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 Carandiru – Uma cosmética televisiva

  O livro, Estação Carandiru, do médico Dráuzio Varella permanece há anos na lista de mais vendidos e agora também é filme de sucesso estrondoso: mais de 4,6 milhões de espectadores só no Brasil, participou do Festival de Cannes e foi enviado aos EUA como representante do Brasil numa possível indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

  Carandiru é um filme, mas poderia muito bem ser uma minissérie televisiva. Ao desafiar a transposição da obra para o cinema, Babenco foi contaminado pela televisão. A narrativa do filme é um tanto clássica demais: tempo e espaço nunca ambíguos lembram os sitcom da TV a cabo. Vários personagens tiveram que ser fundidos e tiveram suas características homogeneizadas, aqui se perdeu profundidade.

  A narração do “doutor” é irônica no livro e sua passagem para o filme talvez seja o pior de Carandiru. O personagem de Varella que às vezes parece um narrador torna-se mais um, perdido naquele lugar mitológico e totalmente isolado do resto da cidade, não fossem os flashbacks clichês e redundantes que narram os diferentes motivos que levaram os presos ao Carandiru. Se o intuito era narrar o cotidiano dos presos, é justamente nestes momentos fora do presídio em que ele se dilui.

  O filme soa notícia de jornal embora saibamos que tudo é de mentira. O personagem de Rodrigo Santoro é o que mais guarda esta marca de ficção para acalmar as fãs do galã que lotaram as salas de cinema. Lady Di parece mais uma menina de classe média que sonha em se casar de branco do que uma travesti que está presa sabe-se lá porque.

  A espetaculosidade do massacre de 1992 com suas centenas de figurantes e litros de “sangue” destoa do restante do filme que não tem ritmo definido. A mistura de ficção e suposta realidade não convence, pois tudo já soa suposição demais. A atuação é comedida e as cenas de humor fácil também remetem aos programas de televisão. O drama torna-se melodrama com apelo emocional: passagens bíblicas, o hino nacional, futebol e “Aquarela do Brasil” para encerrar o filme.

  Pobreza, feiúra e sujeira são “magnificamente” maquiadas pela fotografia competente de Walter Carvalho. Para quem leu o livro fica a sensação de que o Carandiru de Babenco foi higienizado para não ameaçar espectadores nem patrocinadores. Atores globais misturados a desconhecidos enriquecem mais a fórmula de sucesso que encontrou no marketing da Globo Filmes uma grande estratégia. Tudo muito bom para comer pipoca e consumir a pobreza confortavelmente num cinema de Shopping.

Lady Di – A travesti boa-moça de Carandiru

  Devido ao grande número e à diversidade de personagens presentes na obra Estação Carandiru de Dráuzio Varella a versão cinematográfica lançou mão da fusão de personagens para comprimir as histórias e características. O resultado não foi positivo e flerta com a superficialidade e com o comedimento.

  Dentre os personagens ocos do filme está o do médico Dráuzio Varella. Fraco enquanto fio condutor da narrativa o doutor parece estar de acordo com tudo o que ouve dos presos e, pior ainda, soa às vezes apático. A ingenuidade do personagem interpretado pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos é percebida quando pergunta a mais um detento qual o motivo de estar ali: “O senhor quer ouvir mais uma mentira doutor? Aqui dentro ninguém é culpado”.

  O personagem interpretado pelo galã Rodrigo Santoro é o que mais espanta por não espantar. Lady Di, uma travesti, parece mais uma menina de família ansiosa por casar com seu príncipe encantado. Aqui surge a dúvida: por que essa “moça” tão boazinha está presa? É claro que podem existir exceções no bizarro mundo do travestismo, mas por que só Lady Di é contida, comportada e “bonitinha” no Carandiru de Babenco?

  Fica a sensação de que o galã global foi escalado não pelo seu talento de ator, mas sim pelo seu poder de atração de público. Santoro deixa o papel ileso de qualquer “mancha” na carreira e pronto para mais um papel na próxima novela das oito. Até o beijo entre Lady e Sem chance (Gero Camillo) só acontece uma vez, após o “casamento” com direito a vestido de noiva, o que nunca aconteceria “na vida real” segundo um ex-detento do Carandiru.

  A crítica não sugere uma perseguição ao filme de Hector, é sim uma ressalva aos personagens abordados superficialmente, forma exercitada muito bem pela televisão. O cinema está sujeito sim a “contaminações” televisivas, mas não deve sucumbir e perder suas conquistas como, por exemplo, a capacidade de aprofundar-se no multifacetado universo humano.

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