DANÇANDO
DE CORPO E ALMA
Na dança
expressiva, o feminino é cúmplice da linguagem do corpo e o
dançarino, entregue a si mesmo, vai desvendando símbolos do
Homem.
Duas polaridades da maior importância na vida humana —
matéria e espírito, ou corpo e alma — por muito tempo
estiveram separadas dentro de nós, lutando pela supremacia em
importância e grau de influência. Hoje sabemos que estão
profundamente interligadas, mas apenas começamos a entrever sua
interação dinâmica.
Pessoalmente, vivenciamos a matéria como corpo
e o espírito, como psique.
Mas, como estabelecer a relação que forma a unidade
matéria-espírito, corpo-psique? Isso ainda é mistério e muito
da beleza do ser humano reside nesse mistério. A questão é,
portanto: como aproximar-nos dessa dimensão, como enriquecer-nos
nesse contato sem reduzi-lo a algo já conhecido?
Tanto o corpo como o feminino nos ajudam a relacionar-nos com
esse mistério, sem equacioná-lo em fórmulas predeterminadas.
Porque o corpo que se expressa por uma linguagem não-verbal e o
feminino (qualidade psíquica que privilegia o conhecimento
intuitivo, poético, afetivo) favorecem a expressão simbólica.
Entre as várias possibilidades de trabalho com o corpo, a dança
expressiva é uma opção especial devido a sua própria
essência: o movimento expressivo. Um movimento que não é
mecânico, que busca na alma sua origem. Ao dançar, o corpo
expressa o mundo interno que, por sua vez, pode “falar”
através do corpo. Daí se produz uma intensa vivência do que
chamamos corpo-psique.
O que vemos no trabalho com a dança expressiva é que a pessoa
em contato com seu mundo interior dança mais movida por seus
símbolos que pela força de vontade que dirige a musculatura. É
a alma que dirige os movimentos. Da mesma forma que a
totalidadade da pessoa que se expressa no movimento, e não
apenas seu ego, sua consciência.
Outro aspecto muito importante do símbolo é que através dos
arquétipos ele religa o indivíduo à humanidade, trazendo urna
força revitalizadora ao mundo puramente pessoal. O símbolo
propicia a vivência do transpessoal. A dança, desde sua origem,
é veículo natural para esse contato com o sagrado, pois
estabelece facilmente a ponte para o mundo simbólico e
transcendente.
Vendo a dança desta forma simbólica, que vai além de seu
sentido mais concreto de bailado, podemos entendê-la como um
fluxo livre de energia, expressa, por exemplo, na luz de um
sorriso cativante — há pessoas que nunca dançaram no
sentido literal da palavra, mas que exalam graça e beleza em
cada gesto e atitude.
Podemos então imaginar a interação matéria-espírito,
corpo-psique como uma dança, a dança da celebração da vida.
O trabalho corporal, aliado ao potencial feminino, acompanha as
diferentes qualidades simbólicas que se expressam ao longo da
vida, nas sucessivas fases de evolução da personalidade.
FASE MATRIARCAL — Entrega
é a palavra-chave nesta fase. Aqui, o corpo se torna poroso,
macio, flexível, e pode vivenciar todas as qualidades do
feminino. Boas vivências nesta fase propiciam ao corpo o prazer
de estar em si mesmo, o prazer do acolhimento intrapsíquico,
fértil e harmonioso.
É muito importante que possamos encontrar em nós mesmos a
sensação de aconchego, de segurança e nutrição; um refúgio
tranqüilo que acalma e revitaliza antes, durante e depois das
batalhas da vida. Vivências de entrega prazerosa, de relaxamento
e abertura para o universo intensamente rico que nos oferece o
corpo, são peculiares da exuberância desta fase.
Como aqui estamos muito próximos do inconsciente, essas
vivências podem ser assustadoras e mesmo perigosas. Um ego que
não esteja bem estruturarado pode ser tentado a uma total
entrega e atolar-se num mar de prazeres, preguiça e inércia
inebriantes, retardando seu desenvolvimento. Ou mesmo ser tragado
por completo em uma viagem sem retorno às profundezas do
inconsciente. Exemplos disso são dependência do álcool, de
drogas, extrema passividade perante a vida e seus desafios,
psicoses etc. Por outro lado, enrijecimento defensivo contra a
aproximação do inconsciente pode causar, por exemplo, aridez
afetiva, tensões variadas.
A exuberância energética desta fase coloca-nos perante
vivências muito intensas de vida e também de morte. Por isso é
tão comum a dificuldade de entrega, tanto física como
psíquica. Um ego fortalecido, no entanto, pode vivenciar o
abandono a si mesmo como muito gratificante, vitalizante e
imprescindível para a plena experiência do estar vivo.
A dança expressiva favorece o encontro com essa dimensão. Há
um relaxamento natural, uma observação espontânea das
sensações e sentimentos. Com exercícios adequados cria-se
progressivamente uma identidade forte e flexível, que deriva da
aceitação do próprio corpo, com todas as suas potencialidades
e limitações. Antes de qualquer transformação, é preciso
conhecer-se e aceitar-se tal qual se é. Isto significa
entregar-se a si mesmo amorosamente, com confiança e alegria.
Internamente, o feminino receptivo abre os braços e acolhe a
personalidade em sua inteireza.
Uma conexão rica e forte com o próprio impulso vital (a fonte
geradora de vida) é a base de todo o processo de desenvolvimento
que virá a seguir. Daí a
importância da vivência harmoniosa do aspecto corporal nesta
fase. Como cantou o poeta Walt Whitman:
O próprio ser eu canto (...)
A vida plena de paixão
força e pulsão,
preparada para as ações mais livres
com suas próprias leis divinas (...)
FASE PATRIARCAL — A palavra-chave aqui pode ser
aprimoramento: o corpo começa a lapidar suas habilidades e
potencialidades. O máximo desenvolvimento corporal na forma
patriarcal vê-se em atletas, esportistas, bailarinos
profissionais; enfim, em todas as modalidades de atuação que
requerem domínio e precisão máximos das atividades físicas, e
mesmo no grande esforço e dedicação necessários para o
aprendizado inicial das ações de andar, sentar, manter o
equilíbrio etc.
À medida que vamos ampliando nosso mundo, nossa consciência
corporal torna-se cada vez mais diferenciada. As polaridades vão
ficando mais nítidas e precisas, sobretudo em relação a nossas
“facilidades” e “dificuldades”. Todos já
sentimos, por exemplo, quão desagradável nos parece nosso corpo
quando nos sentimos tímidos e deslocados em uma festa. Ou, pelo
contrário, como é prazerosa uma ação na qual nos sentimos
seguros e confiantes.
Nesta fase a diferenciação das potencialidades corporais,
quando aliadas ao feminino, é sentida como muito agradável,
pois se fundamenta na descoberta lúdica e não no aprimoramento
competitivo e na busca da perfeição.
A fase patriarcal oferece os canais de expressão para as
sensações que desabrocham na fase matriarcal. A sensação de
estar vivo expande-se e traz a necessidade de ação no amor, no
trabalho, no lazer, nos estudos etc. O corpo deve ser capaz de se
adaptar a cada situação de vida, contribuindo para a
realização da personalidade em expansão — gestos de amor
são diferentes de gestos no trabalho, e cada pessoa possui sua
maneira gestual específica de expressar sua individualidade. A
dança expressiva ajuda cada um a encontrar essa forma própria
de expressão, fortalecendo o ego em sua singularidade, em sua
diferenciação criativa.
O corpo na fase patriarcal não quer apenas
“desabrochar” como na fase anterior. Ele busca aqui
formas específicas de ação. Se o potencial feminino estiver
presente, essas formas de ação tenderão a preservar e fornecer
a harmonia e plenitude vivenciadas na fase matriarcal. Mantendo a
flexibilidade e a suavidade, o corpo torna-se firme, bem ancorado
nas pernas, decidido e autoconfiante.
A consciência, na fase patriarcal, afasta-se do inconsciente
buscando delimitação, orientação e precisão. A forma concisa
do haicai japonês exercita essas qualidades praticamente,
criativamente. Seríamos capazes de fazer o mesmo ao estruturar
nossas vidas? Conforme exprimem os versos de Bashô:
Canto e morte
da cigarra
na mesma paisagem.
FASE DE ALTERIDADE — Aqui a palavra-chave é integração.
O corpo se abre para as trocas, para o diálogo, percebendo as
influêcias recíprocas entre o mundo interno e o externo.
Na dança expressiva com outra pessoa temos um exemplo bem claro
desta troca. Um parceiro rígido demais tenderá a impor seu
movimento ao outro, a dirigir o movimento todo o tempo. Se, ao
contrário, for flexível demais, tenderá a ser levado e
dominado pelo outro parceiro. Portanto, a troca requer um
refinamento da sensibilidade em níveis muito sutis, onde nenhum
dos dois lados se impõe ou se deixa levar, mas acompanha o
movimento criado pelo par, de modo que a unidade
da dupla é que gera a dança.
Nesta fase, a vivência corporal se enriquece com o contato com
outras dimensões internas: sentimentos, intuições,
pensamentos, além do contato com o mundo externo. O corpo com
estrutura forte e eixo firme, obtidos na fase anterior, se
permite uma abertura para novas experiências, sem medo de perder
a consistência. Se na fase matriarcal o corpo é percebido
principalmente como fonte de prazer ou dor e na fase patriarcal
ele se torna instrumento para o exercício da força do ego,
agora nem domina nem é dominado, mas interage dialeticamente com
as outras dimensões da personalidade.
O desenvolvimento desta fase produz aproximação das polaridades
e o corpo pode abarcar a vivência de diferentes sensações e
sentimentos simultâneos sem tanto receio. A divisão entre
pensamento, sentimento, sensação e intuição não é estanque.
Tenho, por exemplo, uma sensação de bem-estar e tranqüilidade,
e não dou importância à opressão que sinto no peito. Ou
percebo a opressão mas não a ligo com algum sentimento de
insegurança, medo ou insatisfação. Nesta fase é possível
sentir-se bem e alegre e detectar, ao mesmo tempo, a opressão
que traz à consciência alguma ponta de dor e insatisfação. Um
pólo já não exclui necessariamente seu oposto.
Os referenciais bastante firmes e delimitados da fase anterior
tornam-se mais fluidos. A vivência corporal se expande desde os
níveis mais densos e concretos da matéria sólida até a
percepção de níveis mais sutis do corpo como fontes de
energia. Neste ponto, o potencial feminino é importante, pois a
percepção da matéria, do corpo além da realidade mais
concreta exige qualidades como intuição, abertura para o
mistério, criatividade e um alto refinamento da sensibilidade.
Quando alcançamos isso, as trocas se efetuam em vários níveis
de qualidade. O corpo não reage apenas aos pólos extremos, mas
aprende as gradações sutis entre os pólos e é capaz de variar
sua interação com o mundo interno e externo num diálogo
enriquecedor — entre o pesado e o leve há uma variação
enorme de intensidade, assim como entre o amor e o ódio e
qualquer outra relação polar, física ou psíquica. Na
interação dialética desta fase, o corpo descobre suas
infinitas possibilidades de expressão e troca, intercambiando os
opostos numa dança criativa:
o que muda na mudança.
se tudo em volta é uma dança
no trajeto da esperança
junto ao que nunca se alcança?
(Carlos Drummond de Andrade)
FASE CÓSMICA — Palavras-chave: transcendência-totalidade.
O corpo é vivenciado como parte de uma totalidade maior. Nesta
fase, as polaridades que dialogaram na fase anterior se unem em
uma nova síntese, ou seja, são transcendidas gerando uma
vivência de inteireza completude.
O corpo não é mais vivido como matéria, pólo oposto à alma,
à psique, mas, junto com ela, revela-se como uma nova unidade
criativa. Assim são possíveis novas experiências que podem
até fugir às experiências mais comuns no mundo físico que nos
rodeia. A ciência já está entrando nesse campo com as novas
descobertas da teoria quântica. O conhecimento da matéria em
níveis submicroscópicos já não provém da experiência
sensorial direta. Ao lidar com experiências não-sensoriais da
realidade, físicos nucleares tiveram de enfrentar aspectos
paradoxais de experimentos científicos, antes relatados apenas
por místicos e principalmente pela filosofia oriental.
A diminuição de tensão entre os opostos traz uma
transformação qualitativa que se traduz fisicamente numa
vivência de equilíbrio, harmonia, graça e firmeza. Em momentos
de profunda integração e transcendência, essa vivência
amplia-se para os chamados estados alterados de consciência, os
êxtases místicos, as experiências de iluminação (satori)
oriental. O fato de estar profundamente enraizada no corpo
permite à experiência ir além, perceber o mundo através das
aparências e sentir-se uno com ela.
Em sua auto-experiência, o corpo sente-se imortal na conjunção
com o self (sua dimensão energética-perene) e ao mesmo tempo
finito em sua mortalidade. A experiência corporal suprema de
vida e de morte é redimensionada aqui numa percepção
qualitativamente mais rica e elevada, pois o corpo já não se
identifica apenas com seu lado material-transitório, o ego, mas
experimenta sua outra dimensão, o self. Isso dá sentido e
significado ao processo de desenvolvimento, ou seja, de realizar
a si mesmo como unidade.
São Francisco, em suas conversas com os pássaros, com a terra,
com a natureza, atingia Deus. O centro já não está no corpo ou
na mente, transcendendo a polaridade, encontra-se no self que é
corpo e alma, natureza e divindade. O pássaro é Deus, Deus é o
pássaro e nós somos os dois.
Por fim, as duas pontas dos círculo evolutivo unem-se. Fase
matriarcal e fase cósmica, natureza e transcendência são uma e
a mesma coisa, cumprindo o anseio mais profundo de renascimento e
transformação do ser humano.
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha porque alta vive.
(Fernando Pessoa — heterônimo Ricardo Reis)
Vera Lúcia Paes de
Almeida
Texto publicado na
Revista THOT nº 61
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