A ESPIRAL CONTEMPLATIVA

Movimento de meditação e máxima atenção, estado especial de consciência presente a todo momento, a contemplação dá sentido e intensidade à vida.

Contemplação. S.f.. 1) Aplicação demorada e absorta da vista e do espírito. 2) Meditação profunda. 3) Consideração, deferência. (Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa).
Contemplar envolve uma atitude, um gesto, um movimento, que em nosso imaginário estão relacionados, entre outras coisas, com uma posição estática, absorta, voltada para si mesma, como a escultura “O Pensador” de Rodin.
A obra de Rodin sugere a verticalidade, o mergulhar em si mesmo, a profundidade, o avançar penoso e com esforço para baixo e para dentro nas várias camadas do ser. É o trabalho e a atitude que associamos aos pensadores de várias áreas da cultura (cientistas, filósofos) e também à vida religiosa, monástica, de quem se dedica a uma existência de oração e contemplação divina, seja no Oriente ou Ocidente. Neste caso, a verticalidade volta-se para cima em busca do espírito.
Também assumimos uma atitude contemplativa ao defrontar-nos com algum problema existencial que nos obrigue a parar e refletir mais intensamente sobre a decisão a tomar, ou sobre o significado daquele evento em nossas vidas. Isso quer dizer que o contemplar está comumente associado a atividades distantes do cotidiano da maioria das pessoas, ou representa uma parada forçada, uma “quebra” no ritmo desse cotidiano — aliás, sentida como desagradável na maioria das vezes.
Além do movimento vertical, há ainda outra possibilidade contemplativa, ligada a um movimento circular horizontal: o objeto de contemplação é circundado, rodeado, visto e sentido de vários ângulos. A riqueza desse modo contemplativo provém não tanto da profundidade, mas da multiplicidade do enfoque. É uma atitude mais ligada ao mundo da criatividade e da natureza. Uma possibilidade de se ligar às coisas em volta, deixando o mundo interno se esparramar amorosamente sobre o mundo externo, ou de deixar o mundo externo exercer seu fascínio inspirador sobre nossa alma. A contemplação aqui não está tão associada ao esforço intelectual ou espiritual explícitos, mas a uma atitude lúdica, sensorial, afetiva na busca do significado em suas múltiplas formas ou expressões cambiantes. Para o habitante da cidade, parece uma possibilidade distante do cotidiano, associada a uma vida no campo, no contato com a natureza, ou a uma vida criativa com especial sensibilidade de expressão artística.
Com isso, vemos que grande número de pessoas não usufrui da atividade contemplativa em suas vidas, mergulhando num ritmo caótico, e extremamente desgastante porque não é determinado por uma escolha interna e sim por pressões externas. O que leva ao movimento do círculo vicioso. O gesto é repetitivo, mecânico, entediante e visa apenas a rapidez, a eficácia, o avançar sempre à frente. No entanto, é um movimento que não sai do lugar, pois retorna sempre ao ponto de partida sem transformações valiosas ou de grande monta. A ausência da qualidade contemplativa torna o trabalhar, o estudar, o criar filhos, o adquirir estabilidade, o fazer amigos algo angustiante e estressante para a maioria das pessoas. Vive-se numa busca frenética de informações igualmente velozes, que tanto se recebem quanto se produzem incessantemente, sem tempo para serem digeridas e transformadas em dados valiosos para a própria vida.

NÃO MAIS CÍRCULO: ESPIRAL — Parece que a contemplação não faz parte do mundo contemporâneo, a não ser para aqueles que se tornam representantes e depositários dessa atividade: pensadores, artistas e místicos. O que não é percebido é que eles apenas desenvolvem prioritariamente um potencial que pertence igualmente a todos os seres humanos: todos podem desenvolvê-lo. Como esse potencial é marginalizado, esquecido, pensamos ser possível viver sem atualizá-lo. Sim, podemos viver sem usar de nossa capacidade contemplativa, mas o resultado é uma perda de qualidade e intensidade em nossas vidas.
A contemplação fornece uma saída ao círculo vicioso ao realizar o movimento em espiral ascendente e descendente. Essa espiral une a verticalidade da contemplação intelectual e espiritual à horizontalidade da contemplação lúdica, estética, afetiva. Ao unir os dom movimentos (horizontal e vertical), além de maior flexibilidade e variedade de atitudes, encontramos certa desaleceração, certo afrouxamento no ritmo frenético do círculo vicioso. Surge então um relaxamento que permite a cada pessoa encontrar seu próprio ritmo perante as necessidades do momento e suas possibilidades internas e externas.
A contemplação também está associada ao olhar, a olhar alguma coisa com atenção e cuidado. O olhar para o mundo reflete nossa maneira de olhar para nós mesmos. Quando estamos no movimento de círculo vicioso, o olhar não estabelece contato, não cria envolvimento, não vê. Olhar o mundo com embevecimento e reverência é raro. Da mesma forma, nossas imagens internas são privadas desse contato e definham por falta de amor e atenção. Nada nasce e floresce espontaneamente na paisagem de nossa alma se tudo vem de fora já pronto, rotulado e catalogado. Com pressa e agitação eliminamos o mistério, a surpresa e o encantamento. Se mesmo assim algo novo teima em aparecer, logo é sufocado por nossa indiferença e desvalorização. Achamos que devaneios só produzem “bobagens” e que prestar atenção ao nosso interior é perda de tempo, “coisa de quem não tem o que fazer”.
Desenvolver uma atitude contemplativa é encorajar a criatividade da alma, valorizar suas imagens, sensações, sentimentos, intuições. É abrir espaço para reverência e encantamento diante do imenso poder da vida em suas múltiplas expressões. Reconhecendo e cultivando aquilo que sensibiliza nossa alma, revelamos sua luminosidade. É essa luz que, a partir de dentro, se estende sobre a vida dando-lhe beleza e significado.
Dentro de uma ampla concepção da vida, a morte se inclui como estágio transformador, pertinente e necessário. A contemplação também nos liga a partes duras, “feias” e difíceis que devem ser digeridas. Podemos, por exemplo, ver a inveja, o medo, a insegurança dentro de nós, e ver também no mundo a ganância, a violência, as guerras. Ao contemplar, não apenas olhamos, mas nos relacionamos com o objeto contemplado. Já que esse relacionamento vem do movimento horizontal, ele estabelece um elo afetivo, que nos toca e nos mobiliza, além do plano intelectual. Deixamos de ser espectadores passivos e percebemos a relação real entre o que somos e o que fazemos. Percebemos que tudo o que nos rodeia nos permeia e nos diz respeito.

MEDITAR É ESTAR INTEIRO — A contemplação busca diálogo e compreensão, sem críticas ou julgamentos. Por mais duros que sejam os acontecimentos, dentro ou fora de nós, eles pedem a atenção respeitosa e a reflexão aprofundada que o movimento vertical pode fornecer. Além disso, o movimento horizontal de “circum-ambulação” fornece novos pontos de vista, novas possibilidades de relacionamento com a dificuldade contemplada. Isso libera os conteúdos da sua forma fixa e literal possibilitando uma transformação mais poética, criativa e abrangente, seja na forma de relacionamento, seja no próprio núcleo da dificuldade.
A contemplação é benéfica tanto nos momentos difíceis quanto nos felizes, pois aprofunda e amplia as vivências, proporcionando maior aproveitamento da experiência. Muitas vezes deixamos escapar a intensidade de um momento de amor, de alegria, que pode nos nutrir, enriquecer e transformar, ao tratar a experiência superficialmente, sem reconhecer sua importância.
Ao contemplar alguma coisa, reconheço e afirmo sua existência. Posso realizar esse ato contemplativo comigo mesmo, com minha vida interior, iluminando e valorizando o que sou e, ao mesmo tempo, com o mundo que me rodeia. Qualquer objeto pode suscitar um estado contemplativo. A filosofia zen ensina que estar presente inteiramente em qualquer ação é estar em meditação. Por isso os monges zen aprendem a meditar nas atividades rotineiras como lavar, cozinhar, limpar. As artes em geral facilitam esse contato, desde que se permita uma apreciação cuidadosa e participativa — quer se trate de um belo poema, uma pintura, uma música. Podemos aproveitar qualquer evento da vida e transformá-lo em algo que nos sintonize com o potencial contemplativo — a natureza, uma conversa com um amigo, um momento de descanso, uma sombra na parede do quarto... qualquer coisa pode ser o catalisador desse processo.
A atitude contemplativa proporciona um estado especial de consciência que se reconhece mais facilmente à medida que lhe permitimos ocorrer mais e mais vezes. Há nesse estado uma sensação de inteireza, de presença, de lucidez e um profundo silêncio interior que produz paz, tranqüilidade e equilíbrio. Não há pressa, nem ansiedade, porque não é o resultado da contemplação que importa. É o próprio processo, o estar em contemplação, que traz a vivência de harmonia. Não temos que sair correndo para nenhum lugar, já estamos lá. As transformações ocorrem naturalmente num fluir contínuo e espontâneo. Aos poucos, o movimento espiralado da contemplação vai desalojando a correria desenfreada, o círculo vicioso, a angústia. Todos os compromissos cotidianos (os mesmos compromissos de antes) vão sendo cumpridos e realizados, agora com ritmo e qualidade vivencial totalmente diferentes. A vida passa a ter intensidade e significado.

O MAR NOS OLHOS DO MENINO — Para realizar nosso potencial psíquico de contemplação não é preciso ir para o topo do Himalaia, ou fechar-se num monastério, ou mesmo tornar-se filósofo ou cientista a pesquisar os mistérios do Universo. A contemplação é cultivada em nosso interior, em silêncio, e desabrocha para o mundo em reverência, respeito e compreensão para com o que nos cerca. Não é algo que nos conduz ao isolamento. Pelo contrário, nos aproxima da vida com mais intensidade, mais equilíbrio e amor.
A maturidade é a fase em que esse potencial se expressa mais pleno, pois é quando pode ser conscientemente trabalhado e aprimorado, fornecendo a base para a sabedoria do final da vida. Porém, em qualquer idade podemos vivenciar momentos com qualidade contemplativa, instantes de profunda integração e harmonia. Esses instantes são as sementes de algo que pode florescer em toda sua magnitude, se soubermos nos abrir para cultivá-lo. A escritora Marguerite Duras descreve poeticamente um desses momentos em
O verão de 80. Um menino, parado na praia, contempla o mar. Isso intriga aos adultos, que lhe perguntam, sem obter resposta, o que faz ali parado há tanto tempo:
“E de repente vê-se. Não se fazem mais perguntas a ele. Deixa-se o menino em paz. Vê-se que o esplendor do mar está ali, ali nos olhos, nos olhos do menino.”

Vera Lúcia Paes de Almeida

Texto publicado na Revista Thot nº 59

 

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