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 A ação destrutiva do tempo em “Irreversible” (Gaspar Noé, França)

Entrar num cinema sem saber o que se vai ver pode nem sempre resultar numa experiência agradável, ainda mais em tempos que o pior da produção americana e mundial invade quase a totalidade das salas de cinema do mundo. Entrei para ver Irreversível e para a primeira sessão numa sexta-feira o público era grande.

O filme começa de repente com os créditos finais ao contrário -  não sobem e sim descem. Além disso, as palavras têm as letras embaralhadas, prova ed qeu coesngiuoms lre asims memso. O incômodo é ainda maior quando o título do filme aparece se entortando na tela. Ainda sem saber o que veria, mas já incomodado por aquela abertura que dita o estado emocional do início(?) do filme, eu me acomodei na poltrona. Algo diferente se anunciava.

Primeiro plano-sequência de muitos e a câmera já está em êxtase total. Ela gira, enquadra, procura. Alternando entre primeiros planos dos personagens que conversam em uma cela: ora o pé, ora o rosto. A câmera segue alucinada. É quando ela gira verticalmente sobre seu próprio eixo que passamos ao próximo quadro. Claro que só descobrimos esta conexão mais à frente. Uma sirene desperta a atenção da câmera entorpecida e ela gira buscando por algo. Algumas pessoas deixam a sala de cinema num momento em que um personagem busca incessantemente por outro dentro de um clube gay na periferia de Paris. A seqüência é escura, mal iluminada. Luzes vermelhas entoam o sexo marginal, bizarro e sado-masoquista.

A câmera gira e transita alucinadamente ao encontro daqueles mesmos personagens que estavam dentro da boite e agora estão nas ruas buscando pela localização certa daquele lugar. Será que este filme está ao contrário? Os créditos e letras estavam. Aqui, o enigma sobre a forma e conteúdo que havia se imposto começa a ser revelado. Os próximos quadros (longos planos-sequências) - é assim que o filme se apresenta - demonstram que a história caminha para trás enquanto o filme avança.

A narrativa vai retrocedendo e construindo um anticlímax: já sabemos do crime e quem o cometeu. A câmera aos poucos vai acalmando-se, o ritmo fica mais lento e os personagens voltam ao estado de “normalidade”. O filme caminha para o final e a história continua voltando para trás.

Basicamente o enredo gira em torno de um triângulo amoroso composto por uma bela mulher, o ex ainda apaixonado e o atual namorado. O que seria ponto alto do filme, momento em que a mulher é estuprada e violentada, serve de ponto de partida. A irreversibilidade do fato com que nos deparamos é angustiante. Quanto mais voltamos no tempo mais conhecemos um casal apaixonado e cheio de planos para um futuro já passado. Irreversível, porque voltar atrás é impossível, até mesmo porque tudo já aconteceu. Todos já sabem para onde o destino os levará a despeito de suas ações, pois parece existir uma força maior e misteriosa o guiando.

As cenas do estupro e do assassinato/vingança dentro do clube gay Rastro são difíceis de ver por sua grande força realista. A câmera fixa dentro de uma passagem subterrânea durante todo o estupro em tempo real denota o terror da violência e nos causa angústia por colocar-nos em posição privilegiada(?) para presenciar tal cena. O assassinato do estuprador lembra a cena em que a personagem Selma de “Dançando no escuro” massacra a cabeça de seu locatário ladrão, mas em Irreversível a cena é mais dura, o rosto fica desfigurado e a sede de vingança satisfeita. Um diálogo refinado com o movimento Dogma 95 no que diz respeito à força realista deste.

Em Irreversível, técnica e linguagem cinematográficas são “reféns” do conteúdo e isso evita a afetação artística de alguns diretores que querem parecer cult e geniais. Gaspar Noé utiliza uma forma não original e um conteúdo quase clichê para (re)criar uma simbiose cinematográfica. Forma e conteúdo aqui são mutuamente dependentes. Começar o filme com a última(primeira) cena em que a personagem feminina lê um livro deitada sobre a grama seria tão banal quanto acabar com o filme naquela cena de abertura em uma cela.

Compreender a trama que envolve o filme - seu discurso e história - torna a admiração por ele irreversível. É, sem dúvida, uma história comum, que pode acontecer ali ou aqui, contada de trás pra frente. Porém, os recursos que Noé lança mão são intrigantes, perturbadores e provocantes. Até a utilização do tempo é explorada de acordo com a necessidade de seu universo diegético. No início do filme/final da história o tempo da narrativa é quase real, excetuando-se as elipses. Com o passar do filme/retrocesso da narrativa os saltos são maiores.

As dicotomias espaço/tempo, forma/conteúdo e narrativa/história adquirem potência justamente nas suas diferenças durante o tempo fílmico de Irreversível. Mas “O tempo destrói tudo”. Esta é a frase que fecha o filme e é início para aquela história que já começou fadada à destruição. A obra de Gaspar Noé fez parte da Seleção oficial do Festival de Cannes e integrou a mostra Frontier, abrigo de filmes que buscam o novo no Festival de Sundance nos EUA.

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