O
FEMININO RESGATADO
OU A
POESIA NO COTIDIANO
A
dimensão poética do feminino, que dá sentido à vida, não é
exclusividade da mulher: ela faz parte da evolução de todo ser
humano.
“O
que falta ao nosso mundo é a conexão anímica.” A
afirmação, de Carl Gustav Jung, poderia ser complementada por
outra, de Roger Garaudy: “Viver, antes de mais nada, é
participar do fluxo e da pulsação orgânica do mundo”.
A conexão anímica citada por Jung e a qualidade de vida
proposta por Garaudy estão estreitamente vinculadas ao que
chamamos de feminino no ser humano: um potencial interno a ser
trabalhado tanto no homem como na mulher, feito de valores hoje
considerados supérfluos, superficiais, pouco utéis para a luta
pela sobrevivência básica e por isso relegados a um segundo
plano.
Entre esses valores estão a estética, a intuição, a poesia, o
raciocínio e o pensamento não lineares, os sentimentos, a
sincronicidade, os sonhos... Abrir-se para o feminino, portanto,
é entrar em um mundo de mistério e encantamento — uma
vivência poética que dá cor, entusiasmo e significado à vida.
De acordo
com Erich Neumann, um dos seguidores de Jung, a civilização
ocidental vive uma crise motivada pelo excesso de valorização
do masculino, representado pelo arquétipo do Pai, que leva à
inflação espiritual do ego.
O reequilíbrio pode ser obtido aproximando-nos do inconsciente,
representado pelo feminino, não só através do arquétipo da
Grande Mãe, mas de todas as qualidades simbólicas
do feminino pertinentes aos vários ciclos evolutivos da
consciência.
Outro
grande perigo da atualidade citado por Neumann é a
desvalorização das forças transpessoais. Tudo o que não pode
ser compreendido e analisado pelo ego não é encarado com
respeito, mas simplesmente reduzido, como algo sem importância
ou ilusório. Anulado, reprimido ou ignorado, o mistério perde
sua força. Assim, o universo perde seu caráter assustador, mas,
sem o mistério sagrado que transcende o ego, a vida torna-se
mecânica e sem sentido.
A vivência do feminino não torna menos árdua a luta pelos
objetivos e metas propostas pelo mundo atual. Mas pode
transformá-la em uma aventura corajosa e criativa, com surpresas
agradáveis, mesmo através das dificuldades.
Pela sua própria condição biológica, a mulher está
naturalmente mais próxima do feminino. Ao contrário do que se
poderia pensar, essa proximidade às vezes dificulta o
desenvolvimento desse potencial, porque o coloca muito próximo
de um nível de atuação inconsciente. Tanto quanto o homem, a
mulher deve se esforçar conscientemente
para diferenciar e desenvolver os valores pertencentes ao
feminino.
O
potencial feminino passa por um desenvolvimento simbólico ao
longo da vida. Para estudar melhor as possibilidades que se abrem
em cada fase evolutiva, vamos nos reportar ao referencial que
propõe o analista junguiano Carlos Byington: fase matriarcal,
patriarcal, de alteridade e cósmica.
Fase 1
matriarcal — Aqui, o feminino encontra-se em seu próprio
elemento, pois o arquétipo dominante é o da Grande Mãe.
Devemos observar, porém, que além das valores conhecidos,
pertinentes ao aspecto maternal do símbolo, há outras
características do feminino igualmente importantes.
Neste estágio psíquico, a consciência não se encontra ainda
completamente destacada do inconsciente; é permeada pelo seu
fluxo, tornando-se difusa e periódica. Essa condição favorece
muito a inspiração criativa, a intuição, qualidades que
emergem de modo misterioso, não influenciáveis pela vontade do
ego. Convém lembrar que o inconsciente é que é criativo, não
o consciente. Portanto, maior abertura e proximidade do
inconsciente favorecem a expressão criativa, em todos os
níveis, seja ela artística, científica, ou uma busca de novas
atitudes.
Outra
qualidade do feminino à disposição de homens e mulheres é a
consciência do tempo lunar, que enfatiza a qualidade, e não a
quantidade de tempo. Com o desenvolvimento desse potencial,
podemos abrir-nos para a apreciação do momento mais favorável
à execução de determinadas açõees ou objetivos. O tempo
solar seria o pólo masculino, o que enfatiza a pontualidade e a
exatidão da ordem cronológica temporal.
A
compreensão relacionada com o feminino não se dá por um ato do
intelecto. É o coração, e não a cabeça a sede da
consciência matriarcal. No entanto, como as percepções estão
conectadas com o ego, não podem ser consideradas inconscientes.
A compreensão acontece por uma abertura afetiva a um novo
conteúdo que, assimilado pela totalidade da pessoa, provoca uma
alteração global — e não apenas intelectual — da
personalidade.
O
feminino, com seu caráter restaurador (pois enfatiza a quietude,
a tranqüilidade, o mistério), está ligado às qualidades
noturnas. A força regeneradora do inconsciente atua em segredo e
permite que nos aproximemos dessa dimensão, às vezes
assustadora, da escuridão, através da suavidade da feminino.
Para desabrochar com segurança, o crescimento, a regeneração,
a transformação, precisam das qualidades femininas do
silêncio, da paciência, da receptividade.
Outra
qualidade importante é a ação pela entrega, pelo “deixar
acontecer”, a “ação pela não-ação” dos
orientais, o aprendizado do acolhimento, não só na maternidade
biológica, mas no carregar e deixar amadurecer uma nova
cognição, uma nova atitude.
Para a
mulher, o maior perigo nessa fase é justamente atuar o feminino
apenas no plano externo, concreto, projetando-o na maternidade
biológica. Quando isso acontece, o feminino não se desenvolve
no plano interno, simbolicamente, e então ocorre urna grande
perda para a personalidade, em termos existenciais.
Para o
homem, o feminino será realizado, necessariamente, como evento
psíquico e não físico. E ele também tem que se defrontar com
um perigo intenso: a permanente desvalorização do feminino.
Como a consciência deve se desligar do inconsciente e seguir
para a fase patriarcal, tudo o que estiver ligado à fase
matriarcal deverá ser momentaneamente desvalorizado para
permitir o desligamento e a passagem à fase seguinte. No
entanto, muitos homens (e mulheres também) permanecem fixados na
desvalorização do feminino, encarando suas qualidades como algo
negativo, a ser superado em definitivo, e não conseguem
recuperar, em si mesmos, a força simbólica desse potencial.
Na fase
matriarcal, o feminino desabrocha em sua plenitude para homens e
mulheres e permanece durante toda a vida como fonte revitalizante
de imensas possibilidades criativas e sensíveis, onde podemos
nos nutrir para ampliar e enriquecer nossa essência humana.
Fase
patriarcal — Nesta fase, a consciência destaca-se por
completo do inconsciente para formar um ego forte, que dirige a
libido de acordo com sua vontade rumo à organização e à
discriminação. O arquétipo da Grande Mãe é substituído pelo
arquétipo do Pai, a lua dá lugar ao sol e as novas conquistas
são simbolizadas pelas façanhas do herói. O princípio
masculino aqui está “em casa“, como estava o feminino
na fase anterior. Com a modificação da consciência, o feminino
também sofre transformações que ampliam seu significado. O que
não quer dizer, como freqüentemente se supõe, que o feminino
se transforme em masculino.
As
qualidades do feminino (suavidade, intuição, aceitação, tempo
lunar qualitativo) nesta fase se fortalecem e tomam forma mais
definida pelo seu exercício consciente
e ativo, tanto no
círculo familiar, mais íntimo, como no espaço mais amplo das
várias relações afetivas e sociais. Conquistando novos
espaços, essas qualidades serão fortalecidas e diferenciadas
através da consciência patriarcal, que possibilita a formação
de canais individuais mais assertivos de expressão.
À mulher,
essa atuação consciente e decidida dos valores femininos
proporciona uma auto-confiança fundamental na sua própria
essência. Para o homem, passada a etapa de afirmação de sua
identidade masculina, o encontro com o feminino representa a
conquista da própria alma.
Na nossa cultura, a consciência patriarcal foi levada ao
extremo. A aceleração do ritmo vital, a excessiva
competitividade e agressividade prejudicaram a qualidade de vida
em geral. Hoje, as pessoas têm muito mais conforto devido ao
enorme avanço científico-tecnológico, mas já não possuem
tantas possibilidades internas de desfrutar esse bem-estar,
porque o feminino pouco desenvolvido tomou a vida sem significado
existencial.
O objetivo de atingir status, estabilidade financeira, acesso aos
bens materiais, simboliza, mais que simples conforto, o sucesso
do ponto de vista patriarcal. A vivência e o desenvolvimento dos
valores ligados ao potencial feminino são desvalorizados, e é
necessária grande ousadia para buscá-los na atual sociedade. Os
desafios não são poucos. Em primeiro lugar, temos que usar de
toda a capacidade discriminativa da consciência patriarcal para
delinear de maneira precisa os valores do feminino a serem
resgatados, preservados e desenvolvidos. Em segundo lugar, temos
que ampliar o exercício desses valores (suavidade,
receptividade, compreensão lunar) do círculo familiar, amigos e
pessoas próximas para a sociedade em geral, inserindo essa
ação em nosso cotidiano. Isso requer a persistência e a
tenacidade da consciência patriarcal, usadas a favor do
feminino. Por último, temos que expressar o feminino sem que
perca sua essência.
Tais tarefas requerem a força do herói, pois tentam recuperar o
respeito, a dignidade, a civilidade no contato humano, hoje tão
raros. O feminino tem a faculdade de estabelecer vínculos,
relações, tanto externos como internos. Com a consciência
patriarcal, passamos a nos diferenciar do outro, a ter uma visão
do outro. O feminino faz a ponte, a conexão entre eu e outro,
trazendo uma qualidade afetiva à relação. Vivida internamente,
essa qualidade afetiva estabelece contato com a vivência
poética inerente a cada ser humano e abre as portas para outra
visão de mundo que complementa e equilibra a anual — e
dominante — consciência patriarcal.
O
estabelecimento de uma vivência poética no cotidiano não pode
ser deixado ao acaso. Essa vivência deve ser desejada, buscada e
trabalhada criativamente. Portanto, o irromper dos valores
femininos na fase matriarcal não é o bastante. Sua continuidade
depende das qualidades positivas da consciência patriarcal, que
favoreçam seu desenvolvimento.
Fase da
alteridade — Se na fase anterior o feminino foi delineado e
expresso com clareza, podemos ingressar na fase da alteridade. Os
arquétipos regentes são a Anima e o Animus e o objetivo é o
encontro e a aproximação das polaridades. O feminino ampliase
ao incluir seu oposto, o masculino, e vice-versa. Ambos são
vividos como duas totalidades que se encontram e estabelecem o
que Jung chamou de relacionamento “quatérnio”.
O feminino poderá expandir-se muito mais, valendo-se de seu
poder criativo, para encontrar novas maneiras de expressão da
consciência. Essa criatividade é absolutamente necessária à
transformação dos valores patriarcais que se baseiam na
consciência tradicional e conservadora do coletivo.
A luta pela afirmação do feminino já não é importante nesta
fase. Assim, essa energia pode ser dirigida ao diálogo, à
escuta, à reflexão que inclua o oposto. As qualidades do
masculino serão vivenciadas como complementares e não mais como
antagônicas. As projeções podem ser retiradas; o encontro do
feminino com o masculino pode ser vivido internamente. Novas
possibilidades desabrocham — por exemplo, a percepção de
que a suavidade possui grande força intrínseca, de que o
pensamento lunar, do coração, possui sua própria lógica, de
que a capacidade de entrega é uma escolha ativa e não um mero
abandonar-se passivo. Os valores do feminino, enfim, incluem os
valores do potencial masculino naturalmente, do mesmo modo que no
símbolo do Tao o lado
escuro contendo um ponto claro e o lado claro contendo um ponto
escuro estão em constante movimento e inter-relação.
Esse
diálogo, essa dança entre as polaridades é a grande tarefa a
ser cumprida pelo homem e pela mulher: o lado prático e o lado
sensível expressando-se ao mesmo tempo, superando a
dissociação interna.
Fase
cósmica — É difícil falar com precisão desta fase, pois
ainda estamos, enquanto humanidade em geral, na transição da
fase patriarcal para a fase de alteridade, que apenas começamos
a desenvolver. No entanto, ela não é uma completa desconhecida,
pois temos a possibilidade de vivenciar momentos integrativos que
nos dão um vislumbre bastante eficaz de suas possibilidades
existenciais.
Aqui, o arquétipo regente é o self. Depois da integração
obtida na fase anterior, o coletivo é a transcendência das
polaridades, que nos leva à vivência da totalidade.
As qualidades do feminino que desabrocharam na fase matriarcal,
discriminadas na fase patriarcal e complementadas pelo seu oposto
e integradas na fase de alteridade, serão agora vivenciadas de
modo espontâneo na sua totalidade, desapegadas dos papéis
sociais polarizados que ajudaram no seu desenvolvimento. Por
exemplo: mãe-pai, filho-filha, marido-esposa. Pois agora o
centro da consciência não é mais o ego e sim o self, que é o
centro da psique unificada.
Na fase de alteridade, a forma convencional e coletiva de
personalidade é descartada para que a individualidade
desabroche. Isto feito, abre-se a porta para a vivência do
aspecto transpessoal, onde não mais existe a divisão
feminino-masculino e se torna possível a vivência real dos
seres humanos em sua totalidade. Como conseqüência, a visão de
mundo também é radicalmente transformada.
As qualidades da feminino serão agora vividas em uma esfera
superior, porque foram conscientizadas e transformadas ao longo
de todo o processo de desenvolvimento. Agora elas se unem no que
poderíamos chamar de uma nova síntese de sabedoria, expressa
através de serenidade, lucidez e harmonia. O self pode
expressar-se de modo mais feminino ou mais masculino, apenas no
que diz respeito à ênfase no modo de expressão, pois o todo
está sempre presente indiviso. Como exemplo, podemos lembrar Lao
Tsé, que transmitiu sua sabedoria de modo feminino ao usar a
linguagem poética em seus escritos.
Assim, o feminino pode se revelar nesta fase como um valor
espiritual vivenciado internamente e não mais projetado no
mundo. O inconsciente urobórico do início torna-se sagrado,
numinoso e, através do longo processo de desenvolvimento,
leva-nos ao si-mesmo.
Vera Lúcia Paes de Almeida
Texto publicado na Revista THOT nº 58.
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