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linguagem 

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sociedade 


A linguagem como ação 

05/07/98 
 

Autor: CONTARDO CALLIGARIS

Origem do texto: Especial para a Folha 
 

A linguagem como ação  

Leia entrevista com o filósofo americano John Searle em que ataca Rorty e Derrida

CONTARDO CALLIGARIS

especial para a Folha

Há quem diga que Searle é um homem de direita. Em 70 escreveu "The Campus War" ("A Guerra no Campus"), uma análise impiedosa do funcionamento do movimento estudantil, na qual, por exemplo, já suspeitava que o radicalismo estivesse se tornando um estilo de vida. Mais tarde, foi um dos primeiros a se opor à ação afirmativa e ao multiculturalismo triunfante. Mas, cuidado, o aparente conservador é um democrata intransigente.

Estudante em Wisconsin, Searle foi secretário do grupo Estudantes contra McCarthy e, voltando de Oxford para os EUA, fundou em Berkeley o Movimento da Liberdade de Palavra. No começo dos anos 60 _quando o poderoso Comitê das Atividades Antiamericanas apavorava a todos_ esta postura foi notável, sobretudo para um jovem professor que ainda não era titular _e que, aliás, não tinha nenhuma simpatia socialista ou comunista.

Na França dos anos 70 _junto a "Como Fazer Coisas com Palavras", de Austin_ o livro de Searle _"Atos de Palavra"_ foi uma espécie de lufada de ar no clima estruturalista vigente. Searle propunha pensar a linguagem como comportamento e ação _a frase sendo o ato humano elementar. Sua descrição do que significa falar era mais convincente que o "Curso de Linguística Geral" de Saussure. E nos deixava com a suspeita de que uma parte ampla de nossas construções psicológicas fosse decorrente de invenções forçadas por um entendimento insuficiente da prática linguística.

Mas se delineou uma falsa alternativa entre acreditar _por exemplo, com Lacan_ que somos efeitos, e não agentes da linguagem, ou então adotar uma visão do sujeito como intencionalidade consciente _e abandonar portanto os fundamentos da psicanálise. De fato, a concepção da intencionalidade em Searle está longe de ser inconciliável com uma concepção complexa da subjetividade. Algo disso aparece na entrevista.

A verdade é, para Searle, sempre decidida pela adequação de nossas descrições à realidade. A questão é mais delicada, obviamente, do que aparece na entrevista. Ela se complica quando se trata de descrições que não concernem à realidade exterior, por exemplo, proposições de juízos abstratos ou de qualidade. Mais delicada ainda é, a meu ver, a contradição entre o caráter convencional e cultural de nossas descrições e a idéia de uma realidade que, para ser medida da verdade, deveria ser independente delas. Mas admiro o fundo de bom senso na posição de Searle: uma espécie de aceitação do realismo espontâneo de nossa experiência cotidiana.

Com toda sua simpatia pela ciência, Searle nunca se tornou positivista. Sua ironia em relação às posições dos cientistas-filósofos como Edward Wilson é explícita. E é famosa sua crítica sobre a idéia de que os computadores possam reproduzir uma inteligência humana. Justamente no livro que sai agora no Brasil, Searle retoma e completa seu "argumento do quarto chinês". É a história do homem que recebe um texto em chinês e, com a ajuda de regras fixas de correspondência, reproduz o texto em uma outra língua. Ora, mesmo se esse texto conseguisse manter a significação do original, será que o homem estaria traduzindo?

Do mesmo modo, os computadores podem imitar o pensamento, mas não pensar, pois são máquinas sintáticas, sem semântica. A este argumento antigo, Searle acrescenta hoje a idéia de que o computador só pensa do ponto de vista de um observador, quando um homem pensa do seu próprio ponto de vista. Há, em Searle, um cuidado constante com o caráter original e irredutível da experiência humana da subjetividade (e não só da consciência).

Enfim, importa assinalar que Searle é um analista imprescindível das construções sociais. Sua explicação das formações simbólicas (sobretudo modernas, contratuais) em "A Construção da Realidade Social" é das melhores que conheço. 

Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).

E-mail ccalligari@aol.com 
 

A linguagem como ação

Leia a seguir entrevista concedida pelo filósofo John Searle à Folha em seu escritório na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), onde leciona.

*

Folha - Como você resumiria sua trajetória desde "Speech Acts" (Atos de Fala)?

John Searle - Hoje me parece que meus dez livros são partes de um único projeto que emerge só aos poucos. Eis o problema: como conciliar a concepção que temos de nós mesmos _como agentes conscientes e racionais_ com um mundo do qual nos é dito que é feito de partículas sem espírito e sem significação? A questão de "Atos de Fala", meu primeiro livro, era uma variante deste problema maior. A pergunta, na época, era a seguinte: como é possível que eu produza estes barulhos com a boca e eles acabem sendo entidades significativas? Como se passa do som à significação? Respondendo a esta questão, eu tive que recorrer a uma série de aparatos mentalistas.

Estava assim contraindo uma dívida que algum dia teria que pagar. Precisava explicar o que é um desejo, uma promessa, um medo... Assim, depois de "Atos de Fala" escrevi um livro sobre a "Intencionalidade", em que tentei analisar estas noções. Isso me levou a toda uma série de debates sobre a natureza da mente. Depois, como a mente cria a sociedade, quis me perguntar de que modo pessoas que agem de concerto criam um mundo social objetivo. É a "Construction of Social Reality" (A Construção da Realidade Social).

Folha - O livro que sai agora no Brasil, "O Mistério da Consciência", vale como uma espécie de introdução ao debate em curso sobre a questão das relações entre cérebro e mente, e apresenta, naturalmente, sua posição. Você não quer abandonar o materialismo, mas também não quer reduzir a consciência, ou seja, a consciência não pode ser negada como experiência original, mas, por outro lado, não há nada mais do que o cérebro. Portanto a consciência deve ser uma caraterística que emerge da atividade cerebral.

Searle - Parte do problema neste debate é a oposição tradicional entre materialismo e dualismo. O materialismo é pensado de forma a excluir a possibilidade de um fenômeno mental irredutível (como a consciência) e o dualismo (de corpo e espírito) é geralmente usado para negar o materialismo. Eu penso que ambos de uma certa forma são verdadeiros, não são inconsistentes, e gostaria sobretudo de me livrar do vocabulário tradicional.

O mundo é composto de partículas físicas organizadas em sistemas, alguns sistemas são orgânicos e, entre estes, alguns são sistemas nervosos. Por sua vez, alguns destes comportam processos neuronais que produzem, em um nível mais alto, estados de consciência. A consciência então é uma faculdade emergente de certos sistemas biológicos. Disse tudo isso sem usar o vocabulário tradicional de materialismo e dualismo. Quero evitar esse vocabulário e dizer: a consciência é produzida por processos cerebrais e é ela mesma um certo nível de organização do cérebro.

Folha - É um bom caminho, aliás, para mostrar que não há necessariamente contradição entre biopsiquiatria e psicoterapia pela palavra. Sei que esta mesa é feita de moléculas, mas minha experiência continua sendo a de uma mesa de quatro pernas. Do mesmo jeito, mesmo se a consciência é um efeito do cérebro, a gente nunca vai se vivenciar como um sistema neuronal. Quando decido ir ao cinema, não tenho a experiência de meus neurônios disparando o título do filme que quero ver.

Searle - Exatamente, não há nada de inconsistente em dizer que a consciência está inteiramente no nível dos neurônios, mas é a experiência que forma o conteúdo da consciência. Nenhum paradoxo: quando dirijo meu carro, não penso na oxidação de hidrocarbonetos etc. Simplesmente boto o pé. Trata-se de diferentes níveis de descrição. A consciência não é uma experiência de neurônios disparando (ou seja qual for a descrição mais adequada _talvez precise, no futuro, descer a um nível subneuronal). Ao mesmo tempo, em algum nível, o cérebro deve fornecer a explicação, porque o cérebro causa a consciência.

Folha - Agora gostaria de voltar ao começo de sua produção, "Atos de Fala". Por causa deste livro, eu sempre identifiquei você com a dita Virada Linguística (Linguistic Turn, movimento sobretudo anglo-saxão que situou a linguagem no centro da investigação filosófica). Com razão?

Searle - Sim, absolutamente. Sou um filósofo da linguagem.

Folha - Mas, por alguma razão, no que concerne à concepção da verdade, você se tornou um representante do realismo contra a Virada Linguística. E defende a idéia de que a verdade depende da adequação à realidade, não é um critério intrínseco à linguagem.

Searle - Sempre pensei que importava examinar a linguagem para descobrir mais coisas sobre a realidade que a linguagem representa. Uma maneira de chegar, por exemplo, à realidade da intencionalidade humana ou do comportamento humano é examinar a estrutura da linguagem que usamos para descrever as ações: voluntárias ou involuntárias, forçadas ou não etc. Mais importante ainda, a linguagem enquanto tal é um certo tipo de realidade. Em "Atos de Palavra" o projeto era examinar como a linguagem se relaciona com o mundo, e a intuição básica de qualquer teoria dos atos de palavra é que a unidade essencial na comunicação humana é o ato de palavra.

A linguagem é assim concebida como uma forma de comportamento humano, um comportamento intencional. Se a Virada Linguística significa examinar só a linguagem por si só e nada mais, não faço parte dela. Eu nunca pensei que a filosofia devesse se interessar inteiramente pela linguagem enquanto tal. Mas pensava, isso sim, que a linguagem, além de ser um campo de investigação autônomo, era um instrumento maravilhoso para analisar problemas filosóficos tradicionais.

Folha - Serei mais específico. No último livro de Richard Rorty, "Verdade e Progresso" ("Truth and Progress", Cambridge University Press), há um capítulo que discute um artigo seu de 92, em que, em nome do realismo, você criticava Rorty, Kuhn e Derrida. Para ser mais direto: não acredito que Derrida caiba neste grupo, mas é verdade que, por alguma razão, Rorty acredita que Derrida jogue no seu campo. De qualquer forma, o debate é entre concepção pragmatista e concepção realista da verdade. Para você o realismo não é pouca coisa; a segunda parte de "A Construção Social da Realidade", por exemplo, é consagrada ao realismo. Você defende contra todos a idéia de que a verdade seja, possa e deva ser medida pela adequação à realidade. É surpreendente, pois você certamente seria o primeiro a dizer que a linguagem é a instituição fundamental, sem a qual nenhuma outra instituição seria possível. Como entender a noção de que qualquer coisa que a gente diga possa ser adequada à realidade enquanto tal? Se estamos sempre lidando com descrições, e as descrições, sendo linguísticas, são convencionais, como aprendemos a realidade em si? 
 

Para Searle o pós-modernismo é um desastre da filosofia, uma verdadeira favela intelectual  

A idéia de nação está acabando; o problema é que até agora não temos estruturas

institucionais para substituir a nação-Estado  

A linguagem como ação

continuação da pág. 5-7

Searle - A resposta é muito simples. Algumas descrições são verdadeiras porque correspondem aos fatos. Digo: há uma árvore lá fora, e há uma árvore lá fora.

Folha - Há uma árvore porque você pode bater nela, cortá-la...

Searle - Não, há uma árvore porque há uma árvore. Como é que eu acabo sabendo que há uma árvore é uma outra questão. Não devemos confundir a epistemologia de como descobrimos que há uma árvore com a ontologia, aquilo que existe. As descrições do mundo são articuladas por meio de frases em um vocabulário convencional, mas os fatos que correspondem a estas descrições não são convencionais.

Há água salgada no oceano Atlântico, ela estava lá anos antes que qualquer ser humano declarasse que havia água salgada no oceano Atlântico. Tínhamos que inventar um vocabulário para dizê-lo, mas o fato mesmo não depende de nosso vocabulário. O vocabulário é convencional, mas, uma vez que você tenha um vocabulário convencional, que haja ou não um fato no mundo que corresponda à sua declaração não é convencional.

Folha - Estamos acostumados a dizer que a realidade é composta de partículas. Isto é verdadeiro porque este é o tipo de descrição do mundo que é científica para nós. Duzentos anos atrás, teríamos falado de uma maneira completamente diferente. Por exemplo, em lugar de vermos a verdade em partículas mínimas, poderíamos pensar que ela está na ordem holística do universo. Qual é o fato que está por trás desta mudança? Naturalmente, há algum fato, não estamos discutindo que haja realidade.

Searle - O ponto é que, avançando na ciência, mudamos nossa descrição, mas isso não coloca em causa a existência de uma realidade independente.

Folha - Concordo até aqui.

Searle - Que a gente modifique, melhore nossas descrições, isto só faz sentido porque tentamos nos aproximar da verdade. E a verdade é uma questão de como nossas descrições correspondem a um fato.

Pergunta - Aqui já concordo menos. Há uma teleologia em sua posição, a idéia de um progresso de nossas descrições.

Searle - Mas é assim. Sabemos muito mais do que nossos avós. Havia um tempo em que ninguém sabia das doenças produzidas por bactérias, e agora sabemos. E, por consequência, somos decididamente mais capazes de curar doenças do que no passado.

Folha - Justamente, este é um argumento pragmático. Aí concordaríamos.

Searle - Ok, mas a utilidade pragmática deriva da correspondência aos fatos. Identificamos a bactéria da TB e por isso fomos capazes de agir utilmente. A utilidade depende da correspondência (e não vice-versa). É porque temos uma representação adequada de uma coisa que podemos agir do modo certo.

Folha - O pragmatismo diria apenas o inverso.

Searle - Pior. Richard (Rorty) não quer falar da verdade. Segundo ele, não podemos dizer que a ciência nos permite fazer melhores predições porque o que ela diz é verdadeiro. Tampouco se pode dizer que é verdadeira porque permite melhores predições. Deveríamos simplesmente dizer que ela nos permite fazer melhores predições _ponto. O que "melhores" significa aqui, a não ser "correspondente aos fatos", não tenho a menor idéia.

Folha - Acho que, se Rorty não quer falar sobre a verdade, é porque receia que a verdade tenha dono. A idéia de deter a descrição verdadeira do mundo às vezes inspira pretensões delirantes. Veja o caso de Edward Wilson, o biólogo, que acredita ser possível deduzir até normas éticas a partir da descrição científica da realidade.

Searle - Eu contestei Ed Wilson. Ele disse, por exemplo: estabelecemos em sociobiologia que o incesto é um mal. Eu mostrei que, mesmo em seus próprios termos, ele não estabeleceu nada disso. No melhor dos casos ele estabeleceu que o incesto que leva à gravidez é um mal, mas o pai que estupra sua filha usando métodos contraceptivos não vai de nenhuma maneira contra o que a sociobiologia pode estabelecer. A sociobiologia não mostra as coisas que Ed Wilson pretende.

Folha - O sonho dele (e de outros) é chegar a algum tipo de regulador ético que não seja convencional ou institucional.

Searle - Ele está errado.

Folha - Mas não deixa de ser uma tendência forte. Entende-se por que: seria uma maneira de substituir Deus. Se pudéssemos deduzir princípios morais da ciência ou da biologia, seria um alívio.

Searle - Mas em filosofia não estamos no negócio de oferecer conforto e alívio para ninguém.

Folha - Justamente, no último capítulo de "Atos de Fala", você abordava uma questão filosófica clássica: como deduzir o "dever" do "ser" (o "ought" do "is"). Sua posição era: é possível, mas há que se ter ao menos uma regra convencional, que deve ser acrescentada aos fatos; ou seja, só é possível na linguagem. Uma posição oposta à de Ed Wilson.

Searle - Vejamos esta posição. Mostrei que a sociedade só funciona se as pessoas podem criar razões para agir independentemente de seu desejo. A instituição da promessa é um bom exemplo. Ao prometer que encontraria você aqui em meu escritório, criei uma razão de agir que permanece autônoma do meu desejo. Engajo-me em algo que eu poderia não estar a fim de fazer.

Agora, a obrigação de manter uma promessa não deriva da instituição da promessa. A maior parte dos comentadores deste capítulo pensou que eu estava dizendo que as regras constitutivas da linguagem (por exemplo, o engajamento produzido pelo ato de prometer) engendram as obrigações. Não é isso: o agente individual, prometendo, cria intencionalmente uma situação em que vai ter que fazer alguma coisa independentemente do desejo. A obrigação (moral) de respeitar a promessa é outra coisa e não depende da instituição da linguagem.

Naquele escrito, o que me importava era que temos instituições linguísticas que permitem aos indivíduos em sociedade conectar sua vontade. Uma sociedade não poderia funcionar sem isso. Porque, sem isso, a única maneira de predizer o comportamento das pessoas seria tentar adivinhar o que desejam, e isso não levaria a lugar nenhum. Deve haver um sistema para que eles possam agir segundo uma razão que não depende do que eles estão a fim em um dado momento.

Folha - Então não é possível deduzir normas éticas da instituição da linguagem.

Searle - Não há nada na linguagem enquanto tal que garanta uma teoria em lugar de outra.

Folha - Talvez as questões propriamente éticas, em sua filosofia, dependam mais do que você chama de background _pano de fundo. Para explicitar este conceito, poderia situá-lo entre o que um antropólogo chamaria cultura e o que, na hermenêutica de Gadamer, seria o horizonte comum entre locutores? São conceitos que se sobrepõem?

Searle - De qualquer forma, a ética é um pântano. Não é tão ruim quanto o pós-modernismo, que é um desastre, mas é uma área fraca da filosofia. Quanto ao background, minha concepção é a seguinte: o uso da linguagem depende de pressuposições implícitas, ou seja, depende de capacidades gerais, disposições, maneiras de comportamento, práticas culturais. A significação literal da proposição articulada pode ser interpretada só por meio deste background. O background não é exatamente a mesma coisa que os antropólogos chamam de cultura, porque muitos elementos do background são transculturais.

Se você lê em um livro que "comiam carne", sabe que comiam carne pela boca, não pelos ouvidos, e esta não é uma questão de cultura, mas de pressupostos comuns de background _neste caso, biológico. Mas atenção: não devemos pensar o background como um sistema de crenças. É algo que se situa antes da crença, é um conjunto de posições diante do mundo. São disposições, capacidades que as pessoas têm no trato com o mundo.

Folha - De maneira recorrente em sua obra, aliás, você evoca o inconsciente freudiano e contesta a idéia de uma intencionalidade inconsciente. Ora, muitos psicanalistas contemporâneos (eu me incluo entre eles) na verdade situariam o inconsciente, para usar seus termos, no background. Ou seja, como representações, pressupostos ou implicações que são evocados, ativados pelos atos de palavra, mas que não estão presentes na consciência quando o ato é produzido.

Searle - Isto é interessante. A maneira como sempre interpretei Freud me mostrou que sua concepção do inconsciente era intencionalista, ou seja, concernia a crenças e desejos que as pessoas têm inconscientemente. Por isso, sempre pensei que meu ponto de vista era oposto ao de Freud.

Folha - Minha opinião é a de que a aparência de uma intencionalidade inconsciente é produzida a posteriori, pela interpretação. De fato, a intencionalidade é sempre consciente: o que acontece é que um background composto por memórias privadas, histórias de família, convenções sociais etc. intervém, atrapalhando o exercício intencional.

Searle - Mas isto não é o que diz o texto de 1915 sobre o inconsciente.

Folha - Concordo, mas Freud produziu no mínimo duas metapsicologias. De qualquer forma, me parece que é do lado daquilo que você chama de background que se explica a relevância de qualquer terapia pela palavra.

Searle - Certo. Parece-me, aliás, que muitas vezes o comportamento patológico das pessoas tem a ver não com alguma crença ou desejo inconscientes, mas com uma capacidade de background que é contraprodutiva, patológica. Folha - Você dizia que a linguagem como tal não carrega todas as complexidades de uma cultura (por exemplo, não implica as obrigações éticas), mas uma linguagem não deixa de representar uma cultura, pois as palavras valem como convenções sociais que são às vezes específicas da cultura que fala esta língua. Quais as consequências políticas disso, por exemplo, no que diz respeito ao debate entre integração ou preservação das diferenças culturais?

Searle - Duvido que a gente consiga obter uma derivação estrita de minha filosofia para questões de política. No entanto há implicações gerais, embora não de natureza estritamente lógica. Se estou com razão a propósito da construção da realidade social, que é uma questão de aceitação ou reconhecimento (coletivos) de uma sequência de funções simbólicas, então parece que uma sociedade vai funcionar melhor se não for centrífuga. Ou seja, em uma nação como os EUA, se o foco primário de lealdade de grupo estiver relacionado com a nação, e não com grupos subsidiários.

Estamos hoje em um momento em que tem sucesso uma coisa chamada multiculturalismo, isto é, a idéia de que é necessário haver lealdade entre grupos étnicos específicos, mais do que com a mais larga unidade nacional. Eu acho que isso é uma péssima notícia. Duvido que _especialmente em tempos de crise, como em caso de guerra_ um país como os Estados Unidos possa funcionar com focos de lealdade primária diferentes daqueles do Estado nacional.

Naturalmente, há uma outra questão: talvez a idéia de nação esteja acabando. Durante quase 700 anos as nações eram um foco primário da identificação de grupo. Talvez, com a unidade européia e com a concepção multiculturalista nos EUA, a nação-Estado esteja no fim. O problema é que até agora não temos estruturas institucionais para substituir a nação-Estado, nem organizações supranacionais (certamente, não as Nações Unidas), nem subsidiárias. Outra implicação de minha filosofia para a política.

Na "Construção da Realidade Social", mostrei que há realidades que são construídas socialmente, como dinheiro, governo, matrimônio etc.

Nos EUA há um caso muito interessante que não discuto no livro. A raça é largamente (embora não inteiramente) uma construção social. Não é uma questão de biologia. É evidente que, por não sabermos lidar com diferenças étnicas e raciais, fazemos de conta que são entidades biológicas, naturais, conquanto sejam construções sociais.

Folha - Qual é a sua visão da comunidade intelectual americana hoje?

Searle - Houve um desastre: o advento de uma facção de filosofia anti-racionalista conhecida como pós-modernismo: é uma espécie de favela intelectual. Se tivesse cem anos pela frente, entraria para fazer a limpeza.

Folha - Quais são os nomes?

Searle - Ok. Derrida, De Man. Não incluiria Foucault. Foucault era sobretudo um intelectual europeu tradicional que obedecia a um certo estilo francês. Mas incluiria o elemento radical do movimento feminista, as pessoas de filosofia da ciência que dizem que a ciência cria os fatos...

Pergunta - Kuhn faria parte disso?

Searle - Ele deu conforto e tranquilidade para essas pessoas, mas não faz parte disso.

Folha - Diria a mesma coisa sobre Rorty?

Searle - Um pouco mais. Rorty é um aliado deles, deu mais do que conforto. Acho que Richard não se sente muito bem na companhia de lésbicas radicais e desconstrucionistas, mas ele deve pensar que é uma maneira de atacar as coisas que ele quer atacar. Para ele, é uma aliança interessante. Diria que ele é um pós-moderno ambíguo, mas é definitivamente um aliado. Os pós-modernos são essencialmente uma coleção de anti-racionalistas e antiiluministas. Invadiram os departamentos de inglês, nos quais se passou a ler Derrida, Geoffrey Hartman, De Man... e nada de literatura.

Folha - Kuhn e Rorty certamente não compartilham sua posição realista em matéria de verdade. Mas não me parece que seja este o desastre. O desastre é que seus aliados desconstrucionistas se aproveitam disso para produzir uma descrição do mundo em termos exclusivamente ideológicos.

Searle - Certo, é o que acontece. Quando me criticam, não criticam meus pensamentos, dizem: "Searle usa metáforas masculinas". "Searle encontra uma aporia burguesa que o leva ao falo-fono-logo-centrismo...". Não se interessam pelo conhecimento, em como conseguimos dar conta do mundo e em como ele funciona. E, para mim, este é o sentido de uma vida intelectual.

(CONTARDO CALLIGARIS)

Autor: MARC RAGON 

A química do espírito

O autor de ''A Redescoberta da Mente'' diz que não distingue filosofia de ciência e que esse é um trabalho para burocratas

MARC RAGON

Do "Libération"

Russell, Moore, Wittgenstein, mas também Ryle, Austin, Ayer: desde o início do século, Cambridge e Oxford foram os pontos de partida de uma galáxia filosófica que ganhou forma e expandiu-se ao longo das décadas, desenhando múltiplas ramificações. Essa galáxia assumiu o nome de ''filosofia analítica'', e até os anos 80 a Europa continental contentou-se em registrar sua existência, sem na verdade procurar compreender sua teoria, limitando-se a constatar o fato de que tal filosofia arrogava-se o direito de ser precisamente ''análise''.

Ela veio ao mundo pelas mãos da linguística: o denominador comum das escolas analíticas é o estudo da linguagem, definida como suporte de uma análise do espírito. A linguagem é uma noção que não abrange apenas a prática de uma língua, o sentido de uma frase, o significado de uma palavra, a expressão de um enunciado, a verdade de uma afirmação, mas também tanto a linguagem comum (centro dos interesses de Austin) quanto uma lógica dos signos: a filosofia analítica fará nascer o estudo do pensamento por intermédio da linguagem do computador, e este servirá de metáfora do funcionamento do cérebro, o qual, por sua vez, se tornará a realidade material do pensamento. No interior desse círculo, surgiram inúmeras definições possíveis e por vezes imprudentes do espírito.

John Roger Searle, 65, professor de ''filosofia do espírito e da linguagem'' em Berkeley (Califórnia), lança um olhar crítico sobre tais resultados numa de suas últimas obras, ''A Redescoberta da Mente'' (recém-lançado no Brasil pela Ed. Martins Fontes).

Searle nasceu em Denver (Colorado) e estudou em Oxford, onde foi aluno de Austin e defendeu sua tese de doutorado. Isso foi em 1959, quando tinha 27 anos, e seu tema era ''On Sense and Reference'' (Sentido e Referência). Em seguida mudou-se para a Califórnia, onde leciona desde então em Berkeley. Foi professor visitante em diversas universidades (Noruega, Brasil e outros países da Europa), proferiu conferências no Collège de France, em Paris, e realizou várias palestras em Roma.

Em ''A Redescoberta da Mente'', Searle não se despoja do estilo claro e coloquial que sempre o distinguiu dos outros filósofos analíticos e que confere a algumas de suas propostas a impressão de uma jovial insolência, acentuada pelo hábito irreprimível de interpelar seus colegas contemporâneos para denunciar-lhes os sofismas e as contradições. A tal impressão de insolência corresponde uma crítica cuja audácia, esta sim, é bastante real: segundo Searle, as correntes filosóficas americanas atualmente em moda, que gravitam ao redor da tradição analítica e se pretendem categoricamente emancipadas da filosofia clássica e européia, não passariam na verdade de herdeiras da filosofia cartesiana.

''Como explicar a grande variedade a que nos convida nossa vida mental _dores, desejos, prazeres, pensamentos, experiências visuais, crenças, gostos, odores, ansiedade, medo, amor, ódio, depressão e alegria?'' As diversas disciplinas de renome no mundo da filosofia inglesa não teriam sido capazes de encontrar uma ontologia satisfatória do espírito, suscetível de fornecer uma resposta a esse tipo de questões.

Tais disciplinas revelam uma visão radicalmente dualista e reproduzem o mesmo preconceito de Descartes _ou seja, a impossibilidade de se conhecer os fenômenos da consciência_, dissimulado sob diversas roupagens: o ''materialismo eliminacionista'', que supõe ''a inexistência dos estados mentais''; a teoria segundo a qual ''a psicologia popular é falsa''; a idéia de que ''os pretensos estados mentais não possuem nada de especificamente mental''; o princípio que estabelece uma estrita equivalência entre o computador e o pensamento; o ponto de vista segundo o qual ''o vocabulário mental não passa de uma maneira de falar''; enfim, a concepção que supõe ''a inexistência absoluta'' da consciência.

Essa enumeração abarca todo o campo da filosofia anglo-saxã, incluindo os cognitivistas, a linguística de Chomsky, a epistemologia de Feyerabend e Rorty, os pesquisadores da inteligência artificial como Daniel Dennet, os ''filósofos do espírito'' (Churchland, Gardner, Minsky ou Fodor) e demais filósofos analíticos de renome, como Thomas Nagel, Hilary Putnam ou Stich.

Além de afirmar a impossibilidade de se conhecer a consciência, numerosas correntes da filosofia analítica desenvolveram uma concepção ''materialista'', assimilando a consciência tanto ao computador quanto ao funcionamento dos neurônios, o que resulta na negação de sua existência: em vez de se perguntarem em que aspecto um fenômeno consciente não constitui uma realidade não-consciente, tais correntes investigam como é possível saber se os sistemas inteligentes podem ser compostos de matéria não-inteligente.

Searle replica: ''Para mim, minha dor, em seu estado presente, é uma característica de meu cérebro, de nível superior''. A consciência da dor é uma realidade necessariamente subjetiva e não objetiva (''minha'' dor); é uma consciência temporal (''em seu estado presente'') e portanto não uma entidade fixa, pertencente a um mundo imóvel; é, enfim, uma característica de meu cérebro, isto é, uma propriedade causada por ele, mas que não se reduz a ele (''de nível superior'').

As opiniões de Searle abrem brechas na torre de marfim da filosofia anglo-saxã, na qual os fundadores da filosofia não são os gregos da Antiguidade, mas um trio contemporâneo do começo do século _Frege, Russell e Wittgenstein: a filosofia analítica seria uma ''ciência'' cujo acesso está condicionado à aceitação de que não existe outra filosofia digna desse nome, seja ela batizada de fenomenologia, existencialismo, estruturalismo, hermenêutica etc.; ela seria definida, além do mais, como a única fonte de um saber autêntico sobre a língua e a linguagem, relegando a linguística a uma posição ancilar; ela obedeceria, enfim, a procedimentos essencialmente técnicos que isolam a língua e sua prática de qualquer ''impureza'' de ordem psicológica, sociológica, etnológica ou mesmo política e ideológica.

A entrevista que segue mostra, no entanto, que John Searle não está ''no ventre do monstro para poder assim matá-lo com mais facilidade''. Para ele, pelo contrário, a filosofia analítica tem um belo futuro pela frente: se a seus olhos ela merece uma crítica ferrenha, isso ocorre porque nela ele reconhece o único caminho possível para uma filosofia que seja autenticamente ''atual'' e ''universal'' _desde que ela saiba tirar lições dos progressos da ciência e de seus próprios vícios históricos relacionados à sua natureza e a seu objeto.

*

Pergunta - A filosofia analítica dá uma definição de espírito muito mecanicista, contra a qual o sr. se mostra particularmente hostil.

John Searle - Sim, na minha opinião deve haver um fosso entre as causas da ação e a escolha propriamente dita. De outro modo, jamais poderíamos dar um sentido a nossas vidas. Isso se torna claro com um exemplo dos mais banais: você entra num restaurante, olha o cardápio e vê que há contra-filé e rim de vitela. Você tem de escolher. É impossível dizer: ''Sou movido por uma lógica prévia, portanto posso esperar e ver o que escolherei''. É preciso escolher e para isso se deve agir.

Pergunta - O exemplo que acaba de dar é de fato banal, e esta é uma prática difundida entre os filósofos analíticos. Ora, as questões de que se ocupam os filósofos não devem ser mais ''importantes'', de ordem moral ou filosófica?

Searle - De minha parte, considero que a filosofia deve explicar a vida cotidiana. Não é necessário falar sempre do ''homem pós-industrial na situação do capitalismo tardio''. Devemos ser capazes de descrever situações tais como ''tomar uma cerveja'' ou ''andar a pé''. Do meu ponto de vista, o campo da filosofia abrange tudo, mas deve começar pela vida cotidiana, a de qualquer pessoa.

Pergunta - Mas o que distingue então a filosofia da ciência?

Searle - Eu não faço essa distinção. Para mim, existe apenas o conhecimento. A maioria das questões que me interessam corresponde ao que os diretores da universidade afirmam ser filosóficas, mas fazer uma distinção entre filosofia e ciência é o trabalho dos burocratas, e isso não me diz respeito. Mas, no fundo, as questões que me interessam _como o livre-arbítrio, o conceito de espírito, a relação entre o espírito e o cérebro_ são questões que se consideram tradicionalmente como filosóficas.

Pergunta - Em ''A Redescoberta da Mente'', o sr. analisa entretanto a relação entre o cérebro e o espírito em termos bastante clássicos e familiares ao espírito europeu, uma vez que a referência básica é Descartes.

Searle - Meu objetivo é abandonar as categorias tradicionais da alma e do corpo. Procuro ver a consciência como um fenômeno biológico natural. E isso significa justamente esquecer e superar Descartes e toda a tradição histórica que veicula a idéia de que existe algo exterior ao mundo natural. Toda explicação psicológica e da intencionalidade está baseada na consciência.

A consciência concebida como um fenômeno biológico é a melhor maneira de se estudar o espírito. Ela serve como uma base que me permite criticar os modelos contemporâneos da ciência cognitiva. A ciência cognitiva contemporânea considera que a explicação básica da consciência repousa sobre elementos inconscientes. O modelo básico de explicação é a existência de processos inconscientes que não são acessíveis nem à consciência nem à neurobiologia.

O conjunto dos modelos de explicação que encontramos em Chomsky ou em qualquer modelo da ciência cognitiva parece-me incoerente, pois postula um nível de inconsciência que é por princípio inacessível à consciência. Demonstro nesse livro a incoerência dessas teorias pelo fato de a referência básica ser tanto o cérebro quanto a consciência _que afinal é uma propriedade do cérebro. Não me refiro ao inconsciente freudiano, pois no caso da psicanálise o inconsciente é acessível à consciência. Mas, no caso de Chomsky e de outros, trata-se de uma inconsciência situada entre o nível da consciência e o do cérebro: entre os dois, em suma, existe um grande zoológico no qual há modelos mentais, uma gramática universal, a linguagem do pensamento etc.

Meu argumento é que isso não existe, que não há jardim zoológico algum entre o cérebro e a consciência. Proponho, pelo contrário, uma descrição da consciência que está mais próxima da teoria de Darwin: o cérebro desenvolve-se em Searle às necessidades da intencionalidade, sem postular necessariamente um mecanismo inconsciente no cérebro.

Pergunta - O sr. atribui a origem desse dualismo entre o cérebro e o espírito a Descartes. Mas como o sr. definiria tal relação?

Searle - A relação entre o espírito e o cérebro é causal. Quando me belisco, são transmissões químicas que chegam a meu cérebro e fazem com que tenha a sensação de dor. Mas do começo ao fim há uma relação causal, e é isso o que oponho à concepção cartesiana. Tenho dois slogans: o cérebro é a causa do espírito, e o espírito é uma característica do cérebro.

Pergunta - Mas o conhecimento atual do cérebro é provisório e, portanto, o conhecimento de um espírito inteiramente determinado pelo cérebro parece discutível.

Searle - É verdade. Encontramo-nos sempre dentro de uma dada situação histórica. Na situação em que me encontro, o único funcionamento que pode servir-me como modelo de explicação é o dos neurônios e das sinapses. Mas teremos revoluções na neurobiologia. O modelo das sinapses e dos neurônios talvez seja substituído por um modelo que se concentre em elementos menores da anatomia do cérebro, mas é possível também que o modelo em questão abranja um sistema maior, que dê conta do conjunto das células. Estou muito interessado nessas questões. Mas quero ressaltar que se busca um modelo de explicação causal. O cérebro causa os estados da consciência. E isso mesmo se, atualmente, ainda estivermos muito longe de saber exatamente como o cérebro funciona.

Pergunta - Esse novo conhecimento do espírito contribui para retirar o poder das descobertas da psicologia. Não se arrisca com isso eliminar a própria idéia de que um espírito possa encontrar-se ''doente'' e desenvolver o conhecimento de um homem abstrato, já que situado em condições sistematicamente ''normais''?

Searle - Acredito que não. Quanto mais aprendermos sobre o fundamento do cérebro, melhor será nossa capacidade de explicar as diferentes formas de patologia mental. A esquizofrenia é um bom exemplo: ela era tomada como um fenômeno puramente mental, mas sabemos agora que corresponde a uma disfunção neurobiológica. Todo o conhecimento freudiano do espírito está fadado a ser superado por um conhecimento mais profundo do funcionamento e das disfunções do cérebro. Dispomos hoje em dia de uma farmacologia relativamente rica que nos permite tratar de doenças como a neurastenia etc.

Pergunta - Como o sr. vê a relação do filósofo com a vida social e política?

Searle - Acredito que o filósofo é uma pessoa mais informada do que os outros cidadãos, mas, se observarmos a história da participação política dos filósofos, veremos que não se trata de uma história feita apenas de alegrias. Houve certamente episódios positivos, como a luta contra a guerra do Vietnã nas universidades americanas. Como indivíduos educados, os intelectuais têm a obrigação de informar as pessoas. É portanto uma das tarefas do intelectual agir como crítico social, como informador das realidades que não são necessariamente visíveis na superfície das coisas. Existe uma responsabilidade intelectual, mas é somente a responsabilidade de um cidadão beneficiado por uma instrução superior à média.

Pergunta - O sr. termina seu livro ''Do Cérebro Ao Saber'' com uma evocação do livre-arbítrio. É um tema que parece introduzir a noção da subjetividade, mas depois disso o sr. não voltou a tocar no assunto.

Searle - De fato, mas deverei retomar esse conceito no livro que estou escrevendo sobre a racionalidade. Parece-me necessário que nosso conceito de racionalidade inclua o de liberdade. Sem a noção de liberdade, é impossível que nos compreendamos como seres racionais. De outro modo, a racionalidade não seria capaz de estabelecer diferenças. A diferença supõe a liberdade de escolha. A adequação da racionalidade e do livre-arbítrio é uma questão difícil, mas indispensável para superar a visão mecanicista do espírito, que predomina até hoje na filosofia analítica. 

Tradução de José Marcos Macedo. 
 
 

Tradução Arturo Fatturi <mailto:arturof@terra.com.br>

Reason Magazine, February, 2000.

Princípios da Realidade: Entrevista com John Searle.

Entrevistado por Edward Feser e Steven Postrel.

Num cenário intelectual onde são muitos os críticos da busca Iluminista por uma compreensão coerente da forma como o mundo funciona, o filósofo John Searle assume o papel de defensor dos métodos iluministas. Como professor de Filosofia da Universidade da Califórnia-Berkeley e autor de 10 livros, ele investe sobre grandes questões: a natureza da realidade, o problema mente/corpo, a natureza da consciência, nos quais vê a continuidade do programa científico e cultural do Iluminismo.

Nesta trajetória, Searle tornou-se uma voz de liderança nos debates sobre a possibilidade da Inteligência Artificial (AI). Dentre todos os pesquisadores da AI, ele é o mais famoso e controverso, já que seu experimento mental, denominado "sala chinesa", ataca a idéia de que a inteligência seja apenas "computação rápida".

Philosophy in the Real World, subtítulo de seu mais recente livro Mind,Language and Society (1998), captura dois aspectos importantes da obra de Searle: primeiramente ele concentra suas rigorosas explorações filosóficas sobre nosso senso comum de como o "mundo real" funciona. Searle crê que a "boa" indagação filosófica, principia pela cuidadosa atenção às nossas experiências diárias ( tais como a fala) e o estranhamento das mesmas. "Devemos começar por aproximarmo-nos do problema como se fossemos novatos", diz ele. "Temos de nos deixar ficar atônitos por atos que qualquer pessoa sâ tomaria como garantidos".

Segundo, Searle crê que o mundo é, de fato, real, não um mero constructo de textos e jogos de palavras, e que somos capazes de compreender o mundo real - posição filosófica conhecida como "realismo metafísico". Ele é famoso como rigoroso defensor da Razão, Objetividade e dos padrões da academia. Em 1977 engajou-se num tempestuoso debate, altamente noticiado e divulgado, sobre a incoerência lógica do Desconstrucionismo, com o crítico francês Jacques Derrida.

Searle, de 67 anos, se diz não particularmente político, preferindo a vida intelectual: "É mais gratificante. No fim das contas é mais satisfatória que a vida política". Mas, suas convicções intelectuais tem gerado, periodicamente, alguma controvérsia política. Como graduando da Universidade de Wisconsin ele foi membro atuante do comitê Students Against McCarthy, grupo de estudantes que se opunha ao senador por Wisconsin Joeph McCarthy e seu Comitê para Assuntos Não-Americanos (Un-Americam Activities Commitee). Searle abandonou Wisconsin aos 19 anos para estudar em Oxford como Rhodes Scholar, retornando aos EUA em 1959 ano que entrou em Berkeley.

Como ardoroso patrocinador do movimento pela Livre Expressão (Free Speech Movement) na Berkeley dos anos 60, ele esta hoje preocupado com a erosão da livre expressão, da liberdade de investigação e com os padrões dos Colleges e campus universitários.

Searle foi entrevistado em novembro no seu gabinete de Berkeley por Edward Feser (star3brn@1stnetusa.com) que leciona Filosofia na Loyola Marymout University em Los Angeles e por Steven Postrel, economista e professor de estratégias negociais na California Univesity em Irvine. Na ocasião da entrevista, Searle estava com o braço numa tipóia devido a um acidente doméstico que ele, como aficcionado esquiador, achou melhor não relatar, tendo em vista outro acidente, em que sofreu fratura-exposta ao cair de esqui. O gabinete de Searle era um azáfama de atividade entre pesquisadores assistentes e estudantes indo e vindo.

Reason: Em seu livro Mind, Language and Society você diz que irá defender a "visão Iluminista". Como definiria esta visão e por qual razão ela necessitaria de defesa?

Searle: Durante os primeiros anos do século 18, mas que talvez remonte a tempos mais antigos da história, havia um movimento, principalmente na Europa Ocidental, que propôs eliminar vários tipos de superstições. As partes que acredito serem as mais impressivas desta "visão iluminista" são as que dizem respeito ao ater-se à verdade científica e o avanço dos Direitos Humanos e do Governo Democrático. Tais ideias trouxeram enormes possibilidades para o progresso do ser humano. A despeito de alguns retrocessos, algumas coisas daquelas, de fato, aconteceram.

Nesta década passada, surgiu um movimento, algumas vezes descrito como "Pós-Moderno". Não há, de fato, um a palavra simples para descrevê-lo mas a expressão "pós-moderno", é a que as pessoas (envolvidas no movimento) tipicamente aceitam. Sob vários aspectos, os participantes deste movimento vêem-se como desafiando as idéias da visão iluminista de que há uma realidade independente que existe, que podemos ter uma linguagem que se refira, de forma clara e inteligível, a elementos desta mesma realidade e que, juntamente a isto, nós podemos obter alguma verdade objetiva desta realidade.

Estas pessoas levam adiante a idéia de que aquilo que pensamos ser a realidade é, de fato, um costructo social, ou de que há um desígnio de oprimir as pessoas marginalizadas no mundo - pessoas de países coloniais, mulheres, mminorias raciais. Eles tomam a Razão e a Verdade como uma espécie de jogo de poder. Tais pessoas desejam mais liberalidade - rejeitando a visão racionalista.

Reason: Uma versão do "pós-moderno" que você discute é "relativismo" e fica claro por seu livro, que você vê estes argumentos como muito ruins.

Searle: Penso que tais argumentos são terríveis.

Reason: Como caracterizaria tais argumentos e o que vê de errado neles?

Searle: Existem muitos argumentos como estes. O que mais afeta as pessoas atualmente é o perspectivismo (perspectivalism). A idéia de que nós nunca temos acesso imediato à realidade, esta é sempre mediada por nossas perspectivas. Nós temos uma certa perspectiva sobre o mundo, temos certa posição social, certos interesses que articulamos e, é apenas em relação a tais perspectivas, que poderemos ter conhecimento do mundo e da realidade. E o argumento prossegue: por ser perspectivo, o conhecimento da realidade não pode ser chamado objetivo e válido. Não se segue deste conhecimento, o como as coisas são. Ë um péssimo argumento. E existe, naquela visão pós-moderna, uma grande quantidade destes.

Reason: Você debateu com Richard Rorty e Jacques Derrida. Estariam eles construindo péssimos argumentos ou são vítimas de uma desleitura?

Searle: Com Derrida você não pode ter uma desleitura: ele é obscuro demais. Toda vez que você diz: "ele disse isto e isto", ele retruca "você não me compreendeu". Mas se você se esforçar para chegar a uma interpretação correta, isto não será tão simples. Uma vez eu disse isto à Michel Foucault, que era muito mais hostil para com Derrida que eu. Foucault disse que Derrida praticava o método do Obscurantismo Terrorista. Eu disse "Mas que diabos você quer dizer com isto?". Ele disse: Ele escreve de forma tão obscura que você não consegue saber o que ele está pretendendo dizer", esta é a parte obscura. Então você o critica e ele sempre diz "Você não me compreendeu. É um idiota." Esta é a parte do terrorismo. Eu gostei disto, e quando escrevi um artigo sobre Derrida, perguntei ao Michel se poderia citar esta passagem, e ele concordou.

Foucault estava frequentemente de má vontade com Derrida. Embora isto não faça justiça com a figura de Foucault. Em todo caso ele é um intelectual de calibre diferente de Derrida.

Eu separo a visão de Richard Rorty disto tudo. Conversei mais com ele e ele tem clareza absoluta na argumentação. O que Rorty poderia dizer é que ele, de fato, não nega a existência de um mundo exterior. Ele pensa que ninguém pode negar isto. O que Rorty diz é que nós nunca temos conhecimento objetivo desta realidade. Temos de adotar uma posição mais pragmatica e pensar que, o que nós chamamos "verdade", é aquilo que é util crer. Desta forma, não podemos pensar que nós próprios responderíamos por uma realidade independente, que existisse, ainda que ele possa não negar que tal coisa exista.

O problema com estes caras é que, uma vez que você me dê a primeira premissa, que existe uma realidade que é totalmente independente de nós - então os outros passos se seguem naturalmente. Passo 1: o realismo externo; você tem um mundo real, que existe independentemente dos seres humanos. Passo 2: as palavras de nossa linguagem podem ser usadas para se referir a objetos e estados de coisas desta realidade exterior. Passo 3: se 1 e 2 estão corretos, então, algumas daquelas palavras podem estabelecer verdades objetivas a respeito daquela realidade.. Passo 4: nós podemos ter conhecimento objetivo a respeito daquela verdade. Em algum ponto desta argumentação eles resistem, pois do contrário, você tem esta objetividade do conhecimento e da verdade, sobre a qual o Iluminismo repousa. Isto é o que eles querem rejeitar.

Reason: Você continua seu próprio programa Iluminista para tentar resolver aquilo que lhe parece problemas não resolvidos desta tradição. Poderia descrever como se envolveu neste projeto?

Searle: Meu primeiro interesse não era travar esta batalha lunática. A tentativa principal de meu trabalho filosófico é construtiva.

Meu ponto de partida é a linguagem: Como a linguagem se relaciona com a realidade? As pessoas podem dizer: "Você disse algo verdadeiro ou falso, relevante ou irrelevante, inteligente ou estúpido" - este é o fato que se deve observar. No estilo da filosofia, devemos ficar atônitos pelo que as pessoas sãs tomam como garantido, nomeadamente: que mexendo e batendo com este buraco que tenho no rosto e fazendo barulhos, posso dar aula, propor uma tese, convencer pessoas, e todas as outras coisas que você pode fazer com a linguagem.

Assim, escrevi meu primeiro livro sobre isto. Disse lá, que falar uma linguagem é fazer uma performance com certos tipos de atos de fala de acordo com regras, e estipulei as regras pelas quais fazemos afirmações, comandos, promessas, ameaças, juramentos, comprometimentos e todo o resto.

Meus dois primeiros livros foram sobre isto: atos de fala. Enquanto escrevia estes livros eu falava sobre crenças, desejos, atos intensionais e que estes eram como pedir dinheiro emprestado a um um banco. Se você for usar as notas que lhe foram emprestadas, terá de pagá-las de volta.

Em algum ponto, você deve sentar e pensar: o que, com os diabos, é crença? O que é uma intensão? O que é um desejo?

Assim, escrevi outro livro e foi o mais difícil que até agora já escrevi: Intentionallity. Tomou-me quase 10 anos para escrevê-lo. Coloquei tudo isto lá: quais são os fundamentos da linguagem, nas operações da mente? Pois a significatividade é uma característica biológica fundamental da mente.

Intencionalidade não quer dizer apenas "tender para", mas significa qualquer maneira que a mente possui para se referir a objetos e estados de coisas no mundo. Assim, não apenas o "tender para" é intensional, mas também o crer, desejar, almejar, recear - todos estes são intensionais, neste sentido filosófico.

Parte do divertimento nesta profissão, é que você soluciona um problema lança mais três. Um dos problemas que minha argumentação abriu foi: como a mente fixa-se no mundo real? Como pode a mente fazer parte do mundo real? Este é o tradicional problema mente/corpo.

Assim, escrevi mais dois livros a respeito disto, no curso deste trabalho descobri que havia esta nova ciência, que designarei como parte da "Ciência Cognitiva". Esta foi uma grande coisa, pois a ciência cognitiva estava superando o Behaviorismo, que por muito tempo foi uma ortodoxia na Psicologia.

Reason: O que você quer dizer com Behaviorismo?

Searle: Era a idéia de que quando você faz um estudo científico da mente, não deve tentar buscar algo que esteja dentro da mente, para figurar o que ocorre, você apenas estuda o comportamento.

Reason: Inputs e Outputs?

Searle: Inputs e Outputs. A ciência da Psicologia, no modelo Behaviorista, era correlacionar estes inputs/estímulos aos outputs/respostas. É uma concepção ridícula do que seja a mente - a idéia de que não ocorre nada na mesma, a não ser que você tenha estímulos como inputs e comportamentos como outputs. O melhor comentário a respeito do Behaviorismo, é aquela velha estória sobre o casal Behaviorista após o sexo. Ele pergunta para ela: "Foi bom para você. E como foi para mim?"(Risos). Se o Behaviorismo estivesse certo, esta estória poderia perfeitamente fazer sentido, pois não havia nada acontecendo para o sujeito naquele momento, ela estaria em melhor situação para observar o comportamento dele, muito mais que ele próprio.

Ok, eu pensei então,. estamos superando o Behaviorismo. Esta é grande. Vamos possuir uma ciência da mente que tenha acesso a ao interior do cérebro. O que eu descobri, é que todas as pessoas na AI, acreditavam que a mente fosse algo como um programa de computador. Então travei um grande debate com eles Esta é a razão pela qual introduzi aquele argumento denominado "sala chinesa"(Chinese Room). Imaginei a mim mesmo levando a cabo e fazendo funcionar este programa, com alguma capacidade cognitiva que eu não possuía. Estava fechado numa sala, fazendo um arranjo de símbolos chineses de acordo com o programa. Agora, no meu experimento mental, vejo que forneci respostas, em chinês que são tão boas quanto um falante do chinês poderia fornecer. Mas eu não compreendo chinês, sou apenas um computador. Se eu não compreendo chinês por ser um computador, tampouco o pode qualquer outro computador. Apenas fazer o program funcionar não é suficiente para a mente.

Tive muitos debates a respeito disto, e ainda continuam. Está sendo preparado um livro sobre os 20 anos de "sala chinesa".

Reason: Você já está cansado deste argumento, não é?

Searle: Para dizer a verdade já estou ficando chateado com isto.(...).

Reason: As pessoas continuam aduzindo novos argumentos ou se tornou um debate ritualizado, tal como o do controle de armas de fogo ou sobre o aborto?

Searle: Já estou familiarizado com a maioria dos movimentos (sobre o argumento). Algumas vezes você encontra alguma esperteza neles. Um movimento comum é o de dizer: "Bem, você não conhece chinês; é a sala toda que conhece". Este não é bom, pois a razão pela qual não conheço chinês é que não sei o que as palavras significam. Mas então, tampouco, a sala toda pode saber. A sala não tem qualquer maneira de sair da sintaxe do chinês e passar para a semântica do mesmo. Você pode ver isto ao imaginar que posso me livrar da sala e fazer tudo isto com minha própria cabeça: memorizar as regras, memorizar a caixa com os símbolos e fazer toda operação em minha própria cabeça, memorizar o programa todo, em fim. Mas mesmo assim, não compreendo chinês, pois não tenho uma saída da sintaxe, dos símbolos formais, para o que eles significam.

Eu disse antes, parte do prazer desta profissão é que quando você consegue solucionar uma questão, logo se vê as voltas com várias outras. Há uma questão que sempre me amolou, que é: como pode haver uma realidade objetiva que é real apenas por que nós pensamos que é real? Tome o dinheiro, por exemplo. Quero dizer, é apenas um pedaço de papel. Mas funciona As pessoas não dizem: "Bem, você pode pensar que é dinheiro, mas nós não".

Eles aceitam isto, e funciona. E o que vale para o caso do dinheiro, vale para as universidades, propriedade, casamento, jornais, entrevistas, linguagem em geral. Incluindo coquetéis, posses e toda uma série de coisas que são construídas socialmente - são criações sociais. Escrevi um livro sobre como isto funciona: como pode a mente de um indivíduo cooperando com outras mentes individuais, criar uma realidade social que, por sua vez, pode ter existência objetiva? Pois, mesmo que eu pare de acreditar que tal pedaço de papel seja dinheiro, ele ainda mantém um status institucionalizado, logo, ainda é dinheiro.

Mais ainda: há uma série de problemas que foram deixados para trás. Neste momento estou escrevendo um livro sobre a racionalidade. Mas, ainda há um senão: o que faz com que o comportamento seja racional ou irracional? Qual é a estrutura lógica do processo de racionalização que resulta numa decisão racional? Que tipo de estrutura pode fazer isto? Esta é uma questão difícil. Penso que, muitas das elaborações que até agora possuímos sobre isto na Teoria da Ação ou da Decisão são, realmente, inadequadas.

Reason: Então você principiou pela linguagem, depois a mente, a sociedade, um conjunto todo de grandes questões. Há um relacionamento entre linguagem, mente e sociedade, assim por diante e que é inextricável?

Searle: Se a sua teoria não é coerente, não é uma boa teoria. Agora, tomo uma figuração total. O mundo é composto por entidades que nós usamos chamar, convenientemente, de partículas. É isto, há apenas partículas ou campos de força. Tudo o mais é consequência, ou organização ou efeito destas partículas.

Algumas desta partículas se organizaram em sistemas, alguns destes sistemas são feitos, em larga medida, por átomos de carbono-base; alguns destes sistemas de carbono-base, especialmente aqueles com grande quantidade de hidrogênio, nitrogênio e oxigênio, envolveram-se nos sistemas orgânicos. Alguns deste sistemas orgânicos, estão vivos e aqueles que estão sob o processo de seleção que ocorre a séculos, por longos períodos de tempo, transformaram-se em organismos viventes.

Alguns destes organismos viventes possuem neurônios e, alguns destes, vieram a possuir consciência e intencionalidade. É aqui que eu chego. Não tenho nada a dizer sobre as outras coisas. Todas, desde o nível mecânico ou quântico, até a Biologia evolucionista, relego para os manuais de graduação . Eu começo quando chegamos aos sistemas que possuem intencionalidade e consciência.

Então, me afigura que você chega a uma quantidade de questões fascinantes e, é nisto que estou interessado. Como a intencionalidade e a consciência funcionam no cérebro? Como podem elas funcionar logicamente? Como um organismo se relaciona com a intencionalidade e consciência de outros organismos? Como você tem a estrutura da linguagem? Como a linguagem lhe dá a base para o resto da sociedade?

Isto, eu creio, é uma continuação projeto Iluminista. Necessitamos de uma abordagem unificada de nosso conhecimento e creio que vamos ter isto.

Reason: Ainda que a forma d aproximar-se disto seja diferente, a intenção não é parecida com a de E.O.Wilson, que tenta unificar todo conhecimento numa só estrutura?

Searle: Certo. Não concordo com alguns detalhes , mas ele é alguém que, certamente, posso compartilhar meus objetivos.

Reason: Você quer dizer que a mesma unidade pode ser verdadeira de fatos e valores? Ou você mais Humeano?

Searle: O que estou fazendo agora em meu livro, é tentar mostrar que não devemos pensar em termos de uma dicotomia ética/ciência. Temos de pensar que o que chamamos ética, é um campo do raciocínio prático - como organismos intencionais e conscientes, raciocinam sobre o que fazer, especialmente se tais organismos possuem linguagem. Se você pensar nisto, desta forma, então a dicotomia tradicional ente ética e ciência parece irrelevante.

Não estou atacando de frente problemas filosóficos tradicionais, pois penso que isto não nos levaria a lugar algum. Tento mostrar que há uma forma diferente de olhar para estes debates entre individual e coletivo, sobre a relação entre Biologia e Cultura e a relação entre Mente e Corpo. Se você olhar para eles a partir desta diferente maneira de ver então, me parece, que poderá ter resultados diferentes e capazes de serem verdadeiros.

Isto nos conduz para a filosofia política. Me parece que não temos o que eu chamaria de filosofia política de uma distância média. Deixe-me dar-lhe um exemplo. Me parece que o evento social mais importante do século 20, é a falência do Socialismo. Este é um fenômeno assombroso quando você para pensar nisto, pois nos anos centrais deste século, pessoas inteligente e sagazes pensavam que não havia forma de o capitalismo sobreviver. Quando era estudante em Oxford, nos anos 50, a visão convencional era de que o capitalismo, por ser burro e ineficiente, pr não haver uma inteligência central que o controlasse não teria futuro na competição com uma economia inteligentemente planificada.

É bem difícil hoje perceber o quanto tal visão estava presente na obra de intelectuais sérios de então. Pessoas muito inteligentes pensavam que o capitalismo, alongo prazo, estava condenado, e que nosso futuro seria um tipo de Socialismo. Alguns acreditavam que seria um tipo de socialismo Marxista, outros que estávamos no caminho de um socialismo democrático, mas de uma forma ou de outra, seria algum tipo de socialismo.

Onde está isto hoje? Está morto. Ainda que os partidos socialistas da Europa mantenham seus nomes, estão adotando várias versões do capitalismo do estado de bem-estar social. Eu gostaria de ver uma análise inteligente disto, mas não encontro.

Reason: Você quer dizer, por quê as pessoas acreditavam nisto?

Searle: Por que isto faliu!! Por que tal visão morreu tão espetacularmente? Creio que não temos o aparato conceitual necessário para dar uma resposta a tal questão. Creio que necessitamos de um melhoramento conceitual e isto ocorrerá de forma gradual. Poderá ser como as contribuições de Weber e Marx, quando introduziram noções como racionalização, carisma e o resto.

Reason: Nesta trajetória, você escreveu um artigo para um jornal alemão em que dizia que o livro de Friederich v. Hayek The Road to Serfdom ( Caminho Para a Servidão), era o livro do século.

Searle: Tal como todos os estudantes de graduação de minha época, quando o livro de Hayek apareceu, percebi que era tratado como ridículo. Lembro-me de um professor de economia dizendo "Hayek é o último dos moicanos da economia clássica. Ele é o único que restou e que mantém esta visão,e que ao longo prazo será refutada". Como resultado, não li o livro enquanto era estudante. Mas muitos anos depois quando li, me pareceu um livro notável por ter sido escrito em 1944. É um tipo de livro profético.

Se agora estamos falando da queda do socialismo, uma grande quantidade de questões estão ligadas exatamente, com aquilo que Hayek previa. Seria interessante alguém analisar de forma acadêmica até que ponto ele estava correto, isto é, que não haveria ponto médio para o socialismo democrático, que este entraria em colapso gerando várias formas de opressão, que mesmo o grupo dos bem-intencionados da burocracia socialista terminariam por causar efeitos calamitosos.

Assim, esta prestigiosa revista alemã - de fato um semanário, Die Zeit - me perguntou qual seria o livro do século. De fato há uma quantidade de livros que eu admiro, mas muitos já haviam sido escolhidos por outros convidados da revista, os quais não pude escolher o Ulisses de Joyce, por exemplo. Assim, escolhi o livro de Hayek, The Road to Serfdom e escrevi um artigo sobre as razões pelas quais eu acreditava que aquele era o livro do século, certamente que entre vários outros livros.

Reason: E qual foi a resposta que o artigo obteve?

Searle: Recebi uma boa quantidade de cartas bem simpáticas. Alguns amigos meus, que lêem alemão, ficaram impressionados e concordaram comigo que Hayek havia apercebido as limitações do Socialismo.

Reason: A maré ficou favorável a ele.

Searle: Creio que sim.

Reason: Mesmo entre os acadêmicos?

Searle: Sim. Creio que tornou-se mais respeitável. Agora, eu não conheço a obra dele detalhadamente, a ponto de fazer uma avaliação competente da mesma. Creio que ele superestimou algumas de suas observações. Ele diz, por exemplo, não em Road To Serfdom, mas em algum outro lugar, "Se há uma mensagem que eu gostaria de deixar é a de que não há algo como justiça social". Que a justiça é algo que acontece sempre em nível individual. Você pode fazer alguma injustiça para mim, ou pode ter uma decisão injusta fora das cortes de julgamento, mas a idéia de que há uma coisa chamada "justiça" ao nível da sociedade, ele negaria. Não estou tão certo se ele deveria rejeitar isto.

Gostaria de pensar que há mais alguma coisa nisto, pois penso que a idéia de que existem formas de organização social mais justas ou injustas, segue-se da minha visão de realidade social - que você pode criar instituições sociais que são injustas. Se você tem iniqüidades massivas que se ossificam, teria duvidas sobre a possibilidade de haver justiça. Mas o ponto de Hayek era de que as iniqüidades do sistema de mercado livre, não eram em si mesmas injustas. E eu concordo que aí está um ponto relevante.

Uma coisa boa sobre Hayek é que ele explode com a fala fácil sobre justiça social e injustiça social. Se você pretende falar sobre ganhos de justiça social na realidade, é bom saber exatamente do que está falando.

Reason: No fim das contas, alguns aspectos de seu trabalho recente, tal como seu livro sobre a construção social da realidade, fazem paralelos com temas da obra de Hayek. Há alguma influência nisto?

Searle: Não há! Não. Como todos falavam tão mal de Hayek, eu não o tomei a sério a sério até sua morte. Sinto-me embaraçado por dizer isto. Quando escrevi Mind, Brain and Science, ele me escreveu uma graciosa carta e me enviou um livro. Pensei que isto era realmente bom, e escrevi em resposta. Fiquei surpreso por receber seu livro sobre percepção.

Reason: O Sensory Order?

Searle: Isto. É de fato interessante. Mas não fez parte de meus temas; quer dizer, não sou um fã de Hayek. Não sabia nada sobre Hayek.

Reason: Ele era conhecido como grande leitor.

Searle: Aqui está a ironia da coisa: sou um admirador dele. Estou seguro de dizer que o admiro mais que ele a mim. Mas ele leu sobre mim mais do que eu li sobre ele (risos).

Reason: Voltando à nossa discussão anterior, uma grande quantidade de idéias radicais que falamos, foram gestadas nos anos 60, bem como algumas mudanças no papel da política na universidade. Você esteve envolvido no movimento pela Free Speech (FSM), aqui em Berkeley.

Searle: Eu era bem ativista.

Reason: Eu acharia interessante que você pudesse dizer qual seu papel nisto e algumas reflexões que possa ter.

Searle: Em 1959, quando retornei para Berkeley, vindo de Oxford, onde estava lecionando, pretendia ser mantido na comunidade acadêmica, tanto quanto um expatriado pode ser. Sempre fui muito participante no que diz respeito aos movimentos civis - acredito nos direitos humanos, especialmente no direito ao Free Speech e o direito de expressão. Eu era ativista contra aquilo que então, era denominado - HUAC (Home Un-American Activities Committee - Comitê para Atividade Não-Americanas), pondo em Ação um movimento chamado Operação Abolição (Operation Abolition), que estava se mostrando mais ativo na Faculdade de de Direito de Berkeley. Certa feita, fui indicado para fazer um comentário para alguns estudantes num cinema. Apenas algumas horas antes de falar, receberam um chamado do gabinete do reitor, dizendo que minha fala havia sido cancelada. Eu, professor assistente na Universidade, não estava apto para fazer qualquer comentário sobre assuntos delicados, a não ser que eles tivessem alguma outra pessoa para estabelecer o contraditório.

Isto por volta de dezembro de 1961. Naquele ponto, percebi que esta universidade não estava profundamente interessada na liberdade de expressão. Assim, quando alguns anos mais tarde, os estudantes vieram até mim dizendo: "Estamos levando adiante uma campanha pela liberdade de expressão". Encontraram em mim, um ouvinte simpático. Me tornei extremamente ativo na campanha pela liberdade de expressão. De fato, creio que fui o primeiro membro regular da faculdade, a fazer parte do FSM.

Meu desencanto com o radicalismo estudantil, veio não por causa do FSM, mas pelos eventos que ocorreram depois. Depois que o FSM aboliu a si mesmo, havia um sentimento de expectativa próprio dos ativistas dos anos 60, de que, de alguma forma, eles estavam revolucionando a sociedade, depondo o capitalismo e fazendo todo tipo de coisas que não concordo. Eu queria liberdade de expressão. Mas, descobri que havia uma grande quantidade de pessoas que, assim que obtiveram a liberdade de expressão, queriam uma grande quantidade de coisas que nada tinham a ver com liberdade de expressão. Para dizer a verdade, eles não estavam ligando muito a liberdade de expressão. Apenas queriam liberdade de expressão para coisas que eles concordavam.

Assim, fui colocado numa posição incômoda: creio que as forças que foram desencadeadas nos anos 60, realmente ameaçaram a universidade. Conseguimos retirar o antigo reitor e o velho sistema autoritário - destruímos totalmente. Quando o novo reitor me convidou para trabalhar na administração dele como consultor para assuntos estudantis, eu aceitei o cargo por dois anos. Era muito mais difícil que o FSM, pois era o momento de colocar a revolução de volta em sua garrafa. Você não consegue administrar uma grande universidade, num clima de revolução permanente.

O resultado é que perdi dois grandes amigos. Eles pretendiam manter a revolução em movimento. Eu não. Pensei: uma revolução é suficiente. Mas, nem todos concordavam comigo, e, muitos momentos de tensão resultaram disso. De qualquer forma, tivemos sucesso.

Em 1969, ocorreu um evento fora do campus universitário - a chamada "derrota do povo no parque". Aquilo, não era de fato, um evento do campus. Foi uma batalha, primeiramente entre pessoas que não eram estudantes e viviam no lado Sul, e a universidade. Depois, especialmente com aquelas autoridades de Estado, que vieram com a guarda nacional de Reagan. Mas, a batalha pelo controle acadêmico de Berkeley, foi vencida em 1967. O que aconteceu em Paris, Colúmbia, Stanford e em Harvard, bem como em vários outros lugares, são acontecimentos posteriores a Berkeley.

Reason: O quê você projeta para o futuro?

Searle: Deixei minha bola de cristal na outra roupa (risos). Não sei que rumo estas coisas estão tomando. Tenho um pressentimento que, os estudantes de hoje, vêem aquelas idéias dos anos 60, como ridículas.

Creio que o movimento dos anos 60, a longo prazo, fez estragos em certos departamentos, o que fez com que desistissem de sua missão educacional. Certos departamentos, especialmente, nos estudos de literatura e cultura, tanto quanto posso ver, estão desmoralizados. Mas, nos departamentos em que mais proximamente tratei, não houve efeito prático. O departamento de Filosofia é do mesmo tipo que há 30 anos atrás.

Reason: Sua experiência direta é positiva?

Searle: Meus estudantes são tão bons quanto antes. Minha perspectiva é oblíqua, pois me acontece ter estudantes realmente superiores. Meu tipo de ensino é bem difícil; está além das divisões dos cursos. E, eu tenho os estudantes que se destacam por si mesmos, pois ninguém vai aos cursos se não estiver altamente motivado. Você vem às minhas aulas e fica impressionado com a qualidade das questões que são colocadas.

Não leciono muitos cursos para calouros ou novatos. Quando fiz isto, alguns anos atrás, percebi que não conseguiria ensinar, naquele nível que comecei em 1959. A razão disto é que não posso dar por garantida a referência cultural. Não posso supor que todos saibam quem foi Platão. Em 1959, os calouros não liam Platão, mas tinham ouvido falar dele. A partir de meados de 1975, você já não pode dizer o mesmo.

Ao mesmo tempo, a Ação Afirmativa (AF) - ato governamental que garantia vagas nas universidades para membros de determinadas etnias norte-americanas-, teve um efeito desastroso. Criamos duas universidades durante o período da AF. Tínhamos uma universidade com pessoas selecionadas segundo os critérios mais rigorosos da história das universidades. E outra, composta por pessoas que não passaram pelos mesmos critérios, necessitando de cursos especiais e departamentos especiais, arranjados para eles.

Agora, a Ação Afirmativa, significa coisas completamente diferentes. Quando começou, a definição era de que, tomar uma ação afirmativa, significava ter pessoas que eram encorajadas a tentar competir num processo ao qual não tinham acesso. Eu era favorável a isto - que teríamos pessoas numa competição quee, de outra forma, não poderiam estar ali. O que ocorreu contudo, e este é o efeito catastrófico, é que raça, etnia, não passaram a ser critérios para encorajar pessoas a entrar na competição, e sim, para julgar a competição.

Atualmente, muito disto mudou. A idéia de que, admitiríamos pessoas, segundo critérios étnicos e raciais, foi posta de lado. Agora, estamos tentando admitir pessoas preparadas, para competir na universidade. Se conseguirmos fazer isto, é uma coisa boa.