O
Arquétipo do Caminho
Vera
Lucia Paes de Almeida
“Ao meio da
jornada da vida, tendo perdido o caminho verdadeiro, achei-me
embrenhado em selva tenebrosa.” (Dante Alighieri, A Divina
Comédia)
O Arquétipo do
Caminho, da Jornada, da Peregrinação fala da eterna busca da
alma pelo seu centro. Ele se torna consciente quando percebemos
que nossas vidas traçam um longo percurso cujo sentido e
significado vai se revelando à medida que avançamos na nossa
caminhada. Geralmente é por volta da metade da vida que entramos
em contato com esse arquétipo. Isso porque, já percorremos um
bom pedaço da estrada e podemos olhar para trás e avaliar nosso
percurso, bem como podemos olhar para frente e ajustar nossos
passos rumo a objetivos mais abrangentes e diferenciados. É o
momento ideal para se fazer um “balanço”, uma
avaliação de nossa proposta de vida e permitir mudanças
revitalizadoras, novos trajetos e pontos de vista.
Aqui vamos falar um
pouco sobre quatro aspectos que se relacionam com a vivência
desse arquétipo e dos símbolos correlatos.
O Jardim das
Delícias. A Expulsão do Paraíso.
Esse é o princípio de
tudo: o jardim do Éden, como aparece na tradição
judaico-cristã, mas também de inúmeras outras formas análogas
em várias culturas. Há sempre um início paradisíaco, uma
condição original de abundância, plenitude, felicidade,
inocência, onde todos os seres convivem em harmonia e não há
escassez, doença e morte. A idéia de um paraíso perdido, uma
Idade de Ouro que remonta à origem dos tempos, é um arquétipo
universal que revela a nostalgia por uma condição de harmonia
que foi perdida e para a qual desejamos retornar.
Efetivamente todos nós
já experienciamos uma condição de plenitude no início de
nossas vidas, dentro do útero materno: lá onde a temperatura, o
alimento, a proteção estavam sempre presentes sem que
precisássemos fazer qualquer esforço; lá onde não havia
separação, dualidade, angústia ou perdas e estávamos imersos
e fundidos na totalidade. No entanto, se quisermos crescer e nos
desenvolver chega o momento em que temos que abandonar esse
paraíso e como no Gênesis, somos expulsos da nossa inocência
ou inconsciência original para que possamos aprender, a
desenvolver a consciência e iniciar a jornada.
Esse período inicial
é muito importante porque permanece como referência de um
estado de harmonia e plenitude que já foi vivido realmente e que
portanto pode ser recuperado. Nos momentos mais difíceis e
dolorosos essa vivência inicial pode servir como a chamada
“luz no fim do túnel” e ser nossa guia rumo a saída
para o sol. Porém, se nos recusamos a sair desse paraíso ele
rapidamente se transforma e pode nos devorar, impedindo nosso
crescimento e desenvolvimento. A “Mãe Amorosa” se
revela então como a “Deusa Destruidora”, os animais
amigos se transmutam em dragões e monstros ameaçadores. Assim,
querendo ou não, somos lançados na outra etapa do caminho.
O Início da
Jornada. O Labirinto.
Toda vez que
abandonamos uma situação conhecida e cômoda, que no entanto
já estava esgotada em suas possibilidades de crescimento, é
como se saíssemos do regaço materno, da segurança do paraíso
para nos perder no caos de um mundo sem referências, a selva
tenebrosa de Dante. Esse início de jornada pode ser voluntário
ou forçado por uma circunstância adversa que a vida nos
proporciona, mas em ambos os casos é sempre um período muito
difícil. Não há sinais de orientação, não há estradas
retas e bem demarcadas, não sabemos para onde ir, como ir e o
quê procurar. Temos que ir andando às apalpadelas, tateando,
caindo e levantando. É um período perambulação mas também de
grandes possibilidades de evolução. Nos tornamos peregrinos,
buscadores e experimentadores e é exatamente esta incerteza que
abre espaço para o “novo” surgir.
Caminhar dentro do caos
com paciência, persistência e abertura para acertos e erros,
faz surgir uma nova luz, uma nova percepção e o labirinto se
revela como um caminho espiralado que pode nos levar ao centro,
ao tesouro perdido, à harmonia e paz do paraíso. Mas, durante a
caminhada no labirinto não sabemos se estamos próximos ou não
do centro. O caminho de volta também não é evidente e assim
temos que aprender a enfrentar nossos medos e não fugir dos
desafios. Isso nos leva a próxima característica simbólica da
nossa jornada.
As Tarefas do
Percurso. O Herói.
Ao aceitarmos a
caminhada e os desafios que ela nos propõem, começamos a
vivenciar outro arquétipo que nos ajuda a cumprir nossas
tarefas: o arquétipo do herói. Este arquétipo é a vivência
do desenvolvimento da nossa força, das nossas habilidades, do
nosso saber, das potencialidades ignoradas que vão se
aprimorando à medida que enfrentamos nossos monstros interiores.
É preciso muita
coragem para entrar no labirinto e se perder antes de poder se
encontrar. No entanto, esta não é a prova mais difícil. Depois
de termos vencido nossos medos, fragilidades e limitações e
termos cumprido com as tarefas que a vida nos propõe, começa
outra etapa que é o aprendizado da humildade. Temos que
reconhecer que mesmo sendo heróico, o ego está subordinado a um
princípio maior, e que só a conexão com este princípio pode
proporcionar sentido e significado a todas as conquistas obtidas.
O herói não pode ficar preso na armadilha da sua própria
habilidade e força em vencer os dragões, ele deve vencer
também a sua vaidade e prosseguir a caminhada rumo ao centro.
Para isso ele tem que reconhecer que sua força provém
exatamente desse centro. Esse reconhecimento permite que o
arquétipo do herói se transmute no arquétipo do Sábio e é
essa vivência de sabedoria que finalmente nos leva de volta à
casa, ao paraíso perdido.
O Retorno ao Centro.
Estar no centro é a
vivência de recuperação da harmonia, da paz e do equilíbrio
perdido. É a volta à casa, à experiência de plenitude
original só que agora não mais vivida inconscientemente como no
início. Agora a experiência é produto de uma busca consciente
e voluntária.
A caminhada no
labirinto se transforma em “circum-ambulação”, ou
seja, caminhamos agora em torno do centro, de onde emana nossa
força e alento. Estamos novamente próximos da fonte original de
inesgotável abundância, felicidade, amor, beleza e sabedoria.
Quando o ego e o Self se encontram há uma intersecção do mundo
visível com o invisível, um casamento do Céu com a Terra, do
sagrado com o profano e abre-se a porta para transformações
profundas que vão além da compreensão intelectual. A
personalidade se amplia para receber a vivência do numinoso e
finalmente exercer sua totalidade.
Depois de conseguirmos
chegar ao centro e sermos abençoados com essa vivência temos
que retornar à vida cotidiana e compartilhar o que recebemos,
compartilhar o tesouro encontrado. Só assim se completa o
círculo da jornada que temos que percorrer infinitas vezes
durante a vida. O arquétipo do caminho se revela enfim como uma
pulsação em torno do centro, em um ir e voltar, um achar e
perder o rumo, em idas e vindas constantes que vão tecendo um
desenho com mil cores e formas, que se desmancham e voltam a se
formar, como as belas mandalas de areia tibetanas. E assim como
as mandalas nos ensinam, também o nosso caminhar nos revela que
o essencial está sempre presente e está além de todos os
caminhos. Ele engloba tudo: o paraíso inicial, o labirinto das
ilusões, as lutas do herói, a chegada ao centro e se faz
presente em todos os grandes e pequenos momentos, a cada gesto e
curva do caminho.
“A
senda é a companheira que desposei.
Ela
me fala debaixo de meus pés o dia todo,
e a
noite inteira canta para os meus sonhos.
O
meu encontro com ela não teve início.
Ele
começa infinitamente ao raiar de cada dia,
renovando
o seu verão em novas flores e canções,
e
cada novo beijo dela é o seu primeiro beijo para mim.
A
senda e eu somos amantes.
A
cada noite eu troco de veste por sua causa,
e a
cada amanhecer eu deixo nas pousadas do caminho
o
estorvo dos velhos farrapos.”
(R.
Tagore, Presente de Amante e Travessia)
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