Libertação dos Escravos
|Cléria Botelho da Costa: Literatura Escravista, uma arte da memória|
Abolição da Escravatura
Dois conceitos históricos são entendidos por abolição da escravatura: o conjunto de manobras sociais e políticas empreendidas entre o período de 1870 a 1888 em prol da libertação dos escravos e a própria promulgação da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888, promovendo a oficialização da abolição do regime escravista.
Os movimentos pela abolição da escravatura são iniciados a partir de alguns eventos ocorridos: a cessação do tráfico negreiro da África, em 1850; a volta vitoriosa de negros da Guerra do Paraguai, que se estendeu de 1865 a 1870; a criação da Lei do Ventre Livre pelo Visconde do Rio Branco (liberdade aos filhos de escravos nascidos após a data da promulgação desta lei, em 28 de setembro de 1871; não obstante, os filhos de escravos seriam mantidos sob a tutela dos senhores escravistas até a idade de 21 anos); a criação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão (tendo José do Patrocínio e Joaquim Nabuco como fundadores); a Lei Saraiva-Cotegipe (mais popularmente conhecida como a Lei dos Sexagenários, de 1885, que concedia liberdade aos escravos com idade acima de 65 anos, e somente através de uma indenização ao proprietário). Cabe dizer que tais leis representavam apenas um pequeno avanço, sem grandes efeitos, pois os jovens nascidos após a Lei do Ventre Livre simplesmente não encontravam respaldos para sua própria sobrevivência após sua libertação.Com relação à Lei dos Sexagenários, além do próprio obstáculo da indenização ao senhor escravista para a libertação, os escravos que conseguiam chegar até a idade dos 65 anos constituíam uma exceção, num país onde a expectativa média de vida permanecia abaixo desta idade, enquanto a expectativa de vida dos escravos, certamente, era ainda inferior.
As mudanças que iam ocorrendo, no entanto, ameaçavam afetar diretamente a economia de produção, justamente baseada no regime escravista neste período da história do Brasil. Os negros chegaram a participar da luta anti-escravista e, muitos deles, perseguidos por seus atos insurrecionais ou mesmo fugindo do jugo escravista, reuniam-se em povoados como os quilombos (Quilombo dos Palmares, Quilombo de Jabaquara). Após as medidas oficiais anti-escravistas determinadas pela Lei Áurea, os senhores escravistas, insatisfeitos com a nova realidade, tencionavam exigir indenizações pelos escravos libertos, não obtendo nenhum aval do Império. Desta forma, surgiram os movimentos republicanos, que foram engrossados com a participação dos mesmos senhores que eram antigos detentores da "mercadoria escrava" e que, descontentes com as atitudes do Império, acabaram por defender um novo sistema de governo, decorrendo daí um dos principais motivos da derrocada final do Império. Por outro lado, a mão de obra proveniente das novas correntes imigratórias passa a ser empregada. Os negros, por um lado libertos, não possuíam instrução educacional ou a especialização profissional que passa a ser exigida, decorrendo destes aspectos a permanência dos negros à margem da sociedade frente à falta de oportunidades a eles oferecidas. A liberdade dada aos negros anteriormente escravizados é relativa: embora não mais escravizados, nenhuma estrutura que garantisse a ascensão social ou a cidadania dos negros foi oferecida.
(Fonte: Enciclopédia Digital Master Milênio - http://www.enciclopedia.com.br/MED2000/pedia98a/hist2jav.htm)
Cléria Botelho da
Costa: Literatura Escravista, uma arte da memória Por Cléria Botelho da Costa*
No final do século XIX (1872), viviam nas três maiores províncias do Império cerca de 819.798 escravos e 289.154 homens e mulheres livres, dos quais 41% eram descendentes de africanos. Na Bahia, esse número chegou a 68,53% (Slenes:1995:15). Além disso, os crioulos, filhos de escravos no Brasil, eram filhos de africanos. Contávamos com uma expressiva presença demográfica de afro-descendentes. Portanto, falar da escravidão implica em voltar a atenção para a África, para a herança cultural que aqueles trouxeram consigo, para a importância de ser estudada as influências da memória africana na construção e reconstrução das identidades negras na sociedade brasileira no século XIX. Dessa forma, as diferenças étnicas são postas em relevo. Reconhecendo essa importância da cultura africana nos afro-brasileiros, venho trabalhando a literatura escravista enquanto arte da memória, ou seja, enquanto espaço de constituição e reconstituição das identidades étnicas individuais ou coletivas.
A historiografia brasileira escravista tem dado ainda parca atenção a esta questão e quando o faz é sob o olhar do antropólogo e bem pouco do historiador. Durante anos qualificou o escravo como desprovido de cultura. Enfoque que possivelmente tinha como suporte a idéia de uma sociedade escravista polarizada com a dominação explícita dos senhores sobre os escravos. No entanto, a partir dos anos 80 e, sobretudo, dos 90, os afro-brasileiros passaram a ser preocupação de estudos e de acirradas discussões, que questionavam a interpretação que afirmava o aniquilamento cultural e a dominação total que teriam sofrido a partir da travessia do Atlântico. Dentre estes estão Slenes (1997, 1991, 1994), Schwartz, Slenes & Costa (1990), Mattos (1998), dentre outros, os quais, no entanto, não se aportam à literatura escravista.
O uso da memória na literatura afro-brasileira no século XIX, no meu entendimento, objetiva transmitir os vários aspectos da experiência histórica das gerações afro-brasileiras às gerações presentes e futuras de afro-brasileiros, bem como aos membros de outras etnias no Brasil. Trata-se de reapropriar e revisar/revisitar uma tradição literária iniciada com as narrativas de ex-escravos e que foi ampliada aos escritores e poetas, sobretudo aqueles que se preocupavam com as questões sócio-culturais do país. Os escritores afro-brasileiros, portanto, imergem no passado comunitário de modo a permitir que o espírito da cultura emirja e reviva na obra de arte literária.
A preocupação dos escritores afro-brasileiros era salvar por meio das imagens literárias toda uma variedade de manifestações culturais afro-brasileiras e de organizá-las em conjuntos sistemáticos e orgânicos, capazes de tornar mais legíveis as experiências daqueles. As obras literárias desempenham assim a função de organizar os elementos da cultura afro-brasileira por meio dos processos de criação/recriação literária, ou seja, para tomar emprestado uma expressão usada por Gramsci, organizar a cultura.
Aloísio de Azevedo, escritor que transitou entre o Romantismo e o Naturalismo numa passagem sugestiva do seu romance O Cortiço, redigido no final do século XIX escreve:
...O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser nem o cheiro que a mulata soltava de si e nem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante...
Azevedo, ao descrever uma de suas personagens, a mulata Rita, aponta a dialética entre memória e esquecimento de forma resumida. A relação entre a cultura afro-brasileira e a cultura dominante é concebida, aqui, uma vez que a cultura européia forjava do negro uma imagem de solto, vadio, o que lhe permitia os requebros, os movimentos de cobra amaldiçoada que jamais o branco era capaz de fazê-los. Esta imagem do negro como sensual, que havia trazido consigo para o Brasil danças sensuais como a umbigada, dentre outras, era forjada nos valores étnicos, morais e religiosos da cultura européia e era compartilhada pela maioria dos sujeitos que compunham a sociedade brasileira no século XIX. Pressupostos teóricos idealistas e mitificados dos europeus possibilitavam a idéia de naturalização da dança e da música como inerentes do negro, o que me faz lembrar Alfredo Margarido ao afirmar que "a emoção é do negro como a razão é do branco". Ou seja, segundo esses pressupostos teóricos, os traços étnicos eram definidores dos sentimentos dos homens.
Entendo que naturalizar a emoção ao negro e a razão ao branco pressupõe uma compreensão teórica binária, presidida por critérios étnicos. Ou seja, se as evocações de suas imagens nos conduzem a representações da cultura afro-brasileira, elas também nos induzem a representações que a cultura européia construía do negro. Segundo esta só o branco raciocina e pensa, enquanto o negro, por não dispor de um pensamento racional, vive as emoções e, conseqüentemente, executa as ordens dos que organizam e planejam as atividades produtivas. A compreensão do branco como ser que pensa, que raciocina, me faz lembrar Castoriadis (1981) ao jogar por terra toda concepção cartesiana do homem e ensinar que apenas o raciocínio é condição insuficiente para sustentar a condição de homem. Este é aquele que cria, que é capaz de inventar e reinventar a cada instante o mundo que o cerca. Na criação reside a sua qualidade suprema. Desse modo, ser negro, ou ser branco, são meros atributos do homem e não elementos definidores de sua natureza.
No entanto, na poética de Azevedo perdura a "mensagem" de uma cultura que não apenas sobreviveu mas desenvolveu-se e se reconstruiu no Brasil e quiçá em toda América, uma cultura que o escritor tem de reconstruir a partir de traços como a música e a dança as quais são símbolos de que uma raça rica que resistiu, procriou e recriou sentidos para as suas atividades e para seus símbolos. Uma nova cultura afro-brasileira emergiu no contexto da diáspora africana no continente brasileiro como resultante de negociações entre a cultura africana e a cultura brasileira. Como expressa Gay Willentz, sempre que povos com valores compartilhados, tradições culturais e uma identidade étnica encontram-se em ambientes hostis, emerge simultaneamente uma nova cultura que retém muitas das tradições residuais ao mesmo tempo que apresenta resistências. Desse modo, a cultura dos escravos, no Brasil, assimilava, mas também se impunha.
O escritor afro-brasileiro, efetivamente, não desempenha apenas a função de escritor, mas também a de tradutor de sentidos do mundo. Segundo Gates, os sobreviventes da travessia do Atlântico, arrancados violentamente de seus lares africanos, trouxeram da África para a América aspectos de sua cultura que eram cheios de sentido, que não se podiam apagar e que eles escolheram, voluntariamente, não esquecer. O escravo africano valeu-se de suas referências africanas de sentido e crença na "leitura" do novo meio, ainda que estas a cada instante fossem reconstruídas. E as diferenças étnicas originais dos escravos, do Centro, do Norte da África eram superadas especialmente pela língua ou pelas visões cosmogênicas.
Concordo com Gates ao assinalar que a herança cultural africana orientou a visão de mundo e as práticas dos escravos no Brasil e na América. E defendo que a noção de que essa travessia teria sido traumática a ponto de criar no africano uma tabula rasa de consciência ou anular seu passado é uma percepção que já serviu a muitas ordens econômicas e suas respectivas ideologias. Uma grande parte da produção historiográfica sobre a escravidão no Brasil nos anos 70 e 80 focalizava apenas uma dimensão de tempo na vida do escravo – o tempo presente, muito bem expresso na afirmativa de Charles Ribeyrolles (citado por Slenes) "nos cubículos dos negros, jamais vi uma flor: é que lá não existem esperanças nem recordações". Para estes estudiosos, o tempo do escravo, do negro, era apenas o tempo da dor, da desolação, da penúria, ludibriados pela embriaguez, pelo casamento e pela organização das fugas, dentre outros. Quanto ao futuro, não existiam frestas de luz que os penetrassem, era plenamente fechado. Diante disso, em grande parte das obras literárias sobre a escravidão no Brasil, os poetas cantam a dor, as humilhações e as emoções do presente, e muito pouco o porvir daqueles homens. É como se só existisse o agora, a eles fosse negado o direito de pensar no ontem e no amanhã. Este entendimento me parece ter como substrato uma noção de tempo pontual em que as potências latentes nos acontecimentos ao se desencadearem se anulariam, restando apenas o presente.
Não comungo com essa interpretação porque entendo que o presente é sempre constituído por um passado e por um futuro que o antecipa. Trata-se, pois, de um presente que é histórico. Concordando com Benjamin, entendo o presente como uma reconstrução do passado e um projeto do porvir, o que levou o mencionado autor a delinear a História como um "tempo saturado de agoras", ou seja, apesar de privilegiar as múltiplas temporalidades, realça o valor do tempo presente. Nesse sentido, pensar a escravidão apenas na dimensão do presente é negar ao homem a sua capacidade de sonhar, de conviver imaginariamente, com seus antepassados, de reconstruir suas memórias. É não aceitar a imaginação social como móvel de suas lutas cotidianas. É nesta compreensão da literatura como possibilidade de tradução dessa tríplice temporalidade que a deusa Mnemosyne (Memória) e aquela se tornam inseparáveis. Ao tratar da importância da memória Charles Johnson ressalta que para muitos autores negros a memória é uma obrigação moral, um esforço no sentido de honrar seus antepassados e preservar o sentido de suas vidas deixado de lado pelas versões brancas da história, no teatro do romance, do poema ou do drama.
Estudiosos da escravidão na América como Baker, realçam que o fato dos africanos na América terem vivenciado privações materiais e não terem contado com o controle dos instrumentos de produção não os coibiu de agir e a fonte geradora de sua ação era a alma e o ímpeto de salvação era o espírito. Entendo que esse trabalho do espírito fornece uma poderosa metáfora da dinâmica cultural e implica em um trabalho criação e recriação culturais realizadas pelos membros da comunidade. Essa dinâmica cultural pode ser entendida como um equivalente do éthos de uma comunidade o qual é reconstituído pelos indivíduos que utilizam a memória como mediação para que as vozes dos antepassados encontrem os ouvidos ansiosos das novas gerações, o que estou nomeando de poética da memória. Esta poética da memória possibilita a literatura ou qualquer outro trabalho artístico transmitir ou evocar as memórias fragmentadas do ethos da comunidade.
O poeta Castro Alves ou o "Poeta dos Escravos" como era conhecido, na quinta parte de sua conhecida poesia Navio Negreiro, escreve:
... São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus ....
São os guerreiros ousados ,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão ...
Homens simples, fortes bravos...
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão...
(...) Lá nas areias infindas ,
Das palmeiras do país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram – moças gentis...
Passa um dia a caravana
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus...
... Adeus! ó choça do monte!
....Adeus ! palmeiras da fonte!
...Adeus! amores...adeus!...
Castro Alves no poema mencionado, além de mostrar sua indignação contra o tráfico de escravos, foge da interpretação presentista já discutida anteriormente. Estabelece a relação entre o passado e o presente do escravo, no Brasil, passado que estava na África e representava o negro livre e o presente (séc. XIX) que revelava o negro aprisionado. E nas lembranças delineia a importância do quadro material – fontes, palmeiras, montes bem como do quadro afetivo – amores, na reconstrução das memórias dos escravos. Com isto, o autor reforça o entendimento de que o espaço físico, os objetos materiais e a afetividade são elementos que não podem ficar esquecidos na reconstituição da memória escrava. Enfatizando esta apropriação da memória pela literatura penso que produzir a literatura escravista é um meio de reconstituição constante da comunidade, do grupo étnico, bem como do próprio artista individual que sempre evoca um éthos coletivo.
O citado poeta ressalta ainda a importância dos escritores afro-brasileiros no sentido de compartilhar e proteger o que é seu, o que pertence a sua nação afro-brasileira como penhor de sua identidade. Toda tradição cultural, as agruras de uma diáspora forçada, pode desaparecer se cada geração não encontrar os meios para legar sua cultura á próxima. Este compromisso moral do escritor de repassar a memória dos antepassados às novas gerações pode também possibilitar aos afro-brasileiros uma consciência de si mesmos e do mundo, fazendo-os notar que constituem uma cultura formada sob e contra a opressão. Presumo que grande parte da obra literária afro-brasileira pode ser, simbolicamente, uma tentativa desesperada de falar a despeito de todo um sistema de restrições montado pela sociedade racista com vistas a inibir as suas vozes. Nesse sentido, num mundo racista, toda atividade literária, empreendida por um indivíduo afro-brasileiro, podia ser uma tentativa de resistência.
A existência de vozes alternativas à da memória instituída articulava-se com dimensões de lutas sociais em prol da abolição na construção de identidades e nas relações de poder, demonstrando que tal processo de consolidação dizia respeito a toda sociedade, embora atendesse a interesses imediatos de uma dada camada da sociedade, lutando pois, para convencer diferentes grupos de sua importância. Com essa interpretação da literatura enquanto espaço da memória de resistência quero sublinhar que o processo de elaboração social da memória se firma a partir de múltiplos investimentos simbólicos associados à situação dominante das relações sociais neles envolvidas, capazes de submeter outras formas de explicar o mundo aos seus termos. Por exemplo, o significado grandioso conferido a Abolição em 1888, através de diferentes manifestações – batalhas de flores, bailes públicos, noticiário na imprensa etc, expressava o seguinte sentido: a escravidão acabou. No entanto, se ouvirmos outras vozes como a de José Lins do Rego, no romance Menino do Engenho, notamos que o autor aponta a continuidade de faces da experiência escrava após aquela data, sem conseguirem, todavia, consolidar sua memória, expressando apenas versões alternativas, em contraponto àquela outra.
Desse modo, vale destacar que a memória triunfante, para se firmar, precisa sufocar ou submeter memórias autônomas, provando que sua existência se dá num espaço de lutas, configurando poderes menos visíveis e muito eficazes na construção de identidades sociais. Este espaço de lutas demonstra que os grupos subalternos, de forma eventualmente descontínua, mas também intensa, contam com poderes. Ele simboliza também, um direito a memória para todos, questão que se articula politicamente com os debates sobre fortalecimento da cidadania e evidencia que o respeito aos mortos - e suas memórias - se traduz em respeiito aos vivos.
Castro Alves ainda coloca em relevo o sentido da liberdade para os afro-brasileiros. Entendo que esse sentido da liberdade constitui o fundamento ético sobre o qual os escritores afro-brasileiros construíam e constroem seus universos ficcionais. A literatura é pois, uma parte integrante da sociedade e a preocupação central dos literatos afro-brasileiros no século XIX era assegurar a sobrevivência de uma comunidade étnica, a sobrevivência de sentidos compartilhados, traduzir os sentidos incrustados nas camadas mais profundas da memória coletiva. Por isso, o literato é mais do que um escritor ele é um tradutor de sentidos.
Nesse sentido, produzir uma historiografia literária, no meu entendimento, é construir uma narrativa que ofereça significado aos fatos literários, aos dados coletados na pesquisa. Segundo esta concepção, a história não se organiza em torno da idéia de que a reconstrução do sentido dos acontecimentos literários se reduz à recuperação do contexto. Vai além, é uma reconstrução de sentidos. Nessa compreensão, a História deixa de ser apreendida como um fazer puramente "mimético", reprodutor do real incorporando àquele a invenção, a criação de novos significados. Essa compreensão da História faz cair os limites rigorosos entre ela e a literatura uma vez que essa também confere significado aos fatos, ao mundo e é uma atividade de criação por excelência. Portanto, ambas imprimem significados ao mundo e a invenção reside no cerne de suas naturezas. Não quero com esses argumentos reduzir o fazer histórico à literatura ou vice-versa, mas mostrar que a preocupação atual do historiador não é mais se abster das técnicas do poeta e privar-se de tudo que é criador de ficções, como já o fizera no século XIX e no adentrar do século XX, mas reconstruir sentidos, significações levando em conta as múltiplas temporalidades. Esse diálogo proposto entre Historia e Literatura não significa perda de qualquer teoria. Evidencia apenas a insuficiência do teórico como garantia para a construção do conhecimento histórico, questão discutida por Edward Thompson no livro A miséria da Teoria. Resulta desse diálogo uma concepção de conhecimento histórico que não se contenta com hierarquizar teoria e documentos, saber acumulado e possibilidades de interpretações e experiências e nem foge da sedução do instante poético, da compreensão do sonho, da imaginação como inseparável da ciência.
A literatura escravista ou afro-brasileira, ao tratar do passado dos escravos seja no Brasil ou na África, imprimia um significado às experiências fragmentadas dos escravos ou seus descendentes, tornando-as presentes. Passado este que nas trilhas do presente tecia as malhas de um tempo futuro. Em suma, nossas leituras e interpretações do passado e do futuro dependem de nossa experiência do presente, reafirmando a concepção benjaminiana da história enquanto um tempo saturado de "agoras". Edouard Glissant, ao falar da escravidão na América, coloca que aqui há um passado que ainda não se tornou história, mas que está ai, não narrado, assombrando e atormentando o povo africano nas Américas. A tarefa do escritor é então explorar essa assombração, revelá-la de maneira contínua no presente.
Mas se a literatura afro-brasileira conferia sentido às experiências de escravos e seus descendentes, em diferentes temporalidades a sua função na sociedade brasileira, no século XIX, ainda é bastante controvertida. Nesta pesquisa a literatura é apreendida como um espaço que possibilita a reconstrução da identidade negra dos escravos e ex-escravos, logo ela se configura como uma arte da memória. Nesse sentido, sua função básica reside em não deixar que a história se transforme em passagem desbotada na memória das novas gerações, em possibilitar que os nossos mortos, ainda que na lembrança, convivam conosco, em transformar a experiência, o vivido, em instante poético, em naturalizar o direito de sonhar como diria Bachelard.
Edouard Glissant comenta a função de "sacralização" da literatura a qual consiste em amalgamar a comunidade em torno de seus mitos, crenças, de seu imaginário. Acrescenta ainda que uma literatura nacional existe quando uma comunidade ameaçada de sua existência coletiva tenta reagrupar as razões daquela existência. Kafka, citado por Fernandes Giraudo observou que uma das funções da literatura é unificar a consciência nacional na maioria das vezes fragmentada. Para os dois últimos autores, a função precípua da literatura é a unificação da consciência nacional que se apresenta fragmentada. E Kafka assinala que esta unificação seja feita via imaginário. No entanto, quando nos apoiamos numa concepção de História que se constrói e reconstrói a partir das diferenças de cultura, das classes, de gênero, etc existentes na sociedade brasileira tanto no século XIX quanto ainda hoje, século XXI, percebemos que estas diferenças, em nível de imaginário, implicam em disputa de poderes, de projetos políticos diferenciados. No nosso caso, os subalternos eram os afros e seus descendentes que reconhecendo-se diferentes das camadas vencedoras da sociedade brasileira, no século XIX, construíram um contra imaginário – a luta abolicionista, mostrando desse modo, a dificuldade em se pensar numa consciência nacional homogênea. Diante disso, entendo que a literatura foi e continua sendo uma forma de expressão de diferentes imaginários que permearam a sociedade brasileira no século XIX, daí a dificuldade em pensá-la enquanto uniformizadora dos imaginários.
A literatura escravista, não tenho dúvidas, era uma forma de expressão e de criação do belo que cantava a realidade e, na esteira de Benjamin, entendo que sua função social realizava-se no fortalecimento da identidade dos afro-brasileiros e na construção de uma memória social . Além disso, a literatura escravista está cravada no histórico social, por isso, ela expressa o tempo em que vivem seus autores, ainda que a narrativa destes se realize no presente ou no passado. Por fim, a literatura rompe com a linguagem cotidiana, evoca uma fantasia inteiramente construída a partir de fragmentos, e então devolve os participantes ao mundo rotineiro transformado e renovado. A literatura é uma forma de reinvenção do mundo e um modo de tecer os diferentes fios de identidades disseminadas e os escritores afro-brasileiros imergem no passado comunitário de modo a permitir que o espírito da cultura emerja e reviva na obra de arte literária.
Outro ponto a ser destacado é a naturalização da literatura étnica como essencialmente oral, ou seja, a natureza cultural africana é oral. Nesta forma de compreensão, a predominância da oralidade no mundo escravo era resultado da natureza "africana" deles e não de condições materiais e históricas de dominação e subordinação a que estavam submetidos. No Brasil escravocrata a oralidade era o signo da diferença africana no continente. Portanto, quando falamos da oralidade como característica do campo cultural africano, não podemos esquecer que o pensamento europeu privilegiava a razão acima de todas as outras características do ser humano, e uma vez que a escrita, mormente após a difusão da imprensa, era vista como o símbolo da razão, os europeus utilizaram a escrita - e a ausência dela - para delimitar e circunscrever as culturas e os povos de cor que vinham descobrindo.
Uma vez que os povos ágrafos não eram humanos, a escrita podia ser vista não apenas como "mercadoria" usada para confinar e delimitar uma cultura de cor, mas como um meio de transformar os próprios africanos em mercadorias. De fato, como propõe Glissant, a travessia do Atlântico produziu o choque mais radical entre "as forças da escrita e os ímpetos da oralidade", à medida que, a bordo do navio negreiro, "o único material escrito era o livro de contas, relevante do valor de trocas dos escravos". Como podemos ver, o mesmo imaginário que "lia" os africanos como "não humanos" tinha pouca dificuldade em "escrever" os africanos enquanto objetos no sistema inumano da servidão. No Brasil, ao se pensar no contexto da economia de plantação, a escrita era prerrogativa do Senhor, e os escravos eram cuidadosamente mantidos a distancia de qualquer forma de aprendizado do alfabeto. Contudo, no decorrer do século XIX, sob o ideário iluminista, os governantes brasileiros destinavam à instrução papel fundamental de erguer o Império do Brasil ao rol das nações civilizadas. Dever-se-ia procurar instruir todas as classes propagando o primado da razão e difundindo as luzes, única maneira de romper as "trevas" que representam o passado colonial e superar a "desordem das ruas". Assim, a formação do povo consistia, segundo Ilmar Matos, " em primeiro lugar, tanto em distinguir cada um dos cidadãos futuros da massa de escravos quanto em resgatá-los da barbárie". Acrescenta ainda o autor que consistia também em imprimir na sociedade os princípios diferenciadores e hierarquizantes. A instrução era meio de preparar a população para os benefícios do progresso. Para o trabalho com a enxada no campo ou para a maior parte dos trabalhos manuais desenvolvido na cidade certamente não era necessário saber ler, escrever nem ter ensinamentos cristãos e nem noções de matemática, mas era imprescindível a leitura de compêndios sobre a moral e os fundamentos matemáticos úteis a um possível comércio e a indústria. Diante desses princípios, o slogan "abrir escolas é fechar cadeias" se proliferou no imaginário do brasileiro como forma de difusão da escrita, de hierarquização da sociedade.
Outro pressuposto geralmente aceito e tido como base de discussão da proeminência da oralidade africana é a inexistência da escrita antes do contato com os europeus. Tal pressuposto não leva em conta a discussão apontada por Albert Gerard no livro Research in African Literatures, no qual revela a importância da escrita desde o século treze na região que atualmente corresponde a Etiópia, assim como outras áreas da África, em que a escrita em caracteres árabes teve relevo fundamental. O reconhecimento e idéia de que a literatura africana moderna nasce a partir da introdução da escrita na África pelos europeus levou o discurso crítico a uma dicotomia: a escrita é européia, a oralidade é africana. Nesta percepção binária, o acidental passa a ser encarado como essencial. Ou seja, a "natureza" cultural africana é oral; foram os europeus que vieram perturbar este estado "natural", que há algo de ontologicamente oral na África e que a escrita é um acontecimento disjuntivo e alienígeno para os africanos. A literatura oral era encarada como manifestação primária, simples, não sujeita ao trabalho reflexivo e resultante do trabalho de um só autor. E a oralidade, o signo da diferença africana no continente americano. Em conseqüência, no âmbito da literatura, o conto foi e continua sendo o instrumento narrativo por excelência do negro "africano" e dos afro-descendentes.
Ora, talvez mais do que qualquer outro gênero, o conto é universal e comum a todas as culturas e continentes. O fato de uma parte das sociedades africanas continuar a ser fundamentalmente camponesa e agrícola, e manter a s tradições como forma de reconstituição de sua bagagem cultural, não significa que o conto, a forma mais popular de transmissão de conhecimento e de cultura, seja necessariamente a forma "natural" ou "essencial" de reconhecimento da africanidade literária. Esta visão binária – conto/romance – enquadra-se em outras dicotomias mais vastas como África/Ocidente, espírito/razão, natureza/cultura, oralidade/escrita. O fato de o romance ser encarado como estranho à África é uma forma levada pelos europeus para o continente africano. Não significa, todavia, que não tenha raízes nesse novo espaço. Além do mais, como as sociedades ágrafas não eram percebidas como humanas pelos europeus, a escrita expressava uma forma para "confinar e delimitar uma cultura de cor", para tomar emprestada uma expressão de Gates.
Presumo que a escrita africana emergiu como resposta às alegações de sua ausência, uma vez que os africanos souberam responder "a essas alegações profundamente sérias sobre sua natureza do modo mais direto que encontraram: escrevendo livros". Para Gates, os escritores afros no continente americano, pelo próprio ato de escrever, "fizeram o primeiro gesto político" da tradição literária afro-americana, acusando assim "a ordem recebida da cultura ocidental, da qual a escravidão era, para eles, o signo mais saliente". A escrita, assim, registraria as vozes de um grupo com parcas possibilidades de exprimir sua voz. A escrita pois, ao fazer com que o livro fale, representa ao mesmo tempo uma apropriação da tecnologia do grafismo europeu e uma refutação da noção eurocêntrica segundo a qual a expressão escrita esgotaria as possibilidades de criação espiritual – a inscrição da voz negra na literatura faz desta mesma literatura o lócus da diferença negra baseada no vernáculo. A oralidade irrompe nesses textos enquanto a marca da diversidade.
A história do afro-brasileiro é a história desta luta – esta vontade de se atingir a autoconsciência, de fundir seu duplo eu num eu melhor e mais verdadeiro. Nessa fusão ele não desejava que nenhum de seus antigos eu se perdesse. Ele não queria africanizar o Brasil e a América, pois a América e o Brasil também tinham muito o que ensinar à África. Ele não queria alvejar sua alma numa torrente branca – americana, pois sabia que o sangue negro carrega consigo uma mensagem para o mundo. A literatura assim, pode ser entendida como um espaço de reconstrução de um eu afro-americano, de uma identidade étnica. Ela representa uma tentativa de encontrar um estilo que não viole os diversos componentes da identidade individual, na esteira de Michael Fischer (1986: 197), uma insistência num conceito multifacetado do eu que se reconstrói no ethos coletivo. Este processo de construção poética de uma identidade compreende a reconstituição poética de um mundo de experiência compartilhada a qual chamarei aqui de história em seu sentido narrativo, o que me remonta a Duby que as recordações estão em geral, revestidas pela imaginação de modo a compor uma imagem menos no passado que no sonho do historiador.
Por fim, se a literatura afro-brasileira constrói e reconstrói identidades étnicas, ela também possibilita a transformação das experiências cotidianas daqueles sujeitos em recordações, simbolizadas muitas vezes, num galho seco ou numa flor colocada nas senzalas.
*Cléria Botelho da Costa é professora Adjunta do Departamento de História da Universidade de Brasília e doutorada em História pela Universidade de São Paulo.
Data de criação em
11/12/2003 às 10h05
Autor: Tempestade Comunicação
(Fonte: http://www.bb.com.br/appbb/portal/bb/ctr/art/ArtigoCompl.jsp?Artigo.codigo=619)