A ALQUIMIA DO MOVIMENTO EXPRESSIVO


Uma pergunta que me fazem constantemente é: “Como o movimento expressivo pode ajudar no caminho do auto-conhecimento?” — Este texto é uma tentativa de responder à esta questão. Vamos começar com o seguinte diagrama:

   

Silêncio

 

Vivência

 

Integração

Concentração

 

Interior

 

Poética

 

Fisio-psíquica

no

Þ

| |

Þ

| |

Þ

| |

Movimento

 

Estado

 

Compreensão

 

Integração de

   

Contemplativo

 

Simbólica

 

Polaridades




1)
Concentração no movimento — Esse é o 1° passo do trabalho e implica em realizar o movimento com atenção em si mesmo. Essa atenção envolve observar não apenas o aspecto físico, mas também o lado psíquico como sentimentos, imagens, intuições. É importante notar não só o movimento que é feito, mas também como ele é feito e como se reage ao que é feito. Devemos perceber não só o que é despertado durante a execução do exercício mas também como isso vai, por sua vez, influir no que estou realizando. Portanto, o movimento expressivo envolve um diálogo contínuo entre o mundo interno e externo, entre corpo e mente, entre o físico e o psíquico, espírito e matéria. A interação dinâmica entre essas polaridades torna o movimento verdadeiramente expressivo, isto é, ele expressa algo, que é a vida interna criativa da pessoa que se movimenta. O resultado não é apenas uma repetição mecânica de uma forma externa indicada pelo orientador, mas uma criação espontânea e única, pois revela o momento e a individualidade da pessoa.

2)
Silêncio Interior, Estado Contemplativo — Ao criar essa atenção concentrada no movimento e naquilo que se sente ao realizá-lo, vamos “limpando” progressivamente nossa mente de todos os pensamentos supérfluos, distrações, julgamentos, críticas que interferem na atitude de observação receptiva, necessária para deixar aflorar as vivências interiores criativas e o movimento espontâneo. Chamo esse momento de silêncio interior porque essas vozes, que normalmente povoam nossa mente, vão se calando e produzindo uma sensação de calma e aquietamento. No silêncio a observação então transforma-se em contemplação, ou seja, não é uma observação fria e distante, mas uma percepção que interage com o que é percebido, sem perder sua clareza e equilíbrio. As imagens surgem, e ao contemplá-las deixo que atuem sobre mim, despertando meus sentimentos, sensações, os quais deixo que se expressem nos movimentos. Por alguns minutos todo o resto fica em suspenso, não anulado, porque sei que o mundo do cotidiano, o mundo que conheço normalmente está lá como sempre, mas nesse momento escolho entrar nesse silêncio, para contemplar o novo dentro de mim.

3)
Vivência Poética, Compreensão Simbólica — O silêncio interior e o estado contemplativo implicam numa suspensão temporária da razão crítica e analítica para abrir espaço para a razão poética e simbólica. Isso quer dizer que as imagens, sensações, sentimentos que emergem não serão submetidos a uma compreensão literal ou uma análise lógica porque isso seria desfazer o silêncio interior e perder a vivência criativa. Nesse momento o que importa não é saber porque essas imagens ou sensações emergiram, mas sim aceitá-las e desfrutá-las, dialogar, brincar com elas e permitir que a energia presente nestes símbolos flua e se expresse naturalmente, ludicamente. Quando sinto, por exemplo, que meu corpo desabrocha como uma flor, ou se contrai numa sensação de escuro e estreiteza; ou quando uma imagem de criança me convida a pular; ou quando o mar balança meus braços como uma alga marinha; ou minha boca se arreganha como num ataque de um tigre raivoso, percebo que são expressões poéticas, simbólicas da riqueza do meu ser e que posso desfrutar e me maravilhar com elas. Essas vivências fazem parte da alma humana e nos permitem perceber que é possível vivenciar a grandeza, tranqüilidade e magnificência de altas montanhas sem termos que viajar até os Himalaias. Mais até, fica claro que sem o contacto com essa vivência interior, nenhuma montanha, nem mesmo o Everest, será capaz de nos dar essas sensações. Essa percepção é a compreensão simbólica, aquilo que nos faz compreender a vida além do plano concreto e literal e que provoca o alargamento dos horizontes da nossa personalidade.

4)
Integração fisio-psíquica — Integração de polaridades — Assim, ao realizar os movimentos com atenção, criando o silêncio interior e o estado contemplativo, promovo a vivência poética e simbólica, que volto a expressar nos movimentos fechando o ciclo entre físico e psíquico, dentro e fora, corpo e alma. A energia flui de um pólo a outro proporcionando uma aproximação e integração entre o concreto e o abstrato, entre o real e a fantasia, entre o mundo do cotidiano e o mundo imaginário e, em linguagem psicológica entre o ego e o Self. Ambos os lados se beneficiam das trocas e interações realizadas. Aqui faço uma analogia com a Alquimia que busca o “casamento sagrado” entre os opostos (Lua e Sol, o Rei e a Rainha), para obter o nascimento da “Criança Divina”, da “Pedra Filosofal”, o “Ouro Interior”, que é a integração da personalidade, o casamento da alma e do espírito, do consciente e inconsciente.
Como disse Hermes Trimegisto, na Tábua Esmeraldina: “... o que está acima é como o que está abaixo...”. O que é abstrato, o mundo do espírito, o mundo dos arquétipos dos grandes valores deve descer para encontrar a alma, a psique e se expressar no mundo concreto, no corpo, na nossas atitudes. Por sua vez, o que “está em baixo”, a psique, o corpo, o ego se eleva com esse contacto, ampliando o significado da vida rotineira, encontrando um sentido maior nas nossas trivialidades, nos nossos sintomas, nos nossos humores. Ao prestar atenção ao meu mundo interior, começo a valorizá-lo e perceber suas diferentes nuances, sutilezas e o poder de suas imagens e sensações. Assim, o meu olhar para dentro provoca uma mudança no meu olhar para fora e toda uma visão de mundo se transforma. Essa transformação é a busca da Obra Alquímica: perceber que somos muito mais do que pensamos e muito menos do que poderíamos ser, que o nosso mundo interno está intimamente ligado ao mundo externo, e que nosso equilíbrio afeta o equilíbrio do Universo. Isso tudo pode ser compreendido a partir da percepção da integração do meu corpo e da minha alma, dentro de uma vivência poética arquetípica.
Utilizo a linguagem da alquimia baseada na obra de C. G. Jung, que resgatou o valor simbólico dessas imagens e conceitos para o nosso século. Jung via no trabalho alquímico um relato do processo de transformação psíquica e desenvolvimento de personalidade que ele chamava de processo de individuação. Os alquimistas trabalhavam com a matéria, e tentavam resgatar o espírito que eles julgavam ali aprisionado. Eles acreditavam poder transformar os metais não nobres, como chumbo ou ferro, no metal nobre por excelência, o ouro, através de várias operações alquímicas que iriam depurando a matéria bruta original até ela revelar sua essência, seu espírito: a Pedra Filosofal.
De modo análogo, trabalhamos com a matéria, que é o nosso corpo, e através dos movimentos vamos resgatando nosso espírito, ou o significado mais profundo dos símbolos adormecidos dentro de nós, promovendo assim a circulação da energia entre consciente e inconsciente. A pedra filosofal buscaria nesse processo é o encontro com o Self; o centro ordenador da personalidade, onde os conflitos são superados e os opostos harmonizados. Para isso, o trabalho com o corpo, com a matéria, é muito importante, pois grande parte da energia necessária para as transformações da personalidade (como: resolução de conflitos, mudanças de atitudes, etc...), está ligada à bloqueios somáticos, sintomas físicos, já que o corpo é muito pouco consciente para a grande maioria das pessoas.
Além disso, o fato do trabalho enfatizar a expressão criativa, faz com que a vivência poética das imagens, sentimentos e sensações se coloque num nível mais amplo da experiência humana, retirando o caráter apenas pessoal e particular do que é vivido. Jung chama esse lado mais amplo e geral da experiência humana, que é comum a todos os humanos, de arquetípico. O que acontece é que, ao desligar o diálogo interno, o foco da consciência que está no ego e que se ocupa com nossas vivências do cotidiano, se torna mais flexível e começa a se deslocar em direção ao Self que é o centro da personalidade mais ampla, e isso permite que entremos em contacto com níveis mais profundos do nosso ser. Essa experiência possibilita que o nível cotidiano e pessoal seja inserido num todo mais amplo, esquecendo e ampliando o significado da vida. Para cada pessoa os símbolos emergentes serão diferentes, até para o mesmo exercício, pois eles serão produzidos espontaneamente pelo inconsciente de cada um e não pelo ego, atendendo assim às necessidades mais profundas e especificas de reequilíbrio fisio-psíquico individual.
No Japão ainda se conserva uma dança cerimonial da corte do imperador, a qual se destina a manter a ordem e o equilíbrio no Cosmos. Quando realizamos movimentos com silêncio interior e profunda concentração o tempo pára e nos tornamos um com nosso corpo, nossa alma e com o Universo. É uma experiência magnífica e transformadora, que nos conscientiza da importância de cada um de nós para a manutenção harmoniosa do Todo. Creio que essa experiência é fundamental no caminho do auto-conhecimento, no caminho da individuação. Assim espero ter respondido a pergunta inicial desse texto. Gostaria de terminar com as palavras de Martha Graham, colhidas na sua autobiografia “Memórias do Sangue”:

“... Acho que a essência da dança é a expressão do homem — a paisagem da sua alma. Espero que cada dança que executo revele algo de mim ou alguma coisa maravilhosa que um ser humano pode ser.. É a eterna pulsação da vida, o desejo absoluto”.

Vera Lúcia Paes de Almeida
Texto publicado na Revista Hermes nº 2.

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