O
MITO DO GRAAL
Às portas do 3° milênio, o mito do Graal ainda é portador de símbolos importantes que não foram totalmente absorvidos e assimilados pelo homem ocidental. O cristianismo com seus valores profundos de amor, tolerância, fraternidade
ainda está longe de ser vivido na sua real dimensão. Os ideais de nobreza de caráter, retidão, honestidade, presentes nas ordens de cavalaria medievais e representadas no mito por
Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, também são apenas ecos de um passado romântica e imaginário, dificilmente vividos no nosso
cotidiano. Portanto, a reflexão sobre este mito, que ainda provoca a imaginação criadora de tantos
artistas na literatura, no cinema, no teatro, etc. é bastante necessária e atual.
Para facilitar a compreensão da saga de Artur e de seus cavaleiros na busca do Graal, proponho dividir a história em três fases : 1°)
O Caldeirão: o período que precede o nascimento de Artur; 2°) A Távola
Redonda: o reinado de Artur e seu declínio; 3°) O Graal: a busca do cálice sagrado.
Podemos fazer um paralelo entre essas três fases do mito e as três idades da História segundo Gioacchino de Fiori : a Idade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Gioacchino foi um místico contemplativo (l135-1202), que através de suas visões formulou a concepção da História como um processo que se desenvolve nestas três etapas. Suas idéias tiveram grande repercussão e podem nos ajudar a ampliar o significado do mito do Graal observando como o símbolo do cálice se transforma de acordo com a época e com as necessidades psíquicas concomitantes, que se unem para a criação dos símbolos.
1°) O Caldeirão: Essa primeira fase é representativa do período inicial do mito. Depois do domínio romano, no que hoje seria a Inglaterra, vários reis lutam contra a invasão dos bárbaros, tentando preservar o país. É um período de caos, guerras, fome e desordem. Predomina a lei do mais forte. Para estabelecer a ordem é necessária a lei do Pai, segundo Gioacchino, o poder do Velho Testamento, o comando implacável de uma autoridade férrea e com uma disciplina rígida. É o período do Guerreiro. Também na nossa evolução psíquica precisamos desenvolver um princípio de ordem para sair do caos do inconsciente original, mas com isso perdemos o potencial positivo dessa fase representada pelo Caldeirão, a força geradora e criativa da Grande Mãe. Essa época da história dos povos bárbaros, da antiguidade pagã era regida em grande pane pelo poder do feminino e da Grande Deusa, símbolo da fertilidade, da Natureza, dos poderes intuitivos e mágicos do inconsciente. O símbolo do Graal ainda não existia, nesse tempo ele era o Caldeirão da Deusa, onde se buscava alimento e magia. Nessa época o mundo do imaginário fantástico e da realidade se misturavam criando uma continuidade entre homem, natureza e transcendência. Para os celtas tudo que era do reino do intermediário era sagrado: o anoitecer e o alvorecer; o orvalho; a neblina; o visgo. Assim, além do Guerreiro, temos outro símbolo importante, o Mago. Os dois são representados no mito por Uther (pai de Artur) e Merlim (o conselheiro druida).
Uther representa a força implacável necessária para manter um mínimo de ordem no reino de Britânia (atual Inglaterra). Merlim, representa a sabedoria de uma época que está prestes a terminar e que quer fazer a ponte para os novos valores do cristianismo que está chegando. Esses novos ideais serão incorporados por Artur, que Merlim protege e ajuda. Assim, lentamente saímos do período do Caldeirão, do Guerreiro e da força bruta para ingressar na fase da Távola Redonda, do Herói civilizador e do poder do amor. Ainda hoje estamos fazendo essa transição. Ainda estamos tentando concretizar os valores do cristianismo sem no entanto perder a força dos valores positivos da época anterior.
O mito começou a ser escrito em 1138 por Godofredo de Monmouth no livro “História Regum Britanniae” (História dos Reis da Britânia). Depois foi reformulado por diversos autores como:
Chétien de Troyes, 1180
Robert de Barron, 1190
Wolfran von Eschenbach, 1207: “Parzifal”
Thomas Mallory, 1469: “A Morte de Artur”.
2°) A Távola Redonda: O período anterior corresponde ao período histórico que vai de 400 à 1000, que compreende a arte bárbara e românica. Agora entramos no período da arte gótica do século XII e XIII e início da era moderna com a renascença. Entramos aqui na Idade do Filho, de acordo com Gioacchino de Fiori, a fase do Novo Testamento onde as Tábuas da Lei dão lugar ao poder do amor, do conhecimento, da compreensão, da tolerância. Com o Cristianismo nasce uma nova ética baseada na fraternidade, no companheirismo, que vai dar base à criação dos princípios da cavalaria. Artur representa o novo homem que governa não mais pela força bruta, mas pelo estabelecimento de leis compartilhadas pelos seus pares. Daí o símbolo da Távola Redonda, onde todos são iguais, representando a circularidade, a totalidade em torno do centro. O Caldeirão se transforma na mesa redonda, no vaso alquímico, onde a busca de conhecimento substitui a magia. As brumas nebulosas dos encantamentos dos druidas e da Deusa começam a dar lugar aos experimentos da razão. Nessa época a divisão entre os dois mundos ainda não é absoluta, isso só acontecerá bem mais tarde no século XVII e XVIII com o Iluminismo, mas este é o princípio do processo, que se dá com a transição do paganismo para o cristianismo.
Outra revolução importante dessa época é o início da concepção do amor cortês. A valorização de um novo aspecto do feminino com a nova percepção do amor como uma eleição individual, independente do contrato de matrimônio. Ao valorizar a mulher amada como musa inspiradora, o cavaleiro estabelece contato com seu próprio feminino interior e suas qualidades humanizadoras. O guerreiro se transforma em cavalheiro. Seus feitos heróicos são depositados ao pé da amada. A cobiça, a satisfação imediata dos desejos é transmutada em oferenda, dedicação, admiração por um ideal superior representado pela sua eleita.
Esse período é representado no mito pela vitória de Artur contra as tribos invasoras, pela organização e unificação do reino, pela paz duradoura que gera abundância e prosperidade para todos. Camelot é o centro do reino, de onde emana ordem e harmonia. A Távola Redonda é o símbolo de união que preserva a integridade do país.
No entanto, a evolução deve prosseguir e para isso o paraíso deve ser abandonado se quisermos avançar. Assim, um novo símbolo deve ser gerado para mobilizar novos significados e esse símbolo é o Graal. Diz a lenda que em Pentecostes, data de reunião dos cavaleiros em Camelot, quando todos estavam à volta da mesa, aparece flutuando no ar o Cálice Sagrado, o Graal, que depois desaparece deixando nos pratos o alimento que cada um desejava. Imediatamente todos se mobilizam para procurar o cálice milagroso e trazê-lo de volta a Camelot. Assim, passamos à terceira etapa da lenda.
3°) O Graal: Antes do cálice aparecer já havia indícios de insatisfação e problemas que prenunciavam a necessidade de mudança e transformação simbólica. Por exemplo: a história desastrosa dos amores de Guinevére, a rainha, e Lancelot e também de Tristão e Isolda; a relação conflituosa de Artur e Morgana, sua meia-irmã, e Mordred, filho incestuoso dessa relação, que quer destronar o pai; a insatisfação dos cavaleiros, durante o período de paz prolongada, por não ter como usar sua energia agressiva, levando-os a lutar em intermináveis torneios; e por último, sinais de esgotamento da Natureza, aparecendo na infertilidade da terra e dos animais. Enfim, a Idade do Filho, segundo Gioacchino de Fiori, está para se transformar na Idade do Espírito Santo. Não é por acaso que o cálice apareça justamente em Pentecostes, a festa dedicada a celebrar a descida do Espírito Santo entre os apóstolos. A transformação do símbolo nos ensina que determinados conflitos só podem ser resolvidos pelo contato direto com o divino, com o sagrado, com o Centro dentro de nós. A Távola Redonda deve ser vivida agora internamente como o poder inspirador do Espírito Santo, através de sua expressão feminina representada no símbolo do cálice. O Herói civilizador deve se transformar no Buscador espiritual. Artur cede lugar à Parsifal que sai em busca do Graal, o novo símbolo unificador.
Vários guerreiros partem e nenhum consegue encontrar o castelo encantado do Rei Pescador onde estaria o cálice. Este rei tem uma ferida incurável (como todos nós) que só será curada quando alguém encontrar o Graal e lhe fizer uma pergunta: “A que serve o Graal?”. Esta é a parte mais importante do mito, o símbolo que ainda estamos longe de vivenciar, que é entender que o mais importante na jornada de nossas vidas não é achar as respostas, mas sim fazer as perguntas. A verdadeira sabedoria, como dizia Sócrates, é saber que nada sabemos e que portanto devemos sempre estar em movimento, sempre à procura, sempre na busca, e a pergunta que confere significado vai mudando de fase para fase na vida, mas nunca se esgota. Assim, essa procura não é um caminhar a êsmo, mas uma circum-ambulação em torno do Espírito, em torno do Graal, do sagrado dentro de nós: o Self, segundo C.G.Jung, nosso centro ordenador da personalidade.
Essa transição do Caldeirão, para a Távola Redonda, para o Graal é uma espiral que não elimina as fases anteriores. Devemos preservar o poder da Deusa e do princípio cristão para atingir a possibilidade de comunicação com o Espírito. Uma vez realizadas essas três etapas quem sabe possamos avançar para uma quarta fase onde o Graal se transforme no vaso transbordante de Aquário? Estamos entrando exatamente na era de Aquário, onde as riquezas acumuladas e vividas através do cálice do Graal poderão ser compartilhadas com todos. A cornucópia da abundância, a eterna fonte alquímica da sabedoria, a união das polaridades cindidas: corpo-espírito, ciência-religião, masculino-feminino, etc. Se aprendermos a servir a um princípio divino dentro de nós, não mais imposto de fora, distante da nossa condição humana, mas vivido como parte integrante da nossa natureza, o próximo passo será emaná-lo como um aroma ou, nos transformando no vaso de Aquário, permitir seu fluxo ininterrupto como um rio que se funde no mar.
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