos da experiência de um modo direto. Muito pelo contrário, é essa a
sua impossibilidade. O procedimento é o seguinte: dados os fenômenos a razão
exige a integridade absoluta das condições da sua possibilidade, na medida em
que estas constituem uma série e, portanto, exige uma síntese absolutamente
completa (CRP A 415-6/ B443). A operação da razão propõe-se estender a série
até a sua completude absoluta achando o incondicionado. O incondicionado
procurado pela razão pode conceber-se de duas maneiras: ou como consistindo na série total, neste caso a regressão é
infinita; ou o incondicionado absoluto é uma parte da série a que os restantes membros estão subordinados. No
primeiro caso a série é virtualmente infinita, no segundo há um primeiro termo,
que:
1)
em relação ao tempo se chama início do mundo, em relação ao espaço, limite do
mundo;
2)
em relação às partes de um todo dado em seus limites, simples;
3)
em relação às causas, espontaneidade absoluta (liberdade);
4)
em relação à existência de coisas mutáveis, necessidade natural absoluta (CRP A 417/ B 445).
Sobre
cada um destes casos, de problemas de cosmologia clássica, a razão entra em
conflito consigo mesma. Um jogo de argumentações contrapostas surge a partir do
próprio funcionamento da razão. Podem se fornecer, deste modo, provas negativas
do início ou não do mundo, da simplicidade ou não da matéria, da questão da
afirmação ou não liberdade, ou mesmo, da existência ou não de Deus. Todas elas
terão apenas o valor da contra-argumentação. Embora nenhuma se possa afirmar em
si mesma.
Muitas
dessas demonstrações foram tratadas, em maior ou menor medida, como casos
particulares, nos trabalhos pré-críticos. O resultado desses ensaios manifestou
o surgimento do problema semântico na formulação de tais questões[42].
Mas, só o tratamento crítico vai retomar essa problemática a partir da sua
própria raiz. Quer dizer, a partir da operação que as torna possíveis e, assim,
dar, de algum modo, uma resposta. Deste modo, temos que as duas primeiras
antinomias, ditas matemáticas, podem ser consideradas, ambas as suas partes,
como falsas, desde que seja impossível lhes reportar algum objeto que constate
efetivamente aquilo que afirmam; por outro lado, as duas seguintes antinomias,
ditas dinâmicas, podem ser consideradas, ambas as partes, como verdadeiras,
desde que sejam reportadas a campos semânticos diferentes, por um lado teórico
e, por outro lado, prático.
Com
efeito, o problema da razão aqui exposto reside em que ao estar além da
experiência não temos um fundamento a partir do qual possamos afirmar com certeza
alguma coisa acerca de tais questões. Diz Kant: “Como, porém, até agora todas
as tentativas para dar resposta a essas interrogações naturais, como seja, por
exemplo, se o mundo tem um começo ou existe desde a eternidade, etc..., sempre
depararam com contradições inevitáveis, não podemos dar-nos por satisfeitos com
a simples disposição natural da razão pura para a metafísica (...); pelo
contrário, tem que ser possível, no que se lhe refere, atingir uma certeza: a
do conhecimento ou ignorância dos objetos, por outras palavras, uma decisão
quanto aos objetos das suas interrogações ou quanto à capacidade ou
incapacidade da razão para formular juízos que se lhes vinculem;
conseqüentemente, para estender com confiança a nossa razão ou para lhe pôr
limites seguros e determinados” (CRP
B 22). Assim sendo, de um lado temos uma disposição natural, uma “naturalidade”
para os problemas necessários da razão, produto da operatividade, do próprio
funcionamento, do aparelho cognitivo; e do outro lado, a ilusão inevitável,
como o resultado de outra operação, que surge quando tentamos responder a tais
problemas. Isto coloca a razão como aparelho “problematizante”, mas também como
limitado na sua capacidade de (problematizar) funcionamento de acordo com
determinados requisitos, do contrário a problematização da razão deixa de ser
tal para tornar-se resposta dogmática.
A
metafísica dogmática esquece (o caráter finito da nossa razão[43])
qualquer restrição, pretendendo alcançar com o conhecimento ainda aquilo que é inatingível na experiência. Com
efeito, as próprias restrições do nosso conhecimento permitem observar que as
“ilusões transcendentais” não são o produto de um simples erro técnico ou de
medição que poderia ser solucionado com um ajuste de observação na experiência.
Isto é, a pergunta pela origem do Universo ou a divisão da matéria não poderia
ser respondida objetivamente apenas com o melhoramento do nosso instrumental de
pesquisa. Neste sentido, a metafísica (como disciplina cognitiva) também não
adiantaria a resposta que deveria ser confirmada ou refutada pelo procedimento
científico. Quer dizer, a metafísica também não é um acervo de hipóteses a
testar.
Kant,
na sua empresa crítica, nos mostra que o modo de abordagem dos problemas
necessários da razão por parte da metafísica tradicional carece da certeza da
ciência. Embora queira imitá-la, só consegue, de fato, confundir seu objeto, o
modo de conhecimento e os seus limites[44].
Pareceria haver sido pelos êxitos alcançados pela razão na matemática que os
metafísicos acharam-se estimulados nessa tentativa de “imitar a ciência” e ir
além da experiência. A confiança desmesurada da razão em si mesma teria dado o
impulso para o “salto metafísico”.
Uma interpretação errada da matemática por parte dos metafísicos somada ao uso irrestrito
da lógica formal poderia ter oferecido a ilusão de rigor na argumentação
dogmática[45]. É assim
como, a metafísica, no seu afã de conhecer “objetivamente” os seus “objetos”,
afirma suas proposições sem nenhuma base real. Tal como explicamos anteriormente,
no tratamento dos textos pré-críticos, esse procedimento foi questionado em
cada caso. Agora, o labor crítico, consiste em compreender o problema na sua
totalidade. E é unicamente deste modo que a ilusão
da razão mostrará o infundado da formulação dogmática.
Na
Dialética Transcendental, especialmente, mas também muitos outros textos, se
coloca em questão o sentido da enunciação através de seu modo de operar. Não se
ataca esta ou aquela resposta, senão que se aponta para a operação que
possibilita essa ou qualquer resposta. É assim como aquele modo de abordagem
dos problemas de acordo com a metafísica tradicional, questionado por Kant,
gera a sua imagem oposta, como em um espelho. Isto é, a confiança dogmática
gera a revolta cética, e assim é como dois estados da razão dão inicio à sua
história. Para desvelar isso é preciso voltar ao ponto de partida[46].
Abstract: In
this paper I reconstruct the interpretation of the syllogism, in the two great
stages of the thought of Kant, in order to show its importance in the
formulation of the necessary problems of the reason in the Critic of the Pure
Reason.
Greier,M.G.
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trad. de M. Pinto dos Santos e A. Fradique Morujão Lisboa: Fund Calouste
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______ Lógica.
Será utilizada a trad. castelhana de A.Garcia Moreno e J.Ruvira BsAs: Ed. Tor,
e a trad. da Série Estudos Alemães da Biblioteca Tempo Universitário.
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único fundamento possível para a demonstração da existência de Deus . AK II
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______ (1983b) Kant – Werke. (Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft).
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(1980) Manuel Kant. Estudio Sobre los
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[1] Este trabalho forma parte de uma
pesquisa mais abrangente sobre a questão da constituição do Sentido em Kant.
Alguns resultados têm sido publicados e outros ainda estão sendo elaborados.
[2]Existe um texto da
minha autoría que trabalha, em alguma medida, certos aspectos desta
questão a partir dos problemas de significação. Ver Perez,D (1998b).
[3] Será usada a trad. de Alberto Reis
Kant, I. (1983) .
[4] Será usada a trad. de M. Pinto dos
Santos e A. Fradique Morujão Kant, I. (1994).
[5] Será utilizada a tradução castelhana
de A.Garcia Moreno e J.Ruvira Lógica
BsAs: Ed. Tor, e a tradução da Série Estudos Alemães da Biblioteca Tempo
Universitário.
*É pertinente anunciar que em alguns momentos do nosso texto
discutiremos e distanciar-nos-emos das traduções citadas em favor de uma melhor
explicitação do problema. O texto em alemão utilizado é o das Kant
Werke; Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, e o da Akademie. Nas citações do texto kantiano
se utilizará a paginação do original.
[6]Op.cit.A3.
[7] Ver op.cit A4
[8] Op.cit.A5.
[9] Op.cit.A8.
[10] Op.cit.A8.
[11] Op.cit.A10.
[12] Op.cit.A14.
[13] Op.cit.A10/11.
[14] Op.cit.A14. O destaque é nosso.
[15] Op.cit. A16.
[16] Op.cit.A17.
[17] Op.cit.A23.
[18] Op.cit.A29.
[19] Existe uma diferença importante em
Kant entre os termos erkennen e einsehen que geralmente são traduzidos por
reconhecer sem qualquer advertência.
[20] Op.cit.A29.
[21] O termo Handlung pode ser traduzido por ação, mas na nossa língua podemos
deixar esta segunda acepção para nos referir a ações práticas.
[22] Op.cit.A29.
[23] Op.cit.A30-1.
[24] Op.cit.A32.
[25] Op.cit.A33.O destaque é meu.
[26] Nussbaum,Ch (1992).
[27] Logik
Jäsche sec. 58
[28] Nussbaum,Ch (1992) p. 280.
[29] Nussbaum,Ch (1992) p. 293.
[30] Nussbaum,Ch (1992) pp 281-2.
[31] Nussbaum,Ch (1992) pp 281-2.
[32] Ver Logik Jäsche sec.43.
[33] Ver Logik Jäsche sec.59.
[34]Logik
Jäsche sec. 60.
[35] O destaque não é paráfrase
[36] O destaque é meu.
[37] A tradução da Logik da Editora Biblioteca, Tempo Universitário 93, da Série
Estudos Alemães, tem, entre outras, essa dificuldade. Citamos os dois textos do
parágrafo 75 destacando a conjugação do verbo ser: “...pode-se perceber que ela não é propriamente uma inferência da razão...”; “dab er eigentlich kein Vernunftschlub sei,
... “.
[38] A diferença entre problemas
arbitrários e necessários é tratada em Loparic,Z. (1982) Cap VII.
[39] Greier,G. (1993) Em Lebrun, G.(1970) o problema é demonstrar em que sentido
se trata de uma crítica à metafísica especial.
[40]Torretti,R. (1980). Ver especialmente
pag. 524.
[41] Kant,I. (1763).
[42] Ver Perez,D. (1997-8).
[43] Kant utiliza o conceito de razão em
dois sentidos, um é amplo, indicando a totalidade do nosso aparelho cognitivo,
outro é estreito, designando a razão propriamente dita. Neste caso utilizo o
termo na sua primeira significação.
[44] Porleg. 265.
[45] Essa interpretação pode se lêr nos Progressos da Metafísica.... Especificamente em AK. XX pag 262.
[46] Os manuscritos de Os Progressos da Metafísica desde Leibniz e Wolff são uma tentativa
de tratar tematicamente aqueles problemas. A leitura desses textos nos permite
colocar o problema da metafísica e da sua história em termos decididamente
filosóficos e não apenas historiográficos.