teatro [URFAUST]
ou Fausto Zero, de J.W. Goethe (direção
Gabriel Villela Antes
de apresentar um texto ao público, o escritor o escreve e reescreve várias
vezes. A primeira versão quase nunca é a definitiva e é chamada de
primeiro tratamento, no jargão de roteiristas e escritores. Bem, antes de
mostrar ao mundo seu Fausto de 1808, Goethe tinha seu rascunho, o Fausto
primitivo, o Fausto Zero. A atriz Walderez de Barros, 63 anos e 40 anos de teatro, explica sucintamente a origem do texto que vai representar. “À guisa de curiosidade...” ela esclarece para o público, que já vê todo o cenário juntamente com as coxias também reveladas, as pequenas diferenças entre este “proto-Fausto” e a primeira parte da tragédia conhecida por todos. O
espetáculo parece que ainda não está exatamente pronto, assim como o
texto trabalhado. O processo de montagem é evidenciado: atores conversam
com a platéia, explicam e trocam cenários e figurinos abertamente, sem
nada a esconder. Há, inclusive, um contra-regra para ajudar no trabalho. Walderez
interpreta Fausto, o grande estudioso e professor alemão, que desiludido
com os limites da ciência busca desvendar o mistério da existência com
a ajuda do sobrenatural. Invoca os gênios e quem aparece para acalentá-lo
é o próprio senhor do Mal: o diabo, Mefistófeles. Começa um jogo de
poder no qual Fausto é envolvido com muita desenvoltura por Mefisto,
interpretado aqui, muito bem, por Alvise Camozzi. A
interpretação é sempre interrompida, seja para uma explicação, troca
de figurinos ou transporte de objetos cênicos. Um tear surge com o espírito
da terra que, evocado, aparece para Fausto antes de Mefisto. A imagem do
tear e do espírito tecendo a trama da vida humana é incrível embora
recorrente. Há muito simbolismo e algumas cenas soam conceituais, o que
parece um contraponto à idéia de ensaio e de espetáculo em processo de
construção. Ao mesmo tempo pode ser um recurso usado justamente porque a
peça não está “pronta” e é preciso representar as coisas. A
atriz Vera Zimmermann interpreta a jovem Margarida, fonte da qual Fausto
tenta nutrir-se de juventude e paixão. O empregado Wagner também é
representado pela atriz, mas aqui a caricatura é horrenda e o sotaque
carioca não tem explicação. Concepção de personagem, claro, e não
problema de interpretação já que Zimmermann desempenha muito bem o
papel de Margarida. A comicidade está presente em Marta, uma vizinha da
jovem desejada por Fausto. A tipificação da “vizinha-viúva-interesseira”
flerta com a caricatura, aqui, sem demérito algum. A atriz Maria do Carmo
Soares também interpreta o espírito da terra. A
esta montagem foi adicionada a figura do Espírito do autor. O ator
Nicolas Röhrig, num figurino preto, semelhante a uma versão negra da
roupa vermelha de Mefisto, transita e interfere na ação, como um contra-regra
ou como desmembramento do próprio Fausto, jovem, no momento de amor com
Margarida. A
direção de Gabriel Villela é sentida na ironia de falar do próprio
teatro, na música regional, nos ícones religiosos e no manuseio hábil
das máscaras, elemento da commedia del’arte. A interpretação
doa atores é apurada e destaco, claro, o Fausto de Walderez de Barros,
com sua voz naturalmente grave a nos levar fundo na reflexão íntima do
personagem. O diabo de Alvise Camozzi também supera o nível do elenco e
trava com Walderez um belo embate entre grandes atores. Ao
crítico, ou ao espectador ativo, não cabe escolher ou manipular o olhar
do diretor. Pode-se ressaltar, duvidar, questionar. A atmosfera da tragédia
pessoal e intimista de Goethe destoa um pouco do colorido exposto no placo
deste [URFAUST] de Gabriel Villela, mas quem sabe não seja uma nostalgia
e conservadorismo o desejo de ver uma leitura expressionista? A releitura
regional do mito de Goethe, inspirado por uma história popular do teatro
de fantoches alemão, pode tanto ser uma tentativa de aproximá-la mais do
homem brasileiro quanto uma forma de afirmar que o diabo ronda a todos e
de diversas maneiras. Anderson Vitorino – 17 de abril de 2004
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