O Amor. A Sabedoria do Coração

Vera L. Paes de Almeida.

“...Mas nada é possível sem amor e isso inclui até mesmo o processo alquímico, uma vez que só a pessoa apaixonada põe em jogo toda a personalidade e arrisca até mesmo a vida...”

(C.G.Jung)1


Toda criança sabe que além da vida cotidiana, prosaica há uma outra vida cheia de mistérios, encantamento e beleza, e para ela as duas são igualmente importantes e reais. À medida que crescemos vamos nos distanciando dessa unidade original e o lado imaginativo é abafado e perde relevância. Com isso, pouco a pouco se instala um sentimento de nostalgia, de ausência que é como uma saudade de si mesmo, desse outro lado esquecido e abandonado. Sentimos falta de algo importante mas não sabemos do quê. Para recuperarmos nossa integridade original será necessário um ato de coragem, temos que dar “um salto no escuro”, ou “atravessar a grande água” como diz o I Ching, ou ainda “chegar à outra margem” (prajnaparamita) como dizem os budistas, à outra margem que está em nós mesmos. É uma grande transformação, um morrer e nascer de novo, que só a força do amor é capaz de realizar. O amor é como um rio que une as duas margens naturalmente e traz vida, florescimento e fertilidade por onde passa. Às vezes impetuoso e devastador, às vezes calmo e tranqüilo, mas sempre em movimento, unindo, aproximando e transformando tudo à sua volta.
A força do amor é o grande dínamo propulsor do desenvolvimento de nossa função sentimento. Com a paixão aprendemos arte da entrega, com o amor cortês descobrimos o refinamento e a sutileza da alma, com as dores do amor desperta a coragem de olhar para nosso lado desconhecido e assustador, e finalmente, se formos fiéis à realidade arquetípica do amor conheceremos a sua presença numinosa e poética como um fluxo constante de vida.

“A experiência amorosa nos proporciona de modo fulgurante a indissolúvel unidade dos opostos. ...o amor a alegria do amor, é uma revelação do ser. Como todo movimento do homem, o amor é um “ir ao encontro.”
(Octavio Paz)
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A Paixão:

Todos conhecemos a força da paixão. Não há como lutar contra, ela é arrebatadora. Subitamente somos envolvidos por um vendaval que tira tudo do lugar e somos raptados de nós mesmos. O rapto é um tema constante nos mitos e expressa esse sentimento de perda de domínio sobre si mesmo, de rendição à um poder mais forte que o ego.
A paixão é excesso, transbordamento, tudo que passa dos limites, tanto nas sensações de prazer como de sofrimento. Assim, ao mesmo tempo que desejamos experimentar esse transbordamento, também temos muito medo da perda de controle e das dores que a paixão pode acarretar.
De modo geral, temos a tendência a rejeitar a paixão como um estado de perda de lucidez, de pouca maturidade e portanto uma ameaça ao equilíbrio, à serenidade e à sabedoria. Então, qual a utilidade da paixão? Por que a natureza insiste em nos jogar nesse estado turbulento, do qual não podemos fugir e, como ensinam os mitos, do qual nem os deuses escapam? Parece que a função da paixão é exatamente essa, nos tirar do centro da nossa própria atenção e nos forçar a olhar o outro. Estamos tão fortemente enclausurados em nós mesmos que só uma força arrebatadora como a paixão pode romper as defesas que construímos à nossa volta. Estamos como Narciso à beira do rio, fascinados com nossa imagem refletida nas águas. É preciso uma onda gigantesca para nos engolfar e nos forçar a mergulhar na torrente da vida. Só assim podemos começar a viagem que vai do egoísmo para o altruísmo.
É verdade que nesse estado apaixonado não vemos o outro como ele é realmente. Estamos misturados com ele, enredados nas nossas projeções, mas esse é o primeiro passo para o esclarecimento, pois sem ele ficamos apenas sentados à margem e não conseguimos quebrar o espelho. A cegueira da paixão pode ser o início do processo de abrir os olhos e “ver” realmente. Quando estamos apaixonados, nos esquecemos de nós mesmos e passamos a girar em tomo do objeto de nossa paixão. Pode ser uma pessoa, uma atividade, um ideal, não importa o quê, a paixão nos coloca em movimento e passamos a descobrir um mundo de coisas novas, tanto dentro como fora de nós. Temos a sensação de estarmos vivos, vibrantes, entusiasmados. O mundo se ilumina com mil significados e nos sentimos prontos a explorá-los.
A força da paixão é o impulso incial na longa jornada do aprendizado do amor. Ela nos vira do avesso, põe tudo de ponta-cabeça e com isso temos a chance de uma nova perspectiva, de descobrir novas possibilidades, novos caminhos, ampliando os horizontes da alma. É o início da descoberta da sabedoria do coração, aquele conhecimento que vem do envolvimento amoroso com a vida e não apenas intelectual.

O estado de apaixonamento se reproduz sempre que precisamos de um novo impulso. Ele aparece de modos diferentes, com intensidades diferentes, sempre se adaptando àquilo que precosamos aprender naquele dado instante de vida. É como se fosse um “chacoalhão” que nos tira da letargia, do entorpecimento e nos mostra a vida como uma aventura que espera por nossa participação ativa, que exige nosso envolvimento no processo contínuo de criação e atuação amorosa no mundo.

“Quando eu era jovem, a corrente que me arrastava
corria forte e rápida. A brisa da promavera derrotava-se
a si mesma, as árvores ardiam em flores e os pássaros
não dormiam, cantando sem parar,

Naveguei vertiginosamente,
arrebatado pelo dilúvio da paixão,
Eu não tinha tempo para ver sentir ou deixar que
o mundo entrasse em meu ser.

Agora que a maré da juventude
baixou e eu rumei na pria, posso ouvir
a profunda música de todas as coisas,
e o céu abre para mim o seu coração
cheio de estrelas.”


(R.Tagore)
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O Amor Cortês:

Passado o vendaval da paixão, podemos usufruir do amor no seu aspecto mais delicado e suave. Isso não quer dizer que ele não seja intenso, mas sua manifestação é menos turbulenta que a da paixão. O amor cortês ou lírico está baseado na entrega que vem da confiança mútua. É o olhar dentro dos olhos do outro sem medo, sem disfarces. Aqui se recupera a pureza e o frescor da alma nos sentimentos de ternura, de cuidado com o outro.
Esse tipo de amor nasce por volta do século XII, quando começa-se a valorizar a idéia do amor como uma escolha livre do coração. As qualidades enfatizadas pelo amor cortês são: a gentileza, a generosidade, a delicadeza de sentimentos e ações, a atenção ao bem-estar do outro. É o momento em que nasce Afrodite em nossos corações, em que desabrocha um sentimento de beleza que se estende de nós para o mundo à nossa volta. Há um aumento da percepção de detalhes belos e poéticos, e da importância do cultivo desses detalhes na nossa vida. A aceleração da paixão é substituída por uma vivência mais tranqüila e portanto mais atenciosa para consigo mesmo e com o outro.
A presença desse aspecto do amor torna o outro um ser especial e único. Confirma sua presença como um milagre raro que desperta sentimentos de respeito e reverência perante a vida, seja essa vida humana, vegetal ou animal. A força de união do amor nos coloca naturalmente em ligação com tudo que nos rodeia.
Aqui o amor revela toda sua capacidade de realizar transfomações profundas e sutis. É através dele que conseguimos nos experienciar genuinamente como pessoa abertas, generosas, alegres e afáveis através do prazer que usufruímos e não pelo dever que nos impomos.
O amor cortês foi cantado pelos trovadores da Idade Média, inaugurando uma nova era. Além da coragem nas batalhas, esperava-se que o cavaleiro também cultivasse a nobreza de sentimentos colocando-se a serviço dos pobres, oprimidos e injustiçados, sempre em defesa das mulheres, em especial daquela eleita pelo seu coração. É a primeira vez na história ocidental em que é valorizado o ato de amor desinteressado, que se alegra apenas por ser vivido em si, sem esperar recompensa (normalmente as musas inspiradoras já eram casadas, com uniões arranjadas por conveniência econômica ou política das famílias envolvidas).

Hoje em dia damos mais importância a sermos amados do que em
amar e não atentamos para o fato de que o estado amoroso é que torna a
vida mais bela quando o exercemos ativa e conscientemente. No entanto,
esse estado idílico está fadado a sofrer abalos, porque faz parte da vivência
amorosa passarmos pelas dores do amor. Parece que este é um dos
aspectos mais difíceis da aprendizagem humana. A individuação, ou o
desabrochar da alma parece depender basicamente desse aprendizado de
amor: como enfrentar as dores e sofrimentos e ainda continuar disponível e
aberto para o amor e para a vida. Aprender a amar pela alegria de amar,
em lugar do exercício do poder é obra do amor cortês.

“A noite em fim de caminho
e o calor da mão dela
ao meu lado em meio a neve.”


(T. Ishikawa)
4

 

 

As dores do Amor:

Não há quem não tenha sofrido as dores do amor, de uma forma ou de outra. Perda, rejeição, traição, ciúmes, separação... A “queda do paraíso” se repete muitas vezes ao longo de nossas vidas, de muitas maneiras e sempre é terrivelmente doloroso.
Se pensarmos no amor como um rio, podemos fazer uma analogia da paixão como um rio turbulento depois de fortes chuvas, extravasando sua energia para além das margens, carregando tudo por onde passa com sua enorme força. O amor cortês é o rio calmo e tranqüilo que se espraia suavemente pelo leito, irrigando suas margens num fluir contínuo e persistente. As dores do amor aparecem quando há uma interrupção desse fluxo: pode ser uma barreira intransponível como uma montanha, que obriga o rio a descer para dentro da terra, para o escuro subterrâneo desconhecido antes de poder vir à luz novamente; ou então, é o leito do rio que desaparece subitamente e suas águas devem ter coragem de se lançarem no abismo transformadas em cascatas; há ainda o perigo dos desertos que absorvem toda umidade do rio e o forçam a se evaporar e se transmutar em nuvens e depois em chuva antes de poder voltar a correr sobre a terra na sua condição original; temos também a estagnação traiçoeira dos pântanos que transforma o fluir cristalino do rio em águas paradas e salobras.
Cada imagem dessas se refere à um sofrimento e à um desafio a ser vencido: a depressão da separação, o abismo do luto, a aridez da rejeição, as águas movediças da traição e como essas muitas outras dores que se apresentam durante nossa vivência do amor.
Da mesma forma que tendemos a não ver aspectos positivos na paixão, também olhamos para esse sofrimentos como algo que devemos apenas superar o mais rapidamente possível. Pensamos que se há algum valor na dor e no sofrimento é aquele de testar a força de nosso caráter e de nossa capacidade de não sucumbir a eles. No entanto, há muito mais que isso nessa experiência. Assim como a paixão nos arranca do nosso egoísmo e nos força a ver o outro, o sofrimento nos leva a descobrir o outro sombrio dentro de nós, o nosso lado escuro, aquele lado para o qual nunca olharíamos de livre e espontânea vontade.
Toda vez que somos rejeitados, traídos, ou perdemos alguém ou algo muito amado podemos nos defrontar com sentimentos assustadores como: desespero, melancolia, ira, vingança, solidão, inveja, ciúme, enfim toda sorte de sentimentos desagradáveis e pouco nobres, em proporções e intensidade, às vezes, devastadoras. Portanto, o sofrimento nos obriga a olhar, a tentar compreender e por consequência a amar também esse outro lado terrível dentro de nós, porque só através desse olhar que busca compreensão e não julgamento, é que nos tornamos verdadeiramente humanos. Se negamos o reconhecimento a esse lado escuro teremos perdido a grande oportunidade de transmutá-lo e resgatá-lo da sua condição atroz. As frustrações têm a função de nos despertar, de quebrar as ilusões e de nos fazer avançar para a descoberta do verdadeiro amor. Sem esse encontro com nosso outro interno sombrio não há real encontro com qualquer outro externo.
A dificuldade de amar na nossa sociedade está estreitamente ligada a dificuldade de aceitar a dor e o sofrimento como parte natural da vida e, mais que isso, de percebê-los como grandes mestres e ajudantes, que nos apontam nossa real condição humana. Assim, a verdadeira vivência do amor depende de como nos relacionamos com nossas falhas e limitações e não de como nos livramos delas. Como Orfeu, por causa do amor, somos levados a descer aos infernos em busca da nossa alma perdida. Depois disso temos que confiar novamente na força do amor, e não mais olhar para trás.

“Na luz desse dia vazio de primavera, .
meu poeta, canta os dias que passam sem parar
que correm sorrindo e nunca olham para trás,
que desabrocham numa hora de prazer impensado,
e depois murcham num instante, sem qualquer pesar

Não fiques aí sentado, em silêncio,
desfiando o rosário das tuas lágrimas
e sorrisos do passado.
Não pares para colher as pérolas murchas
das flores da noite que se foi.
Não corras, procurando as coisas que escapam de ti,
nem para deslindar o significado que não é claro.
Deixa os buracos da tua vida onde eles se encontram.
É assim que a música
poderá emergir das profundezas”

(R.Tagore)5

 

O Casamento Interior:

Para que finalmente o amor vença e possa se expressar em toda sua pujança, numa sólida união duradoura, é preciso que aceitemos nosso parceiro interior sombrio sem nos identificarmos com ele. Isso quer dizer, atravessar a dor e o sofrimento sem nos tomarmos amargos, ressentidos, desconfiados, vingativos. É o mesmo desafio de um casamento externo: estarmos lado-a-lado com alguém sem sermos absorvidos ou tentarmos absorver o outro.
A persistência na abertura e disponibilidade amorosa, mesmo através de todas as dificuldades que a vida nos traz, vai cristalizando, solidificando uma integração interna que se traduz num sentimento de paz, alegria, entusiasmo sereno, que é uma transmutação do estado de paixão inicial num nível mais sutil da experiência amorosa. É como se houvesse um casamento entre o arrebatamento da paixão e a suavidade do amor lírico, dando origem a um estado amoroso de profunda intensidade com constância e fluidez.
No lado externo é como se o relacionamento amoroso se estabelecesse naquilo que há de mais essencial para as duas pessoas envolvidas. Surge uma união, uma conexão que vai além das particularidades pessoais e se traduz numa profunda compreensão do ser e da alma do outro.
Ao aceitar minhas dificuldades amorosamente, posso finalmente ter acesso ao verdadeiro perdão, para mim e para o outro, posso partilhar a vida com alguém que é meu igual na busca da felicidade, e aí surge a compaixão, a paixão compartilhada, o resultado do amor vivido com sabedoria. Onde antes haviam dúvidas, acusações, dores, limitações, encontramos apaziguamento, abertura, consolo e acolhimento. Assim, o amor começa a se estabelecer firmemente como uma vivência interna contínua, que se espalha dentro de nós e a nossa volta, como o perfume de uma flor.
A união interior produz pessoas “bem-amadas”, que fazem bem a si próprias e ao seu ambiente porque exalam abertura, compaixão, compreensão e alegria de viver. No Ocidente não temos uma palavra para nomear esse estado amoroso, mas na Índia existe o termo “ananda”, que poderíamos traduzir aproximadamente por beatitude, o que designaria um sentimento amoroso de alegria e serenidade. Seria a vivência afetiva que acompanha o estado de iluminação, o qual nada mais é que essa união interior que integra tudo o que antes estava dividido, separado, desconectado. Na China a expressão usada é “estar no Tao”, estar em concordância com o fluxo do Universo. Nesse ponto, estamos perenemente no movimento contínuo do amor, estamos fora do tempo e do espaço (como bem sabem os apaixonados), experimentamos a felicidade suprema, somos eternos, nos descobrimos, enfim, crianças felizes no colo de Deus. O
rio do amor, no qual nos fundimos, desemboca no oceano da eternidade, e
descobrimos, finalmente, o real poder do amor, a sabedoria do coração.

“O meu coração, pássaro do deserto,
revoa no céu dos teus olhos.
Teus olhos são o berço da manhã,
o reino das estrelas e a profundeza
onde as minhas canções se perdem.

Deixa que eu mergulhe neste céu
imenso e solitário.
Deixa que eu penetre as tuas nuvens
e abra minhas asas em teu sol.”
(R.Tagore)6

***

Referências Bibliográficas:

1. Serrano, M. “O Circulo Hermético”. 1973. Ed. Brasiliense. S.P.

2. Paz, O. “O Arco e a Liraö. 1982. Ed.Nova Fronteira. S.P.

3. Tagore, R. “Presente de Amante e Travessia”. 1991. Ed. Paulus. S.P.

4. Ishikawa,T. “Tankas”. 1985. Roswitha Kempf Ed. S.P.

5. Tagore, R. op. cit.

6. Tagore, R. “O Jardineiro”. 1991. Ed. Paulus. S.P.

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