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A crítica de Hegel aos postulados da razão prática como deslocamentos dissimuladores
Marcos Lutz Müller
Professor Assistente Doutor do Departamento de Filosofia da UNICAMP
Este artigo apresenta a crítica radical de Hegel na Fenomenologia do Espírito à teologia moral dos postulados da razão prática kantiana. Hegel os reconstrói como projeções resultantes da contradição da consciência moral, que, ao termo da experiência que ela perfaz de si mesma mediante a sua objetivação na "visão moral do mundo", é compelida a confessar a sua hipocrisia. Depois de uma caracterização sucinta da antinomia e dos postulados da razão prática, bem como das principais teses da sua reconstrução crítica por Hegel (1), analisa-se a contradição da consciência moral, concebida como puro dever, que é a matriz dos postulados (2), e aborda-se detalhadamente a série de "deslocamentos dissimuladores" (Verstellungen) que articulam os dualismos e as oposições em que essa contradição fundamental se desdobra, e cuja resolução representativa é projetada nos três postulados (3,4,5). Por fim mostra-se que o colapso da "visão moral do mundo" conduz a consciência moral à experiência da sua hipocrisia e à sua superação na autocerteza moral subjetiva, que antecipa a sua auto-supressão e a superação da moralidade (6).
1. Introdução
A recepção crítica da doutrina dos postulados da razão pura prática, no sulco da tentativa kantiana de uma fundamentação prática da Metafísica, foi para filosofia pós-kantiana um dos mais importantes filões embrionários. Essa recepção foi a via de acesso mais freqüente para a discussão dos princípios da fundamentação kantiana da moral e o confronto com a doutrina dos postulados e do sumo bem foi o campo teórico privilegiado para Fichte, Schelling e, principalmente Hegel, desenvolverem algumas teses centrais de suas teorias éticas e aí encontrarem motivos e elementos formadores de suas próprias posições originais. Depois de ter várias vezes estudado essa doutrina kantiana, já desde os anos de seminário em Tübingen, tomando-a inclusive, posteriormente, em Bern e Frankfurt, como ponto de partida para o desenvolvimento de projetos próprios, Hegel, ao mesmo tempo que retoma e radicaliza a fundamentação autárquica da moral numa razão autônoma, vai submeter, na Fenomenologia do Espírito, a teologia moral dos postulados a uma crítica não menos implacável, que aquela que Kant fizera à teologia racional como ramo da metafísica especial e à moral teológica, que ele, também, já transformara numa teologia moral.
Antes que Hegel elaborasse a sua teoria da contradição especulativa mediante uma discussão crítica das antinomias da razão pura e da sua resolução transcendental, a crítica à teoria kantiana dos postulados da razão prática e do sumo bem foi um dos principais condutos que levaram Hegel a questionar a filosofia transcendental em seus princípios teóricos e práticos. Hegel não esconde a virulência que acompanha a radicalidade do seu confronto, aplicando à formulação kantiana da antinomia da razão prática e à sua resolução mediante os postulados, na Dialética Transcendental da Crítica da Razão Prática, o que Kant dissera da prova cosmológica da existência de Deus: se esta era para Kant um "ninho de pretensões dialéticas presunçosas (Anmassungen)", a resolução da antinomia da razão prática mediante a teoria do sumo bem e dos postulados, que vão configurar o que Hegel chamará de "visão moral do mundo", são "todo um ninho de contradições desprovidas de pensamento". Nesta perspectiva, a crítica de Hegel à teologia moral do postulados prolonga a crítica kantiana à metafísica dogmática e à teologia racional, mostrando que aquela é, no interior do sistema crítico, um resto dogmático. A resolução da "visão moral do mundo" nos pressupostos contraditórios da consciência moral, que é obrigada, por fim, a confessar a sua "hipocrisia", vai conduzir à absolutização da pura certeza moral subjetiva (Gewissen) e, ulteriormente, à sua auto-supressão, construída por Hegel, na Fenomenologia do Espírito, como passagem à religião.
Os postulados da razão prática são suposições teóricas, fundadas praticamente, que enunciam as condições necessárias de possibilidade da realização do sumo bem (das höchste Gut) pelo agir moral humano. A sua realização, ou mais precisamente, o seu "fomento" ou "promoção" (Beförderung) é um dever derivado da lei moral, enquanto esta não só determina a vontade pura segundo a forma universalizável da máxima que preside à ação, mas é, simultaneamente, o fundamento (Grund) que determina a vontade de um ser racional finito, que age segundo fins, a querer a realização do sumo bem como o seu "objeto verdadeiro" e o seu "fim necessário mais alto" (KpV A 207), o seu "fim-último" (Endzweck) (KpV A 233). Se o sumo bem visado inclui em si a lei moral como sua condição incondicionada, concebida esta como o "bem supremo" (das oberste Gut), então ele constitui o "bem total e perfeito", o " bem consumado", cuja existência possível mediante a ação moral não só é o "fim-último" do ser racional finito, mas inclusive "o princípio determinante da vontade pura". Todavia, ele não faz parte do âmbito da fundamentação da moral e nem é, por si só, princípio determinante da vontade pura, mas só o é ao incluir a lei moral em si. Ele é "o objeto integral da razão pura prática" e, simultaneamente, o fim total da "faculdade de apetecer de seres racionais finitos", que, na sua dualidade irredutível de vontade pura e vontade sensível, exigem, "mesmo no juízo de uma razão imparcial", que o seu objeto integral inclua a expectação legítima de uma felicidade proporcional à virtude, portanto, a realização do conjunto dos fins empíricos compatíveis com as máximas morais. (KpV A, 197-199) O sumo bem de um ser racional finito, tem de, portanto, integrar em si os dois elementos, a virtude e a felicidade, e no sentido mais amplo, a moralidade e a natureza, que compõem o bem perfeito, pois carecer da felicidade e ser dela digno, e todavia não participar da mesma, é inconciliável com o conceito de um querer perfeito, cujo poder seria equivalente ao seu querer. (KpV A 199) E na medida em que o sumo bem integra em si, também, a plena realização conjunta dos fins humanos de todos os agentes (a felicidade do gênero humano) na proporção da realização dos seus fins morais, a sua síntese constitui o sumo bem de um mundo possível, que deve ser plasmado pelo agir moral.
Como a condição principal para a determinação autônoma da vontade, na Analítica da Crítica da Razão Prática, é a sua determinação absoluta e imediata pela lei moral, entendida como a forma legisladora universal da máxima, com a exclusão de todos os princípios práticos materiais, Kant, na Dialética, vai deduzir transcendentalmente a necessidade de reintegrar, numa síntese apriori, mediante a ação de um ser racional finito, que tem o dever derivado de realizar o sumo bem, as máximas morais e as máximas da felicidade, a liberdade e a natureza, que a Analítica separara por considerá-las "totalmente heterogêneas" (KpV A 202). Visto que as exigências da determinação autônoma da vontade não permitem que disposição de ânimo moral (Gesinnung) e felicidade sejam pensadas analiticamente como "ações totalmente idênticas", - a felicidade como a consciência derivada da posse da virtude, como queria o estóico, nem a virtude como mera consciência da máxima que conduz à virtude, como queria o epicurista, - segue-se que a conexão entre as duas é uma conexão real segundo o princípio de causalidade. (KpV A 200-205) E como nem é possível que a felicidade seja a causa das máximas da virtude, pois estas não são morais, nem a virtude, causa da felicidade, pois a natureza regida pelas leis causais e o curso do mundo não se regulam pelas intenções morais, a razão só pode pensar a possibilidade desta conexão necessária, constitutiva do sumo bem (que a lei moral ordena a vontade humana fomentar), mediante o postulado de um "sumo bem originário" (KpV 226) que garanta esta ligação sintética num mundo inteligível, mesmo se as ações que procuram realizá-lo tenham de se inscrever no mundo sensível. A razão prática, que ordena à vontade pura o fomento do sumo bem como seu objeto necessário e total, "ligado indissoluvelmente" à lei moral, e que, contudo, não pode sozinha nem conhecer nem assegurar a possibilidade da sua realização, defronta-se aqui com a sua antinomia. (KpV, A 199-205)
A sua resolução se dá mediante o postulado de um "sumo bem originário", que, como um "autor inteligível da natureza" (KpV A 226), não só garante a 'perduração' (Fortdauer) do sujeito de um progresso moral ao infinito (postulado da imortalidade da alma), mas nos permite "pensar pelo menos como possível (mas nem por isso conhecer e discernir) uma ligação natural e necessária entre a consciência da moralidade e a expectação de uma felicidade a ela proporcionada como sua conseqüência" (KpV, A 214). A imortalidade da alma, a existência de Deus e a liberdade positiva, esta última entendida como autocracia, no sentido da disposição moral (Gesinnung) constante (virtude) de agir para realizar o sumo bem, serão, então, postuladas pela razão, como condições praticamente necessárias para que seja possível essa transformação do mundo na perspectiva do sumo bem, exigida pela lei moral. Os postulados são, portanto, proposições teóricas, porém teoricamente indemonstráveis, cuja necessidade só pode ser fundada praticamente, exigidas pelo dever de fomentar o sumo bem, imposto pelo "fato único da razão" que é a apoditicidade da lei moral, e que concernem às "condições físicas ou metafísicas" de que a vontade pura de um ser racional finito possa realizar o seu objeto total e alcançar o seu fim-último. (KpV, 196, 244, 258)
Esta resolução kantiana da antinomia da razão prática através dos seus postulados constituirá a matéria prima do que Hegel chama de "visão moral do mundo". A sua crítica e a destruição dos seus pressupostos teológicos consistirá em mostrar que essa 'Weltanschauung' se constrói sobre a separação e a afirmação unilateral dos opostos, entre os quais a consciência moral (moralisches Bewusstsein) oscila, pondo ora um, ora outro, como essencial, a fim de enconbrir o seu contrário. Esta operação fundamental Hegel denomina Verstellung , 'deslocamento dissimulador'. Hegel parte de uma análise da contradição fundamental que perpassa a consciência moral, entendida como vontade determinada pelo puro dever, e que se desdobra nos postulados e na sua pretensa função de resolver a antinomia da razão prática. Em seguida, ele reconstrói, a resolução kantiana da antinomia da razão prática e os postulados da imortalidade e da existência de Deus como figurações dessa consciência moral, que em sua experiência de si será compelida, ao final de um longo percurso por uma série de deslocamentos dissimuladores, a desmentir os seus pressupostos constitutivos, a confessar a sua 'hipocrisia' e a reconhecer a teologia moral como um 'mundo do deslocamento dissimulador' (Phän., 444, § 631). A fenomenologia da 'visão moral do mundo' nada mais é, assim, do que o processo de objetivação e auto-apresentação dessa consciência moral, que faz a experiência da sua contradição desdobrada e projetada nos postulados. Através desse processo em que ela perfaz a experiência completa de si mesma, ela chega então à apreensão conceitual dessa 'visão moral do mundo' como um mundo projetado pelos 'deslocamentos dissimuladores' que articulam os postulados. Inicialmente é somente a reflexão fenomenológica, o nós, que tem consciência dessa gênese transcendental da 'visão moral do mundo' constituída pelos postulados, gênese que se tornará, todavia, explícita e temática para a própria consciência moral à medida que ela percorre o périplo da sua auto-apresentação e da sua experiência. No seu termo ela apreende conceitualmente a oposição entre o que era pensado como em si, o 'santo legislador' posto como transcendente, agora concebido como nulo (nichtig), e o que era experienciado como a mediação imanente da ação efetivamente real (o si-mesmo), afirmando, ao termo, a identidade desses opostos separados na autoconsciência moral. (Phän., 443-444, § 631)
Destaco, a seguir, o que me parecem as quatro teses principais desta reconstrução destrutiva que Hegel empreende da teologia moral kantiana:
2. Análise da contradição da consciência moral e do postulado da harmonia da moralidade e da natureza externa como fim-último (Endzweck) do mundo
a) O ponto de partida da crítica à moral kantiana na arquitetônica da Fenomenologia do Espírito.
O ponto de partida da análise da consciência moral, considerado na sua inserção sistemática na Fenomenologia do Espírito, é a figura do "espírito certo de si mesmo" (VI, C), em que culmina a fenomenologia do espírito considerado em sua existência no mundo, antes que o capítulo sobre a Religião (VII) considere o espírito no seu si-mesmo absoluto. O espírito, que é, primeiro, eticidade imediata (VI,A), e, depois, espírito que se aliena de si (VI,B), ao final do processo de sua exteriorização completa reflui inteiramente em sua interioridade simples, mediante a experiência da negatividade absoluta do terror revolucionário (VI,B,c), porque essa negatividade do terror revolucionário contém para ele a coincidência imediata da "vontade universal", considerada nessa "sua última abstração" do puro terror da morte sem sentido, com a autoconsciência singular. Esta, torna-se, então, o puro saber de que a vontade universal em sua identidade com ela e esse mesmo saber constituem a sua essência. (422, § 594) Na experiência da liberdade absoluta do terror se igualiza, assim, a oposição entre vontade universal e vontade singular, entre "o puro querer e aquele que quer", e o espírito alienado encontra-se aí a si mesmo para além dessa oposição (422, § 595): daí resulta que a substância ética, a sua realidade efetiva no mundo, se iguala à sua autoconsciência, de sorte que a interioridade do puro saber e querer do espírito passa a ser a nova efetividade, "espírito certo de si mesmo". A tese da autonomia da razão prática resultante da revolução copernicana no terreno da moral retoma e radicaliza, para Hegel, na interioridade da autoconsciência moral, a experiência da liberdade absoluta da Revolução Francesa.
Nessa certeza moral de si, na qual refluiu toda substância ética e objetividade mundanal do espírito, o espírito sabe-se absolutamente livre, pois o puro saber e querer da liberdade passa a ser "a substância, o fim e o único conteúdo" (424, § 528) da sua figura como consciência moral. Esta sabe que a substância ética, elevada à vontade universal e apropriada pela autoconsciência, é agora idêntica com ela enquanto singular, tanto de maneira imediata, de modo análogo a como a consciência ética sabe e cumpre espontaneamente o seu dever pela sua inserção na comunidade ética, quanto, ao mesmo tempo e inseparadamente, de maneira absolutamente mediada, pois essa substância foi purificada pela negatividade absoluta da "morte sem sentido", experimentada na "liberdade absoluta" do terror. A consciência moral como figura do "espírito certo de si mesmo" é, no seu ponto de partida, ao mesmo tempo, puro pensar e querer, e pura realidade efetiva sem as diferenças experimentadas no terror. Enquanto esta autoconsciência, é imediatamente idêntica com a realidade efetiva (a substância ética), ela sabe, nesse seu saber e querer puro da liberdade, que o dever é a sua "essência absoluta" (424, § 599) e a sua identidade pessoal mais profunda. Ela está, portanto, na sua determinação absoluta e incondicionada pelo dever, "encerrada em si mesma" na autarquia da sua interioridade moral. Porém, simultaneamente, graças àquela mediação absoluta da realidade efetiva que lhe é igualmente constitutiva, a consciência moral se refere a um ser-outro, a uma natureza externa e interna, pois se o dever é o seu fim essencial, ela tem também outros fins que não se reduzem ao dever. Nessa compreensão da autonomia da razão prática em termos do puro dever e na conseqüente diferença de princípio entre vontade pura e sensível já se delineia para Hegel o que constituirá a contradição da consciência moral.
b) Análise da contradição da consciência moral.
Este ser outro, a natureza, ao qual a consciência moral determinada incondicionadamente pela lei moral contudo se refere, tem para ela uma dupla valência: 1) em face do dever como "único fim e objeto essencial" (424, § 599), que a consciência moral tem de, contudo, realizar no mundo mediante a sua ação, o ser-outro da natureza é, por um lado, "uma realidade efetiva inteiramente desprovida de significação" (ibid.), e como tal, inessencial em relação à essencialidade do dever; mas em face dessa consciência "perfeitamente encerrada em si mesma", cuja vontade é boa tão só pela sua disposição de ânimo (Gesinnung) moral, por outro lado, esse ser-outro é uma existência empírica, inteiramente abandonada e entregue à sua exterioridade própria. Em contraposição a essa interioridade moral do puro querer e da determinação absoluta da vontade pela lei moral, a natureza é uma exterioridade que só se refere a si, plenamente indiferente, dotada de leis próprias e de um curso próprio. "Quanto mais livre se torna a consciência de si, tanto mais livre, também, o objeto negativo de sua consciência." (425, § 599) Hegel enuncia aqui dialeticamente o dualismo kantiano entre liberdade e natureza.
Essa relação de dupla valência entre dever e natureza, constitutiva da consciência moral, é, para Hegel, em sua base, implicitamente contraditória, pois ela é, ao um só tempo, 1) uma relação de plena indiferença recíproca entre dois termos diversos, a independência própria, "em si e por si" da determinação moral da vontade, e a independência própria "em si e por si" da natureza e de suas leis (relação de diversidade); 2) uma relação de oposição não equivalente entre os opostos, em que prevalece "a consciência da essencialidade exclusiva do dever" sobre a "inessencialidade da natureza", que em sua exterioridade dependente deve se subordinar ao dever e ser conformada à lei moral (relação de oposição na dominação). A contradição desta relação da consciência moral com a natureza como seu ser-outro está em que ela é simultaneamente uma relação de diversidade entre termos indiferentes e uma relação de oposição entre desiguais: uma relação de indiferença entre a 'Selbständigkeit' da natureza e a determinação absoluta da vontade pela lei moral, que se traduzirá na diversidade radical (a 'fenda' ou o 'abismo', die Kluft) entre liberdade e natureza, e uma relação de oposição entre o dever que é essencial à consciência moral e a natureza que lhe deve ser subordinada, pois esta "só tem realidade efetiva na medida em que é conforme ao dever" (Phän., 433, § 612), que se traduzirá na necessidade de pressupor uma afinidade entre ambas para que a realização do sumo bem no mundo seja possível.
Fenomenologicamente, essa contradição intrínseca à consciência moral, concebida como puro dever em relação à natureza, é caracterizada mediante a oposição fenomenológica entre a autoconsciência moral, entendida como autarquia da determinação absoluta da vontade pela lei moral em face de uma natureza indiferente, dotada de suas leis próprias, e a consciência moral, entendida como prevalência dessa determinação incondicionada da vontade sobre uma natureza, que deve ser conformada ao dever pelo agir moral e, em última instância, no fomento do sumo bem, tornada adequada à expectação (Erwartung) legítima de uma felicidade proporcional à virtude. Malgrado a indiferença entre dever e natureza, fundada kantianamente na diferença transcendental entre a determinação inteligível da vontade e as conexões causais do mundo fenomenal, a natureza deve contudo, na sua "realidade efetiva inteiramente desprovida de significação" (424, § 599) ser subordinada ao dever. Essa dupla dimensão da relação entre dever e natureza, de certa maneira, corresponde 1) à separação estrita que Kant estabelece, na Analítica, entre, a autosuficiência fundacional da razão prática originariamente autolegisladora (o fato da razão) (KpV, A 55-56), de um lado, e os princípios práticos materiais que determinam a vontade sensível, como se "o esforço por ser virtuoso e a busca racional da felicidade" fossem "duas ações diversas" , por outro, e, 2) à necessidade de integrar, na Dialética, mediante uma síntese apriori, no sumo bem, esses dois componentes radicalmente diferentes, a virtude e a felicidade, considerada esta como retribuição proporcional à virtude (KpV, A 198, 202-203). Isso que Kant separara na Analítica e na Dialética Hegel vai considerar então conjuntamente, mostrando que o dever de realizar o sumo bem e a postulação das suas condições metafísicas estão essencialmente implicados na moralidade, na medida em que ela, como uma figura do espírito ("a visão moral do mundo"), resulta do desenvolvimento dos "pressupostos conflitantes" dessa relação implicitamente contraditória entre dever e natureza, concebidos fenomenologicamente como momentos internos do "espírito certo de si mesmo".
c) Crítica à concepção moralidade como puro dever: a relação entre disposição de ânimo (Gesinnung) e ação moral.
A estratégia inicial de Hegel, que determina toda a sua reconstrução crítica da moral kantiana como "visão moral do mundo", é a de questionar a maneira como Kant concebe a relação entre a determinação da vontade pela lei moral e a ação moral que a realiza efetivamente. Para Hegel, o modo como a Analítica demonstra a sua tese central, de que a razão pura só pode ser por si mesma prática se ela determina a vontade independentemente de toda motivação empírica, implica, primeiro, numa separação entre vontade pura e vontade sensível, entre a determinação absoluta e imediata daquela pela forma universal de lei, o "puro dever", e o cumprimento deste dever pela ação moral, que exige a vontade sensível na medida em que esta tem de realizar efetivamente essa determinação da vontade inserindo-a no curso do mundo; segundo, que esta separação é tributária da estrutura implicitamente contraditória da consciência moral como relação entre dever e natureza, a qual remete, em última instância, ao dualismo kantiano entre razão e sensibilidade e à diferença transcendental entre fenômeno e coisa em si. Esta concepção da moralidade e da razão prática como puro dever faz com que a realização deste pela ação moral não contenha como tal a realização dos fins concretos da ação e a consciência que o agente individual tem da sua autorealização. Disso resulta, aos olhos de Hegel, que Kant não leva suficientemente a sério a relação intrínseca e essencial entre a determinação da vontade pelo dever e a sua realização efetiva através da ação concreta, donde o conflito entre o "puro dever" e o "dever cumprido" mediante a ação (426, § 602). Esta é a crítica básica de Hegel, que presidirá à sua reconstrução crítica da antinomia da razão prática, da sua resolução e dos postulados aí implicados. A contradição básica, que está na base de todas as outras que geram os postulados, é, portanto, a separação entre a consciência moral concebida como puro dever e a realidade efetiva da ação cumpridora do dever, na medida em que esta implica uma relação intrínseca entre a vontade pura e a vontade sensível, e uma afinidade efetiva entre liberdade e natureza.
A análise fenomenológica parte da situação conflitiva de que o dever é essencial para a consciência moral, que tem de realizá-lo efetivamente por uma ação que visa conformar a natureza à lei da liberdade, mas que para tanto tem de se inscrever numa natureza regida por leis naturais indiferentes às disposições de ânimo morais da vontade, e que "não se importa" (unbekümmert ist) em lhe devolver a consciência da unidade entre a sua realidade efetiva e a da natureza, implícita na ação cumpridora do dever. (425, 601) Por isso que, ao comparar-se com a consciência não-moral, que talvez tenha casualmente levado a bom termo a sua ação, a consciência moral encontre aí razão para queixar-se de que, sendo "o seu objeto o puro dever", lhe seja todavia recusada a consciência da realização efetiva do dever e, nele, da sua própria realização individual. (ibid.)
A consciência moral, que sabe que o puro dever constitui a sua identidade racional, sabe igualmente que a ação é indispensável para o seu cumprimento, pois é ela que realiza efetivamente a determinação "absoluta e imediata" (KpV A 55) da vontade pela lei moral. Ainda que seja a disposição de ânimo (Gesinnung) de respeito à lei o que qualifica a moralidade da ação em sua raiz (ela é apenas face subjetiva da determinação objetiva e apriori da vontade pela lei), a consciência moral não pode separar dessa disposição 1) a sua realização efetiva, isto é, a da determinação da vontade mediante a ação e 2) a fruição que o agente singular tem da sua autorealização ao executar a ação moral. Isso porque o puro dever, ainda que não tenha nenhum fim por fundamento, é concebido como o "fim absoluto" da consciência moral, que, por ser fim, implica necessariamente a ação de um agente singular que o efetive e, também, "a convicção individual ciente de si" de que esta determinação da vontade constitui precisamente o dever. (426, § 602) Por conseguinte, não só a convicção ciente de si dessa autoconsciência singular, na sua ação efetivadora do dever, constitui para Hegel "um momento absoluto da moralidade" (ibid.), tão essencial quanto a consciência do puro dever, mas a própria fruição que a consciência moral tem de si, ao intuir a sua autorealização no fim objetivado, está implicada na determinação da vontade, precisamente porque o puro dever como fim exige a sua realização efetiva pela ação, e não pode permanecer mera interioridade em oposição à ação.
"Esse momento no fim tornado objetivo, no dever cumprido, é a consciência singular que se intui como efetivamente realizada, ou seja, é a fruição, que reside por isso no conceito de moralidade, de certo não imediatamente no conceito de moralidade como disposição de ânimo [como determinação da vontade], mas no conceito da sua realização efetiva. Por esse intermédio a fruição reside também na moralidade como disposição de ânimo, pois esta tende não a permanecer disposição de ânimo em oposição ao agir, mas a agir, ou a se realizar efetivamente" (426, § 602)
Esta transformação, de corte aristotélico, do "puro dever" e da Gesinnung kantianos num "fim absoluto" (426, § 602), cuja realização pela ação Hegel concebe como sua "exteriorização" (Entäusserung) na realidade objetiva, tornam para Hegel a determinação absoluta da vontade pela lei moral intrinsecamente uma ação, que é ciente da convicção individual que a rege enquanto cumprimento deste dever, e que tem, também, na transformação da natureza mediante execução do fim concreto (correspondente ao dever determinado), a fruição de si mesma, contida na consciência da sua unidade com a natureza interna e externa. A unidade da liberdade moral e da natureza (interna e externa), que para Kant só é possível sintética e derivadamente mediante o postulado de um 'sumo bem originário', entendido como fundamento ontológico da possibilidade da realização do sumo bem no mundo pelo agir humano, já está contida para Hegel na própria raiz deste agir, que não precisa saltar a 'fenda' ou 'abismo' (Kluft) entre o reino da liberdade e o reino da natureza mediante aquele postulado. Portanto, 1) a ação moral, 2) a convicção individual ciente de si nela implícita e 3) a consciência moral singular que frui a sua autorealização, implicada na execução do fim no mundo objetivo, são momentos inseparáveis da disposição de ânimo moral e diretamente implicados nela, pois o sentido desta não é, como diz Hegel, "permanecer disposição de ânimo em oposição ao agir, mas agir, realizar-se efetivamente". (ibid.)
Assim, agora, o puro dever, em sua unidade inseparável com a ação moral que o executa enquanto ele é fim absoluto e, igualmente, com a natureza interna (implicada na autorealização do agente) e externa (tornada conforme ao dever pela objetivação do fim nela) é determinado ulteriormente como "fim total" ("o fim como o todo"). Este fim total já contém a realidade efetiva da harmonia entre ambos, mas ela não é ainda para a consciência moral, pois para ela é igualmente essencial a experiência da oposição entre o dever e a natureza, entre a virtude e a felicidade, de sorte que ela vai somente pensar essa harmonia como necessariamente devendo ser, sem que ela seja efetiva, isto é, ela vai postulá-la. Esta reformulação do dever como fim total conduz a uma ampliação do conceito de ação moral, que permitirá a Hegel refazer a gênese do objeto dos postulados. A gênese vai mostrar que esse objeto já está implicitamente implicado na ação, na medida em que esta contém a "realização efetiva" (Verwirklichung) do puro dever ("a ação puramente moral"), a da singularidade agente mediante a objetivação do fim, e a da unidade da natureza com este. Daí, também, igualmente, uma ampliação do conceito de felicidade, para Kant um conceito empírico, irredutivelmente oposto ao de lei moral, pois ela é representada como "o estado no mundo de um ser racional, para o qual, na totalidade da sua existência, tudo ocorre segundo o seu desejo e a sua vontade..." (KpV A 224). Para Hegel, em contrapartida, a felicidade não é algo puramente empírico, nem primariamente um estado, mas a fruição da autorealização singular do agente, implícita no cumprimento do dever mediante a ação moral, que objetiva na natureza esse dever concebido como "fim total".
Mediante essa concepção teleológica do puro dever como "fim absoluto" e, considerado no conjunto das implicações da ação moral que o realiza, como "fim total", Hegel reformula criticamente a teoria kantiana da autonomia prática como sendo o cerne da consciência moral, e estabelece a base para a sua crítica genética aos postulados da razão prática enquanto pressupostos teológico-morais da realização dessa consciência. A crítica visa 1) reintegrar no interior da ação moral o que a Analítica e a Dialética haviam separado, a determinação incondicionada da vontade pela lei (o puro dever) e a promoção do objeto total e fim-último da vontade, o sumo bem, 2) subverter o dualismo kantiano entre o puro e empírico, eliminar a heterogeneidade total (KpV A 202) entre o princípios formais e o princípios materiais da ação, pressupostos pela fundamentação da moral, 3) superar a conseqüente cisão da ação em dois componentes e dimensões irredutíveis, e 4) restabelecer uma afinidade efetivamente real entre liberdade e natureza, que Kant só pode pensar mediante os postulados da teologia moral. Com efeito, é essa heterogeneidade total e aquele dualismo que obrigarão Kant a reunir posteriormente, na Dialética, esses elementos radicalmente heterogêneos, mediante a sua síntese apriori no conceito prático de sumo bem. A realização deste no mundo, por sua vez, exige a pressuposição de um fundamento metafísico que restabeleça a afinidade entre os elementos da ação moral, que a Analítica tinha separado. A "visão moral do mundo", caracterizada nos termos da teologia moral dos postulados práticos, será para Hegel o desdobramento desta inconseqüência fundamental de Kant, "que é unir o que um instante atrás tinha sido declarado como autônomo (selbständig); portanto, como não-unível" .
A primeira conclusão dessa análise é que a experiência inicial da desarmonia entre moralidade e natureza e da inserção da ação moral numa natureza regida por leis próprias e indiferente aos fins morais, é tão necessária quanto a experiência da sua harmonia implícita, já contida "no conceito da realização efetiva da disposição de ânimo" enquanto ele implica os três momentos do dever concebido como "fim total": a ação exigida pela Gesinnung, a convicção individual e a felicidade como fruição da autorealização da consciência singular na ação, que já estabelece uma mediação entre liberdade e natureza. (426, § 602) A harmonia entre moralidade e natureza, virtude e felicidade, que para Kant só pode ser pensada como realizada no sumo bem, mas não conhecida, e que exige o postulado da existência de uma causa originária que contenha o fundamento da possibilidade da conexão entre aqueles opostos (sendo, portanto, somente objeto de uma suposição (Annahme) teórica, indiretamente exigida pela lei moral), é explicada, agora, por Hegel, como derivada da harmonia contida na própria experiência da ação moral concebida como realização do fim total. A necessidade dessa harmonia para Hegel "reside no conceito da própria moralidade, cujo verdadeiro conteúdo é a unidade da consciência pura e da consciência singular"(426-427, § 602).
A harmonia entre moralidade e natureza, virtude e felicidade, resulta para Kant da necessidade prática de pensar a síntese apriori prática de ambos no sumo bem, cuja realização no mundo deve ser possível, sob pena de a lei moral "ser fantástica" e "falsa em si" (KpV A 205). Essa necessidade de pensamento, para Kant uma 'carência' (Bedürfnis) da própria razão pura prática, fundada no dever (KpV A 257), é interpretada por Hegel como um "exigir" (Fordern) que exprime somente uma necessidade do ser, uma necessidade, portanto, exterior, e não do conceito enquanto conceito. Esta necessidade do postulado, que só pode ser pensada, significa para Hegel que ela é somente uma necessidade na ordem do ser e que ela ainda não se tornou objeto real-efetivo da experiência da consciência moral. Esta 'exigência' da harmonia transferida pela consciência moral para o sumo bem, corresponde, em Kant, ao caráter apenas 'subjetivo' (no sentido transcendental) da necessidade moral de pressupor a possibilidade prática do sumo bem, pois, enquanto 'carência' da razão, ela não é uma necessidade objetiva como o próprio dever (KpV A 226). Por isso Hegel mui justamente insiste em que a harmonia exigida não é uma mera aspiração da consciência moral individual ou uma simples representação de um fim cuja consecução é incerta. Ela pertence, diz Hegel, ao próprio conceito de moralidade, embora, e este é o ponto decisivo, ela ainda não seja reconhecida pela consciência moral como necessidade do conceito enquanto conceito. Pertence, assim, ao conceito de moralidade que esta unidade e aquela harmonia já sejam para ele, conceito, uma realidade efetiva (427, § 602), embora ainda não para a própria consciência moral: esta não sabe imediatamete que a harmonia já está implicitamente presente na ação moral, e, por isso, vai projetar a harmonia da virtude e da felicidade e a unidade da consciência (vontade) pura e da consciência (vontade) singular fora de si, num além inteligível, mediante um postular, que é somente um exigir (434, § 616). Esta "exigência racional" de uma harmonia entre moralidade e natureza, virtude e felicidade, que resulta para Kant de uma "dedução transcendental do conceito de sumo bem" a partir da lei moral (KpV A 203) e de uma reflexão transcendental sobre as condições de possibilidade da experiência moral plena de um ser finito (a realização assintótica do objeto total da vontade no sumo bem consumado), torna-se para Hegel um elemento constitutivo imanente da própria consciência moral, já contido na ação moral, enquanto esta realiza efetivamente o puro dever e a autoconsciência singular e já contém uma unidade de liberdade e natureza.
Nós, a reflexão fenomenológica, a instância subjetiva do conceito no interior da experiência, sabe, "vê", por um lado, que a própria consciência moral engendra conscientemente esse seu objeto necessário e total, o sumo bem, como unidade do puro dever e da fruição da consciência singular, realizada na ação moral, e, igualmente, que ela está ciente de si como princípio ativo (als das tätige), que o engendra; mas, por outro, ela vê, também, que a consciência moral não se apropriou ainda dessa unidade imanente na ação moral, e que ela a põe como um objeto além, fora de si, que é, porém, (para a reflexão fenomenológica) "sendo-em-si-e-por-si enquanto posto por ela", "em função dela e por ela". (434, § 616)
3. Deslocamentos dissimuladores do 'primeiro' postulado.
Nesta altura Hegel introduz o conceito de 'distorção' ou melhor, 'deslocamento dissimulador' (Verstellung), uma espécie de operador de má-fé da consciência moral, mediante o qual ela desloca e encobre recorrentemente a sua contradição fundamental, que se desdobra em várias oposições, entre cujos extremos ela oscila, e cuja resolução ela projeta no mundo inteligível. No deslocamento dissimulador a consciência moral passa imediatamente de um momento, que ela recém colocou (aufgestellt hat) e fixou como essencial, ao momento oposto, que, por sua vez, recém colocado como essencial, é novamente deslocado e dissimulado (verstellt), precisamente em vista do oposto. Assim, ela confessa que não leva a sério nenhum deles. (434-435, § 617) A consciência, apesar de sucumbir a essa oscilação entre os opostos, está, contudo, consciente desse deslocamento dissimulador da sua contradição fundamental, pois ela não só fixa um momento da oposição para passar em seguida ao oposto, mas ela opera conscientemente esta passagem ao oposto em relação precisamente a ele, para marcar que ela o afirma no mesmo instante em que o nega no seu oposto, e em relação àquela afirmação anterior. Com isso a consciência moral mostra que ela não leva a sério nenhum dos momentos opostos entre os quais oscila. A visão moral do mundo vai resultar do desenvolvimento da consciência através desses deslocamentos dissimuladores, que desencadeiam um "movimento estonteante e impostor" (schwindelnden Bewegung) que arrasta a consciência moral, e cuja experiência será o principal objeto da análise fenomenológica. (435, § 617)
Independentemente da pressuposição inicial (425, § 601) de que haja uma consciência moral efetiva, a postulação de uma harmonia entre moralidade e natureza, que só é em si, significa que ela ainda não está presente para a consciência moral efetiva. O que existe presentemente para a consciência, em face desta harmonia postulada, é a desarmonia da sua (suposta) moralidade com a natureza, que é colocada como estando em contradição com a consciência moral. Como, porém, é só no agir moral que se realiza efetivamente a moralidade da consciência, pois este agir, concebido como "realização efetiva do fim moral interior", é ao mesmo tempo "a produção de uma realidade efetiva determinada pelo fim", portanto, também, a produção "da harmonia do fim moral e da realidade efetiva", este agir moral desloca e dissimula imediatamente (1) o que o postulado colocara, inicialmente, apenas como harmonia transcendente (435, § 618) Com isso, a "consumação da ação" moral, que é, também a realização efetiva da consciência singular, já é para a consciência moral tanto a presença dessa unidade da realidade efetiva e do fim quanto a fruição dessa unidade. A ação moral consumada, portanto, já é a realização efetiva da harmonia para a consciência.
A ação moral, que, inicialmente, a partir da sua desarmonia, colocava a harmonia como só devendo existir num além inteligível, objeto de postulação, desmente o postulado e diz, por si mesma, que não o leva a sério, "porque o sentido do agir consiste [agora], antes, em fazer aceder à presença o que não deveria estar na presença" [a saber, a harmonia]. (ibid.). Convém lembrar, aqui, que Hegel denomina de primeiro postulado (o da harmonia da moralidade e da natureza externa) o que corresponde propriamente àquilo que, para Kant, é a resolução da antinomia da razão prática, isto é, a conexão necessária e sintética apriori (cujo fundamento último é o postulado do "sumo bem originário"), mediante a ação moral que fomenta o sumo bem, entre o "incondicionado" da lei moral (o bem supremo) e a expectação legítima da felicidade, que é a "consequência moralmente condicionada" daquela (KpV A, 205, 214). Mas agora a situação se inverte por um novo deslocamento dissimulador (2), pois se agora só se leva a sério o próprio agir, é em vista da harmonia já efetivamente contida na consumação da ação moral que ela é deslocada para um além, como inefetiva, precisamente para que ela possa vir a ser efetivada pela ação. É preciso postulá-la como devendo ser fomentada, a fim de dissimular e deslocar a sua presença efetiva na ação moral consumada, pois se a harmonia já não fosse efetiva em si, não poderia vir a sê-lo pela ação. Se inicialmente era a desarmonia entre a consciência moral e a natureza o que exigia o postulado de uma harmonia em si, é agora a sua presença imanente na própria ação moral plenamente efetivada que vai deslocar o sumo bem postulado para a inefetividade recorrente do dever-ser. O postulado, que era antes a condição da harmonia, é transmudado em algo condicionado pela harmonia presente na própria ação moral, e a sua função passa a ser, agora, meramente, a de recordar no seu dever-ser impotente a presença efetiva dessa harmonia para a consciência moral.
Mas a essa seriedade da ação moral consumada, que contém nela a harmonia, seguirá novo deslocamento (3), o da própria harmonia presente na ação moral, uma vez que esta é sempre e somente ação de uma consciência singular. Perante o sumo bem, como “fim universal que tudo abrange (der alles umfassender Zweck) e que tem o “mundo inteiro” por lugar da sua realização, a ação moral é somente singular e a sua obra meramente contingente (pois ela é uma harmonia, não a harmonia anteriormente referida, p. 435, § 618), de sorte que o “fim-último da razão” não só ultrapassa o conteúdo desta ação, mas todo agir moral efetivo. (436, § 619) Em contraste com um fim tão elevado, que “se coloca além e acima de todo agir efetivo”, a consciência moral se apercebe, então, da ‘inanidade’ (Nichtigkeit) do seu agir, e não o leva mais a sério na sua capacidade de ‘fomentar’ (fördern) e ‘produzir’ (hervorbringen) ‘o melhor universal’ (das allgemeine Beste), deslocando e dissimulando a afirmação (a colocação) imediatamente anterior, que dizia ser o agir moral que efetivava a harmonia postulada. Conclusão desse deslocamento: “Porque se deve executar o melhor universal, nada de bom se faz”. (436, § 619)
Mas, uma vez colocada essa inanidade do agir efetivo singular em sua contraposição à realidade exclusiva do sumo bem como fim-último do mundo, ela será novamente deslocada e dissimulada pela ação moral (4): na medida em que esta tem o dever por seu ‘fim total único’, ‘absoluto’, ao cumpri-lo ela visa, malgrado o seu conteúdo limitado, a realização plena, a consumação (Vollbringung) desse dever, que é fim total, na realidade efetiva. Esta consumação enquanto tal tem por fim, agora, a própria realidade efetiva, pois trata-se de transformar a natureza e o curso do mundo na expressão consumada da lei da liberdade. Essa ‘consonância’ (Zusammenstimmung (KpV A262) plena entre leis da natureza e leis morais numa ‘natureza suprasensível’, isto é, inteiramente ‘submetida à autonomia da razão pura prática’, que para Kant só é possível num progresso ao infinito, mediante a hipótese de uma razão pura dotada de um poder físico adequado à sua vontade e de uma “natura archetypa” (KpV A 74-75), resulta para Hegel de uma transformação da realidade efetiva da natureza pela lei da liberdade. Esta transformação exprime uma mediação ontológica, para além do dualismo kantiano, entre natureza suprasensível e natureza sensível. Mas, visto que o dever só tem sentido no conflito com uma natureza dotada de leis próprias e irredutíveis, essa consumação da moralidade plenamente realizada na realidade efetiva da natureza (uma natureza plenamente reformada pela liberdade) terminaria por dispensar o agir pelo dever, engendrando um novo deslocamento.
Com efeito, se o sumo bem no sentido kantiano do “bem consumado” -“aquele todo que não constitui parte alguma de um todo ainda maior da mesma espécie” (“perfectissimum”) porque ele inclui a lei moral como condição incondicionada e bem supremo (originarium) (KpV A 197-198), - for plenamente efetivado pela ação moral, quer dizer, se ele se consuma na realidade efetiva, tornando a natureza expressão da própria lei da liberdade, a consciência moral deixar de levar a sério a moralidade enquanto dever, pois a ação moral necessita confrontar-se com uma natureza que lhe é irredutível. “Se, porém, a natureza é conforme à lei moral, essa seria certamente ferida pelo agir, pelo suprimir do ente.” (437, § 620) O agir pelo dever e a consciência moral ativa, que nega a natureza externa dada, perdem, aqui, o sentido e se tornam supérfluos, pois eles só tem sentido na sua oposição à natureza e ao curso do mundo, isto é, enquanto têm de suprimir o negativo (a natureza dada) que a lei moral pressupõe. Assim, o agir moral não pode levar a sério o que ele implica, de sorte que a própria consumação do dever na realidade efetiva será novamente deslocada e dissimulada.
Com isso, o postulado que exige a harmonia entre a lei da liberdade e a lei da natureza como devendo ser ainda realizada na ação moral se condensa, ao final desta primeira etapa, numa proposição paradoxal: “porque o agir moral é o fim absoluto, o fim absoluto é que não se dê de modo algum o agir moral”. (437, § 620 trad. P. Meneses) Para a reflexão fenomenológica fica claro que a consciência moral não levava a sério nenhum dos opostos desses seus deslocamentos, através dos quais ela se “propelia” (fortwältzte), e a própria consciência moral faz a experiência de que ela não leva a sério o agir moral, “senão que o mais desejável, o absoluto, está em que o sumo bem tivesse sido levado a termo (ausgeführt), e o agir moral fosse supérfluo.” (437, § 621)
Ao termo desta experiência a consciência se convence de que ela não pode levar a sério nenhum dos três momentos implicados no cumprimento do dever, nem o postulado da harmonia, nem o próprio agir moral, nem a consumação da moralidade na realidade efetiva, pois ela ainda não tomou consciência de que é o próprio agir moral que integra e medeia esses momentos.
4. O postulado da harmonia da moralidade e da natureza interna como fim-último da autoconsciência enquanto tal.
Este resultado paradoxal, o de que a consumação do sumo bem num mundo plenamente ético impede a consciência moral de levar a sério a exigência do dever e torna desejável que o próprio agir moral seja supérfluo, será necessariamente objeto de um novo deslocamento, que impele adiante (“propele”) a consciência moral na experiência do seu movimento contraditório. (437, § 622) Como, de um lado, é condição da moralidade que o sumo bem como fim-último do mundo não tenha sido levado a termo, pois para que a consciência moral seja ativa e para si, é preciso que ela se defronte com uma natureza já dada, contraposta a ela e em dissonância com a sua autonomia; mas como, de outro, a experiência final do primeiro postulado (embora objeto de novo deslocamento) continha a exigência da realização cabal (“consumação”) da moralidade na natureza, a consciência moral torna novamente a se confrontar com uma natureza, só que ela é, agora, a sua natureza interna, a vontade sensível com seus desejos e impulsos. A interiorização da oposição marca, para Hegel, a passagem ao segundo postulado.
Um novo deslocamento, que preside a essa passagem, se impõe agora à consciência, o primeiro de uma nova série de quatro: o deslocamento dessa própria supressão e superação (Aufhebung) do agir moral. Duas razões o motivam: 1) para que haja efetivamente consciência moral, é preciso não só uma síntese em si entre moralidade e a natureza, mas, também, uma síntese para si, de modo que a harmonia postulada possa existir como “fim-último da autoconsciência enquanto tal” (429, § 604); 2) consciência moral enquanto singular e contingente tem a sua própria natureza interna, a faculdade de apetecer inferior com seus impulsos e inclinações, dotados de fins próprios opostos ao puro querer (427, § 603).
O novo ponto de partida é a simultânea oposição e unidade entre razão e sensibilidade, entre puro dever e vontade sensível. O querer e o pensar puros da razão prática e os impulsos da sensibilidade constituem uma só consciência: mas para ela, enquanto consciência singular agente, o principal é a oposição entre a vontade pura e a vontade sensível, ao passo que para ela e nela, enquanto razão, enquanto puro pensar e querer do dever, o essencial é a unidade dos opostos e a dissolução da oposição por uma mediação que contenha esta oposição ciente de si, em que consiste a moralidade efetiva. (427, § 603)
Essa harmonia imediata, que seria ingênuo a consciência moral levar a sério, deve, portanto, ser novamente postulada e deslocada para o sumo bem além desta consciência, cuja realização é, para Kant, ‘o objeto necessário’ da consciência moral. Não se trata, porém, agora, de uma harmonia somente sendo em-si entre a moralidade e a natureza externa, a ser instaurada fora desta como fim-último do mundo, mas de uma harmonia que a própria consciência moral agente deve realizar para si, como sendo a sua própria, e que constitui “o fim-último da autoconsciência como tal”.
Mas se só existe moralidade na forma de uma consciência ativa que nega a sua natureza interna e enquanto consciência do puro dever como fim absoluto em oposição a todos os outros fins (ibid.), então a perfeição só pode ser postulada como “tarefa absoluta” (428, § 603). Esta aproximação indefinida à santidade, representada analogamente à aproximação sem fim da linha curva à reta, exigida por uma consciência moral ativa, que “só num progresso indo até o infinito pode chegar à plena conformidade com a lei moral” (KpV A 220), é o que torna necessário introduzir o postulado da imortalidade da alma, pois sem ele o dever (ordenado pela lei moral) de promover o sumo bem como objeto da vontade pura seria impossível, a própria lei moral seria ‘fantástica’ (KpV A 205) e a sua santidade ‘desonrada’ (abgewürdigt, KpV A 221). Esta ficaria, como diz Kant, entregue à medida da nossa imperfeição e “adequada à nossa comodidade”, ou então daria lugar a expectativas teosóficas de uma aquisição da santidade na finitude, “exorbitando a sua missão” (KpV A 221). Para Hegel, todavia, esta conformidade plena à lei moral na forma do “progresso ao infinito” (Progressus ins Unendliche, id. A 222) do agente moral, esta “aproximação” (Annäherung) infinita pensada como consumação, é uma representação contraditória, desprovida de conceito, pois ela significa, simultaneamente, uma tarefa que permanece absolutamente tarefa, portanto, em princípio, irrealizável, uma aproximação ‘ao infinito’, mas cujo conteúdo deve ser simultaneamente pensado, no postulado, como necessariamente sendo, como conteúdo que não permanece mera tarefa, mas visa a sua efetivação. (428, § 603)
Reinstaura-se, portanto, a oposição entre, de um lado, o conflito da vontade pura com a vontade sensível e a realidade efetiva, na Analítica, e, de outro, a unidade necessária apriori desses opostos no sumo bem a ser indefinidamente fomentado, na Dialética, a qual não mostra como eles estão unidos na determinação da vontade e no agir moral cindido entre vontade pura e sensível; reinstaura-se, também, a oposição entre a heterogeneidade total da moralidade e da felicidade, na medida em que aquela é condição negativa da autonomia moral, por um lado, e a sua integração sintética mediante o agir moral em vista da realização do sumo bem no mundo, por outro. Hegel vai interpretar essa progressão indefinida na realização do sumo bem como o deslocamento indefinido da perfeição moral projetada no infinito, uma protelação que é expressamente querida e dissimulada pela consciência moral, a fim de que ela possa continuar a ser efetiva enquanto agir moral. O postulado da imortalidade da alma torna-se função desse deslocamento recorrente pelo qual a consciência moral projeta num além nebuloso (aproximação indefinida) a perfeição que ela ‘deve’ querer e põe como inalcançável. Portanto, “a própria consciência [moral] declara que não leva a sério a perfeição (Vollendung) moral, ao deslocá-la e dissimulá-la “em direção à infinitude afora” (in die Unendlichkeit hinaus), isto é, ao afirmá-la como nunca per-feita (niemals vollendet).” (439, § 622)
Mas a garantia última do sentido de um progresso moral infinito, que assegure a um ser racional finito a expectação legítima de um aperfeiçoamento ulterior sempre possível, baseado no progresso anterior do pior ao melhor, e, também, “a esperança confortante, embora não a certeza” de uma participação na santidade, graças à “consciência de uma disposição de ânimo [moral] comprovada”, exige mais, todavia, do que o postulado da imortalidade da alma. Ela exige além da hipótese da imortalidade da alma, a hipótese de um entendimento infinito, legitimada pelo postulado do ‘sumo bem originário’ como autor da natureza, “para o qual a condição do tempo nada é, e [que] vê nesta série, para nós sem fim, a conformidade integral (das Ganze der Angemessenheit) com a lei moral” (KpV A 221). O que converte este aperfeiçoamento moral meramente assintótico da criatura numa esperança fundada de alcançar na “infinitude da sua perduração”, “mesmo para lá desta vida” (KpV A 222), esta ‘conformidade plena’ da sua disposição de ânimo à vontade divina, é a sinopse apriori da série progressiva, para nós indefinida, num inteligência infinita, para a qual ‘a condição do tempo nada é’(KpV A 226) e perante a qual “esta meta afastada até ao infinito afora” (ins Unendliche hinausgerücktes Ziel) “vale como posse” (id., A 222). Mas o que Kant pode pensar como conformidade integral, apesar de assintótica, mediante a hipótese de uma inteligência infinita, ratificada praticamente pela crença racional na existência de um arquétipo originário da santidade, e por analogia com a análise infinitesimal, - a distância que impede que a tangente toque a curva no infinito torna-se sempre menor, podendo ser, ao fim, negligenciada, - permanece para Hegel a representação praticamente contraditória de uma ‘tarefa absoluta’.
É a irredutibilidade do duplo ponto de vista, do finito e do infinito, junto com a distinção transcendental entre fenômeno e coisa em si, o alvo último da crítica de Hegel ao tipo de resolução das antinomias da razão pura (teóricas e prática). Hegel insere a distinção e a irredutibilidade desses dois pontos de vista no interior da própria autoconsciência moral, da qual elas passam a ser momentos, de modo que o postulado do ‘sumo bem originário’, como ‘telos’ prático do aperfeiçoamento infinito, perde a sua validade objetiva e se reduz a uma projeção recorrentemente deslocada pela consciência moral, que a ela recorre para manter a ilusão necessária do seu progresso moral. Ao termo de sua experiência através desta série de deslocamentos a ‘tarefa absoluta’ do aperfeiçoamento moral ao infinito mostrar-se-á como uma contradição prática para a própria consciência moral: ele é uma tarefa que deve permanecer tarefa (‘progresso indefinido’) e, contudo, ser pensada na sua consumação (‘o todo da conformidade’) para não perder o seu sentido. Por isso, a implicação do postulado da existência de Deus pelo postulado da imortalidade da alma e a passagem kantiana do “sumo bem derivado”, enquanto objeto real necessário da vontade, ao postulado da existência do “sumo bem originário”, permanecem para Hegel encerradas no pensamento representativo da consciência moral que não apreendeu o seu conceito.
A crítica de Hegel repousa, além disso, sobre a transformação semântica a que ele submete o conceito kantiano de postulado, assinalada por M. Guéroult. Os postulados kantianos são proposições teóricas que afirmam a existência das “condições físicas e metafísicas ... ínsitas na natureza das coisas” (KpV A 258), que tornam praticamente possível a realização do sumo bem no mundo, enquanto objeto total da vontade e fim-último da razão prática. Eles são explicitados por uma reflexão transcendental como condições de possibilidade não da própria experiência moral como fato último da razão, mas da sua consistência, isto é, da compatibilidade, assegurada praticamente em seu fundamento ontológico último pela existência de um autor da natureza, entre a autonomia moral e a realização da felicidade do gênero humano, a que ele faz jus pelo seu agir virtuoso. Em Hegel, entretanto, a dedução transcendental do conceito de sumo bem e a reflexão transcendental sobre os seus pressupostos práticos tornam-se momentos estruturais da própria experiência da consciência moral, de modo que a validade objetiva dos objetos postulados e a existência dos seus objetos como conteúdo de uma crença racional fundada praticamente são para Hegel apenas uma representação, uma ‘visão moral do mundo’, derivada da contradição interna da consciência moral e construída pelos seus deslocamentos que desdobram essa contradição. Há, portanto, um nivelamento dos dois registros, como observou Stanguennec, que para Kant permanecem irredutíveis: o registro da certeza apodítica da lei moral e o da reflexão filosófica sobre as condições de possibilidade do objeto que a lei ordena a vontade fomentar, ambos, agora, em Hegel, transformados em conteúdos da experiência da consciência moral enquanto figura transitória do espírito. Com isso se abolem, para Hegel, as fronteiras irredutíveis entre Analítica e Dialética da Crítica da Razão Prática, assim como o “abismo intransponível” entre liberdade e natureza, e a diferença ontológica última entre puro dever e realidade efetiva. Esta última diferença já está para Hegel ultrapassada na identidade em si desses opostos, implicada pela consumação do dever como “fim total” na realidade efetiva da natureza transformada pela ação moral, ação essa que é, ao mesmo tempo, “ação moral pura” (realização efetiva da determinação imediata da vontade pela forma da lei) e realização efetiva vontade singular, que se objetiva no fim atualizado e tem a fruição de si na consciência dessa sua autorealização (426, § 602). As fronteiras irredutíveis entre Analítica e Dialética são ultrapassadas na experiência que a consciência faz da sua contradição e dos sucessivos deslocamentos pelos quais ela se objetiva e se projeta na visão moral do mundo, para apreender, ao termo da experiência dessa objetivação, o seu conceito.
Mas desse deslocamento recorrente da santidade como meta do progresso moral, da reposição contínua da vontade sensível avessa ao dever e do renascimento de uma natureza sempre rebelde ante a sua sujeição à liberdade, resulta, ao termo da experiência que a consciência faz desse progresso ao infinito, a sua imperfeição essencial. “Não há autoconsciência efetiva moralmente perfeita.” (433, § 613) O resultado é a negação da pressuposição inicial de que havia uma consciência moral efetiva, pois, agora, ela só é efetiva num “estado intermediário de não-perfeição”. (ibid.) Resta-lhe a desarmonia e a separação da consciência do dever e da sua realidade efetiva, isto é, a sua imperfeição intrínseca. Ao mesmo tempo, porém, a consciência moral não pode permanecer estacionária, a meio caminho. Da simultaneidade dessa exigência de um aperfeiçoamento constante, que reduziria a resistência da natureza interna e externa progressivamente a zero, e da oposição, essencial à moralidade, entre vontade pura e sensível, entre liberdade e natureza, resulta paradoxalmente para esta consciência moral, agora essencialmente imperfeita, que o crescimento e aproximação progressiva da sua meta é, ao mesmo tempo, uma diminuição da moralidade e uma aproximação contínua da sua supressão: o que para Kant é o aumento constante da “autocracia”, no sentido do reforço da virtude e da perseverança no progresso moral, que tende a reduzir a resistência da sensibilidade a zero, torna-se para Hegel uma progressão ao avesso, uma ‘diminuição’ crescente em direção à supressão da pressuposição essencial da própria consciência moral, que é a oposição entre razão e sensibilidade, dever e realidade efetiva. Além do mais, os impulsos e desejos são elementos constitutivos da ação moral concreta, os quais, uma vez eliminados, suprimiriam também esta. (439, § 623) A conclusão é que, em face da sua imperfeição essencial e da desarmonia entre moralidade e felicidade no mundo, a consciência moral não leva mais a sério a busca da sua perfeição, de cujo perpétuo deslocamento ela se torna consciente, retornando, assim, ao seu ponto de partida, que era a projeção da harmonia num além inefetivo. (439, § 624)
Essa imperfeição constitutiva da consciência moral faz, agora, desaparecer a exigência da felicidade como ‘merecimento’ (Verdienst) e como retribuição racional por algo de que aquela teria se tornado digna. Consciente da sua imperfeição essencial e da sua indignidade, ela não pode mais considerar a sua felicidade como necessária, mas só como contingente. Não há mais virtude enquanto “fundamento absoluto” de uma felicidade que lhe seria proporcional, e esta só pode ser esperada como uma ‘graça livre’ (440, § 624) do acaso ou do arbítrio de uma generosidade amiga. A consciência moral que assume a sua finitude moral e a sua imperfeição reconhece então explicitamente que ela não pode mais postular a felicidade como retribuição a algum ‘merecimento’; ela só pode esperar “a felicidade enquanto tal, em si e por si”, e não mais uma felicidade baseada “no motivo absoluto” do mérito.
Se só há efetivamente consciências morais imperfeitas, que não podem obedecer plenamente à lei moral nem sabê-lo se o fazem, o que desaparece mais radicalmente é o próprio sentido de um critério de dijudicação moral, que permitiria julgar a qualidade moral do agente, condenar a desarmonia entre moralidade e realidade efetiva e enunciar o juízo de experiência: o homem moral sofre injustiça no mundo e o imoral é feliz. Este enunciado é, agora, deslocado, pois ele não é senão a dissimulação do fato de que não há verdadeira consciência moral. Com efeito, se o agir só se deixa concernir pela felicidade como tal, é arbitrário afirmar que alguém mereceria do curso do mundo outro tratamento que o que lhe é de fato dispensado, desaparecendo a base para qualquer juízo de retribuição que não seja arbitrário. “O que pode acontecer de moralmente mau na experiência [para uma tal consciência essencialmente imperfeita]?” (440, § 625) Hegel conclui implacavelmente desta desarmonia final entre a moralidade e a felicidade que a queixa do justo é arbitrária e que o fundamento do juízo de experiência desta consciência, tornada não-moral, são apenas os sentimentos do queixoso: é “a inveja que se cobre com o manto da moralidade” que julga que a felicidade como tal não deveria ser o quinhão de alguns. Só resta a “boa amizade”, prestes ou não a desejar e conceder a si e aos outros esta “graça” como um “acaso”. (440, § 625)
5. O postulado do “sumo bem originário” como “santo legislador”
a) A gênese do postulado do “santo legislador”
A única maneira de superar a contradição entre o ponto de partida, a pressuposição de que existe uma consciência moral efetiva, e o resultado da dialética dos dois postulados anteriores, o de que não existe uma consciência efetiva que seja moral, portanto, entre uma consciência moral que se revela essencialmente imperfeita e impura e a sua essência moral perfeita, deslocada para o progresso ao infinito, é que a consciência moral projete, por um novo deslocamento, a perfeição moral numa outra consciência transcendente, que, como “arquétipo da perfeição prática” (KpV A 230), seja a garantia de que o progresso moral tenha sentido para a consciência moral imperfeita. O dever de fomentar indefinidamente o sumo bem no mundo, que implica para Kant o postulado da existência do “sumo bem originário” (Deus) como fundamento da possibilidade de que o sumo bem possa ser realizado pela ação moral (KpV A 226), resulta para Hegel da ‘transposição para fora’ (hinaussetzen, 445, § 632), num além da consciência moral imperfeita, do seu saber da pura moralidade como sendo a sua essência, que ela agora pensa como realizada perfeitamente numa consciência transcendente. Esta assume a figura do ‘santo legislador moral’, o arquétipo da santidade (441, § 626) que , - para Kant é um dos três predicados morais, juntamente com a sabedoria e a bem-aventurança, que podem ser analogicamente atribuídos de maneira exclusiva a Deus (KpV A 236), - mas que para Hegel representa tão só a resolução das contradições e deslocamentos dos dois primeiros postulados numa síntese mais alta, que, agora, reúne e integra as harmonias anteriormente postuladas. Esta síntese superior contém a harmonia ‘em si’ da moralidade e da ‘natureza objetiva’, que constitui ‘o fim-último do mundo’, e a harmonia ‘para si’ da moralidade e da vontade sensível (a natureza dada no sentido interno), que constitui ‘o fim-último da autoconsciência. (429; § 604) O postulado da existência do ‘sumo bem originário’ como ‘santo legislador’ integra, assim, as duas formas anteriores de harmonia numa harmonia ‘sendo em si e para si’, que para nós, a reflexão fenomenológica, nada mais é do que a mediação imanente ao próprio agir moral efetivo projetada numa consciência transcendente, que, como objeto do puro pensamento postulativo, não é ainda conceitualmente apreendida na sua identidade com aquele agir efetivo. (432, § 611) Mas agora os momentos opostos dessas harmonias anteriores, o puro dever e a realidade efetiva, que até então não eram ainda, na sua diferenciação abstrata, objeto para a consciência, entram efetivamente em cena para a própria consciência como sendo cada um o oposto do seu outro e como “postos numa unidade”, na qual estão suprimidos e superados (aufgehoben) como momentos. (431, § 610) Nisso a consciência moral sabe que a visão moral do mundo chegou ao seu termo (ist vollendet), embora ela não esteja ainda ciente de que esta última não é senão o desenvolvimento e a objetivação do seu conceito. (432, § 611)
O puro pensamento que postula a existência de um ‘sumo bem originário’ apenas ‘representa’, portanto, num ente transcendente, a síntese do fim-último do mundo (objeto do ‘primeiro’ postulado) e do fim-último da autoconsciência moral enquanto tal (objeto do ‘segundo’ postulado), cuja raiz é a mediação entre puro dever e realidade efetiva, contida no agir moral, que funda como termo-médio a síntese daquelas harmonias projetadas. (429, § 604) Mas a existência de um sumo bem originário ‘representa’, também, a resolução da contradição entre o ponto de partida (1) e o resultado final (2) das dialéticas dos dois primeiros postulados: 1) “há uma autoconsciência moral efetiva”, cujo si-mesmo (Selbst) está em unidade imediata com conformidade de toda realidade efetiva ao dever, mas que, como consciência, ‘representa’ essa unidade imediata (harmonia) como um objeto, que é só ‘pensado’ como sendo necessário e é só um negativo além de toda a realidade efetiva ( 432-433, § 612); 2) “não há uma autoconsciência moral efetiva perfeita”, pois, em face dessa harmonia representada como objeto transcendente, só lhe resta a consciência da desarmonia entre a consciência do dever e a sua realidade efetiva; mas, visto que a moralidade consiste somente na conformidade ao puro dever e, portanto, tudo o que é real-efetivo é não-moral, segue-se que “não há algo moralmente efetivo”, de sorte que também a harmonia postulada perde o fundamento (433, § 613) Dilacerada entre o puro pensar do dever, que é inefetivo, e a sua realidade efetiva, que não é moral, esta autoconsciência contém, contudo, no seu si-mesmo (Selbst) a unidade em si desses momentos opostos, que ela por isso vai representar sob a forma de uma perfeição transcendente que lhe é essencial, e que, estando além da realidade efetiva, deve, contudo, ser efetiva. (433, § 614)
Além de encaminhar a resolução da contradição entre o ponto de partida e o resultado das dialéticas anteriores, o postulado da existência de ‘um senhor e soberano do mundo’ (430, § 606) tem a função primordial de estabelecer a mediação entre o “saber e querer simples do puro dever” e a multiplicidade dos deveres, oriunda da relação necessária do agir moral a uma realidade efetiva multiforme. A consciência moral não apreende conceitualmente que a mediação entre o puro dever (o universal, a forma) e os múltiplos deveres (o particular, o conteúdo) já está presente no seu próprio agir moral, e por isso, inicialmente, para ela enquanto consciência, só é válido nos múltiplos deveres aquilo que é puro dever, e, ao mesmo tempo, enquanto agir moral, por causa da sua relação à realidade efetiva das várias situações, ela se confronta necessariamente com múltiplos deveres determinados, que são também igualmente válidos na sua diversidade. (429, § 605) Para resolver esta oposição entre unicidade e multiplicidade, forma e conteúdo do dever, ela projeta, alternativamente, na consciência transcendente do ‘santo legislador’, ora a validação (“santificação”) dos múltiplos deveres, quando para ela só é essencial o dever simples e puro, ora, inversamente, a validação (“santificação”) do dever enquanto tal, uno e único, quando para ela, como consciência moral singular, o essencial é o agir moral no conteúdo múltiplo dos seus fins particulares. (430, § 606) O conceito dessa consciência transcendente, em que forma e conteúdo, universal e particular, são um, é idêntico com o conceito do sumo bem originário. Hegel recupera criticamente, aqui, mediante esta gênese, a passagem kantiana da moralidade à religião (KpV A 233), pela revalidação dos deveres enquanto mandamentos de uma vontade legisladora soberana.
b) Os deslocamentos do postulado do ‘santo legislador’ e a sua contradição interna
A consciência moral efetiva, que ao final da dialética anterior ‘colocara’ a sua imperfeição essencial, sabe, contudo, que a essência da moralidade é a perfeição pura, e por isso a projeta na consciência transcendente do ‘santo legislador moral’, na qual ela ‘representa’ a unidade postulada do dever e da realidade efetiva e, ao mesmo tempo, a supressão da sua desconformidade com o dever. (431-432, § 610) Na sua relação à realidade efetiva ‘outra’ de uma natureza dada e estranha, essa consciência imperfeita se fragmenta numa multiplicidade de deveres, que ela considera, todavia, inessenciais em face da sua consciência do dever puro e simples, e da moralidade perfeita do santo legislador. Por isso, eles só podem tornar-se verdadeiros deveres para ela na medida em que são queridos por este. Mas esta validação externa se revela, em seguida, um novo deslocamento, pois a autoconsciência moral sabe que a sua autonomia é ‘o absoluto’, e que para ela só é dever o que ela sabe como tal. Portanto, o que não é fruto da sua autolegislação e intrinsecamente válido não pode ser extrinsecamente santificado pelo legislador. A autoconsciência que se sabe autônoma não mais levará a sério, assim, nem essa santificação externa, nem a própria santidade do sumo legislador, pois como poderia ser validado como essencial o que para a sua consciência autônoma do dever absoluto não o é? A validação (‘santificação’) externa e o própria figura do santo legislador são, portanto, deslocados pela autonomia moral consciente de si, antecipando a próxima figura do espírito que é a ‘certeza-moral’ (Gewissen). (441, § 626)
Mas se o santo legislador é postulado como fonte e instância de validação dos múltiplos deveres determinados, seria preciso novamente deslocar essa representação, pois como o cumprimento dos deveres pela ação da consciência imperfeita é perpassado pela convicção singular e contingente do que é em cada situação o dever determinado, ela tem agora, inversamente, de projetar no santo legislador a validação do que há de absoluto no dever determinado e de representar o legislador transcendente como a fonte única da validade do puro dever. (441, § 627) O dever só é sagrado para a consciência moral agente na consciência do “santo legislador do puro dever” (431, § 607). Este deslocamento significa que o legislador só é santo porque é a única instância graças à qual o puro dever tem validade e que, por isso, valida a abolutidade do dever no dever determinado. Portanto, como para a consciência moral imperfeita a moralidade revela-se uma contingência da vontade e do saber, visto que a vontade pode infringir a lei moral, e o saber do dever determinado pode ser incompleto e contingente, a moralidade acabada só existe na consciência transcendente do santo legislador. (ibid.)
Após esse duplo deslocamento, que ora incumbe o legislador transcendente de validar o dever determinado para a consciência do dever puro e simples, ora de validar este para a consciência imperfeita que age e efetiva o conteúdo do dever determinado, esta se dá conta de que esta alternância apenas dissimula a sua própria contradição, pois a sua imperfeição consiste numa relação positiva necessária à natureza e à sensibilidade, enquanto estas são momentos essenciais implicados no agir moral, com os quais, ao mesmo tempo, ela só tem, contudo, pura e simplesmente uma relação negativa. Mas esta contradição se insinua agora na própria consciência transcendente do santo legislador, pois ele não pode ter nem uma relação negativa nem positiva com ambas: como arquétipo da “moralidade puramente acabada”, ele não está mais em oposição e em luta com a natureza e a sensibilidade, portanto, em relação negativa a elas, que constituem, todavia, um momento essencial realização efetiva do puro dever pela ação, e nem pode estar numa relação positiva elas, pois esta envolveria, precisamente, uma imperfeição moral, de sorte que aquela moralidade acabada termina por revelar-se ou “inefetiva e abstrata” ou “carente-de-consciência”. (442, § 628)
Esta argumentação por disjunção pretende mostrar a contradição interna do próprio conceito de ‘moralidade acabada’, pois a perfeição da natureza e da sensibilidade plenamente conformadas ao puro dever a colocaria ‘acima’ de uma relação oposta à natureza e à sensibilidade, que é a única que pode dar realidade efetiva e consciência à moralidade. Uma “moralidade em si e para si” seria, a um só tempo, a moralidade de uma consciência, que se sabe determinada pela forma da lei (moralidade para si), e a moralidade que tem realidade efetiva no seu agir (moralidade em si). (443, § 630) “A sua verdade [da moralidade acabada] deve consistir em ser oposta à realidade efetiva, e totalmente livre dela e vazia, e nisso, de novo, ser realidade efetiva”. (444, § 630) Projetada, como tal, no santo legislador, ela se revela, ao fim, um novo e último deslocamento dissimulador da contradição da consciência moral. Para a consciência que sabe disso, a figura do santo legislador tem de ser abandonada, assim como o próprio conceito de moralidade, definido pela simultaneidade do pensar e querer do puro dever (pureza e validade formal absolutas) e do querer e saber concretos do agir moral que efetiva o dever (realidade efetiva). O ‘autor santo e bom do mundo’ (KpV 233), que já para Kant tendia a tornar-se mera função da crença racional na possibilidade da realização do sumo bem no mundo, é reduzido por Hegel a uma projeção inconseqüente da autoconsciência moral que não apreendeu o seu conceito e a sua contradição. Hegel retoma e radicaliza aqui a crítica kantiana à metafísica dogmática, mostrando que a teologia moral dos postulados, fundada em última análise numa autonomia formal que separa o puro e o empírico, a validade e a realidade efetiva, é ainda um prolongamento daquela.
5. Conclusão
Com o deslocamento final e o colapso do postulado do santo legislador, pensado como a essência transcendente da moralidade acabada e como a resolução teológico-moral da contradição da consciência moral, completa-se a visão moral do mundo, pois, agora, a autoconsciência moral vai intuir nele o seu próprio conceito, quer dizer, ela vai descobrir que o seu saber do puro dever e o puro pensar da moralidade acabada são idênticos no seu si-mesmo. Mas ela ainda não apreende esse conceito como tal, pois ela intui sob forma ainda objetiva a unidade dos opostos antes separados, o puro dever e a realidade efetiva (sua e da natureza), a validade formal e o agir concreto, entre os quais ela oscila e o “representar sintético” dos postulados “vagueia” (sich herumtreibt). Nessa intuição da unidade dos opostos ela retorna à sua contradição fundamental entre consciência formal da validade absoluta e realidade efetiva da sua ação e da natureza, só que agora os momentos dessa contradição “se aproximam tanto (...) que a consciência tem de, aqui, abandonar a sua visão moral do mundo e de se refugiar adentro de si” (442, § 629). Porém só através da experiência da contradição interna do terceiro postulado e do colapso da visão moral do mundo objetivada, experiência que a autoconsciência moral faz ao fim dessa série de deslocamentos que a conduziram até completo o refluxo em si mesma, é que ela poderá apreender a sua contradição fundamental como sendo a matriz da projeção da moralidade acabada no santo legislador, e, assim, apreender neste, enquanto ‘seu contrário absoluto’, a si mesma: ao reconhecer no objeto da sua projeção o seu si-mesmo, ela apreende o seu ‘conceito absoluto’. (432, § 611)
Inicialmente a consciência moral não se dava conta de que a sua visão moral do mundo, que se desdobra e articula pelos deslocamentos dissimuladores da sua contradição fundamental, não era senão o desenvolvimento e a objetivação do seu próprio conceito. De início, ela não apreende como tais nem a oposição segundo o conteúdo (puro dever - realidade efetiva, autonomia formal - natureza, validade - agir), nem a oposição segundo a forma (consciência imanente - consciência transcendente). Por isso ela é, antes, “propelida” e arrastada pelo movimento vertiginoso e enganador dos deslocamentos e não é capaz de reconhecer no puro pensamento dos postulados (que para Hegel é representativo, e ainda não conceitual) o movimento pelo qual ela objetiva o seu próprio conceito e projeta a resolução representativa das suas contradições. Só ao termo da experiência da contradição interna do santo legislador como encarnação da ‘moralidade puramente acabada’ é que consciência moral, ciente ao mesmo tempo da sua imperfeição essencial e de que o puro dever é, todavia, a sua essência, é que ela pode apreender esse “seu contrário absoluto como si-mesma” (432, § 611) Nós, a reflexão fenomenológica, sabemos que o périplo completo da experiência dos deslocamentos nada mais é do que o desenvolvimento do conceito da autoconsciência moral, desenvolvimento mediante o qual ela se objetiva nessa visão moral do mundo, que agora se revela no seu todo como “o sincretismo dessas contradições” (443, § 631). Mas ela só toma consciência disso ao termo desse périplo, através do qual ela “apresenta” (darstellt) o que ela é, ao se defrontar com a condensação das suas contradições e dos seus deslocamentos na contradição interna da figura do santo legislador. Como representação da moralidade perfeita (a ‘essência absoluta’ da santidade), ele é a síntese ‘em si e para si’ do fim-último objetivo (harmonia da moralidade e da realidade efetiva da natureza) e do fim-último subjetivo (harmonia da moralidade e da sensibilidade) (429, § 604), que deve ser pensada como estando além da realidade efetiva, e, contudo, como real-efetiva.
Nesta figura os desdobramentos anteriores da contradição fundamental da consciência se condensam e aguçam numa oposição máxima entre a moralidade perfeita, pensada como necessária e posta como em-si numa consciência transcendente, e o si-mesmo (das Selbst) da consciência moral imperfeita, que sabe, contudo, que essa pura moralidade é a sua essência, mas que, faz, agora, a experiência de que esta diferença entre ambas as consciências opostas é nula e puramente verbal. (443-444, § 631) A autoconsciência moral reconhece, então, que a ‘contradição segunda a forma’ entre o em-si da moralidade acabada e o si-mesmo da consciência imperfeita que sabe contudo o puro dever como sua essência, não é senão a “transposição para fora de si mesma” (a projeção), na figura do santo legislador, daquilo que ela tem de pensar como sua ‘contradição segundo o conteúdo’, a saber, que a validade absoluta do dever é um além inefetivo da consciência, que contudo, só “tem lugar” e é efetivo nela. (445, § 632) Assim, tanto o puro saber da validade absoluta do dever, quanto o puro pensar da moralidade perfeita com um além da consciência efetiva imperfeita, se revelam, ao fim, para a consciência fenomenológica (“para nós”), como expressões idênticas do si-mesmo dessa consciência moral imperfeita: graças a esta identidade sabida de ambas com o seu próprio si-mesmo efetivo, ela retorna a si e sabe, também, agora, que ela, na sua singularidade contingente é o “puro saber e o puro agir”, contendo em si suprassumida a oposição entre puro dever e realidade efetiva.
Nesta experiência que a consciência moral faz de que a oposição entre ela enquanto imperfeita e a consciência transcendente se resolve na única e mesma realidade efetiva do seu si-mesmo, a “pura autoconsciência moral” (moralisches reines Selbstbewusstsein) se torna “pura boa-consciência” ou “pura certeza moral de si mesma” (reines Gewissen) que tem na sua “autocerteza” (Selbstgewissheit) e na convicção absoluta que preside ao seu agir efetivo o conteúdo do dever que lhe era antes vazio. (446, § 633) O seu conceito não é mais deslocado e dissimulado na figura do santo legislador, mas é apreendido como tal no poder que ele tem sobre este objeto transcendente, este ‘seu contrário absoluto apreendido enquanto si mesmo’ (432, § 611). A autoconsciência moral se vê, assim, obrigada a reconhecer que ela não mais pode levar a sério a “extraposição mútua” (Auseinanderstellung) dos momentos que sustentavam a visão moral do mundo, de um lado o em si da moralidade perfeita como um absoluto fora da consciência, que ela agora sabe que é “uma coisa-de-pensamento irrealizada”, e, de outro, o si-mesmo da sua autoconsciência, que igualmente sabe que aquele em si está incluso nela. Por conseguinte, ela também não leva mais a sério separação dos termos opostos que articulavam a contradição do seu ponto de partida (o puro dever e a realidade efetiva, a Gesinnung e o agir, a vontade pura e a sensível, a autonomia formal e a natureza etc.), separação que é condição para a justificação da tese central da Analítica, de que a razão pura é prática por si mesma porque se determina a si mesma como vontade pura unicamente pela forma da lei. Compelida pelo colapso da visão moral do mundo, a autoconsciência moral reconhece, então, que a superação desses dualismos e da diferença ontológica entre liberdade e natureza, mediante o postulado de um santo legislador que é autor do mundo e da lei moral, já está contida no agir efetivo da autoconsciência, que agora fez a experiência dessa mediação imanente como a matriz daquela síntese (projetada na consciência transcendente) entre fim último do mundo e fim-último da autoconsciência, e, assim, acede a essa pura certeza moral que a boa consciência tem de si mesma (reines Gewissen) (444, § 631).
Com isso torna-se agora também explícito para a autoconsciência que a própria “extraposição mútua” dos opostos, que está na base dos postulados, é um deslocamento dissimulador, e que querer, agora, mais uma vez, deslocar e dissimular o todo da visão moral do mundo, que entrementes se revela para ela como um “mundo do deslocamento dissimulador”, para fugir dessa “extraposição” dissociadora, seria uma “hipocrisia” (Heuchelei). (434, § 631) Tomada então de ‘horror’ (Abscheu) por essa desigualdade entre a representação desse mundo do deslocamento dissimulador que a visão moral do mundo revelou ser, de um lado, e sua essência agora apreendida conceitualmente, de outro, a autoconsciência moral (moralisches Selbstbewusstsein)se refugia na autocerteza da “boa consciência moral” (Gewissen). Esta não invoca mais o puro dever como “padrão de medida vazio” contraposto à consciência efetiva, mas age a partir da sua convicção moral imediata, plenamente válida na sua contingência (nota 31), sem precisar recorrer à mediação representativa dos postulados para alcançar o objeto integral da sua vontade. (446, § 634) Sabendo, agora, explicitamente, que é a separação e a “extraposição” dos seus momentos opostos, - condensada na oposição fundamental (a oposição segundo a forma) entre o em-si da pura moralidade, verdadeira, mas irreal, e o si-mesmo, efetivo, porém moralmente “nulo” (nichtig) por sua imperfeição, - o que faz surgir o deslocamento dissimulador, a autoconsciência moral se defronta, finalmente, com uma alternativa, em que ela não escapa à confissão da sua hipocrisia de base: por uma, é somente através do percurso da série completa dos seus deslocamentos dissimuladores, objetivados na visão moral do mundo, que a consciência retorna adentro de si e, assim, alcança o seu conceito, “apresentado” na visão moral do mundo; por outra, esse retorno a si a enche de “horror por esse mundo do deslocamento”, pois ela sabe, agora, que ele é “tão só uma pretensa verdade”, que ela, todavia, “tem de (muss) fazer passar por sua verdade”, uma vez que ela só chega ao seu conceito através dele.
Desta “antinomia da visão moral do mundo” (445, § 632) resulta que a hipocrisia é, senão a raiz da autoconsciência moral, pelo menos, a contraface essencial da sua contradição fundamental, pois é hipocrisia querer manter separados, irredutíveis e não unificáveis os momentos opostos que estruturam o seu ponto de partida e a sua objetivação como visão moral do mundo; mas é igualmente hipocrisia, por causa do horror que a invade ante o saber de que o mundo moral é inefetivo e uma pretensa verdade, dissimuladora da sua contradição, desprezar essa série dos deslocamentos que o fazem surgir, e, assim, negar o percurso mediante o qual, unicamente, ela alcança o seu conceito. É hipocrisia querer manter no si-mesmo da autoconsciência moral que apreendeu o seu conceito a separação dos momentos, que está na raiz dos deslocamentos, mas negar, por horror à “pretensa verdade” da sua objetivação nos postulados, a necessidade de percorrer os deslocamentos que os perpassam, portanto, dispensar a mediação e “desprezar’ (Verschmähen) aquele deslocamento, é, novamente, externação da hipocrisia, precisamente a primeira.
Os postulados tinham para Kant a função de reunificar, no foco da unidade da razão, de um lado, a separação, estabelecida pela teoria nomológica da Analítica, entre o puro dever e a realização dos fins humanos determinados, entre virtude e felicidade, entre validade absoluta e realidade efetiva, separação que era a condição da tese da autonomia moral e da sua autarquia fundacional, e de outro, a sua integração sintética no imperativo de realização do sumo bem no mundo, deduzido transcendentalmente, na Dialética, como objeto total e fim-último da vontade autônoma, que implicava a hipótese de um fundamento ontológico último (o sumo bem originário como autor do mundo), que garantisse a superação do abismo intransponível entre liberdade e natureza, entre validade e efetividade, superação exigida para que a realização do sumo bem pelo agir humano seja possível. Para Hegel, esta tentativa de unificar posteriormente, mediante a teoria do sumo bem e dos postulados, o que a tese da fundação absoluta de uma lei moral formal como fato da razão exigiu anteriormente manter separados, irredutíveis e não-unificáveis, significa aceitar a separação última entre moralidade e felicidade, entre o puro dever e a realidade efetiva da natureza e da sensibilidade oposta a ele, entre o em-si da moralidade acabada e o si-mesmo autoconsciência moral, separações essas que fazem surgir a visão moral como um mundo do deslocamento dissimulador, cuja antinomia obriga a autoconsciência moral a reconhecer a sua hipocrisia e a se superar na nova figura do espírito que é “pura certeza moral de si mesma”.
Esta constitui, na arquitetônica da Fenomenologia do Espírito, o “terceiro si-mesmo” do espírito, que, assumindo a figura da genialidade moral da boa-consciência, antecipadora da “bela alma”, tem na sua convicção singular absoluta o conteúdo para a universalidade antes vazia do dever, para a universalidade abstrata da vontade geral incapaz de se institucionalizar (“segundo si-mesmo”) e para a universalidade formal do direito (a pessoa como o “primeiro si-mesmo” do espírito). (446, § 633) Ao abrir o caminho para a absolutização da autocerteza moral subjetiva, a teologia moral dos postulados antecipa, na perspectiva da sua crítica por Hegel, a auto-supressão da moral.