Poesia
e Individuação
“A
adesão ao invisível, eis a poesia primordial, eis a poesia que
nos permite tomar gosto por nosso destino íntimo... A verdadeira
poesia é uma função de despertar”
Gaston Bachelard1
A
individuação vista como um processo poético envolve um
contínuo encantamento com a vida, o qual provém do contato com
o invisível, com o inconsciente e o mundo arquetípico. Ligar o
visível ao invisível é manter a conexão ego-self. É
encontrar no cotidiano visível, o significado simbólico
invisível que torna cada vida única e tão especial para o
Universo.
Bachelard diz que a adesão ao invisível e à imaginação
criadora nos leva à experiência poética que “nos permite
tomar gosto por nosso destino íntimo”, ou seja, tomar gosto
por nossa vida como um processo de desdobramento de surpresas, de
espanto, de maravilhas que “ultrapassam a realidade, que cantam
a realidade”.2
Quando rompemos a ligação com o invisível ficamos amortecidos,
distantes. Estamos na vida mas não nos sentimos vivos, perdemos
a faculdade do encantamento e o mundo se torna opaco. Não nos
sentimos mais participantes de uma rede viva e pulsante com a
Natureza e o Universo. Perdemos a capacidade de experienciar o
Belo, o Sagrado, porque perdemos de vista a ligação com a
beleza poética do nosso mundo interior. Os místicos chamam esse
estado de amortecimento de “noite escura da alma”, os
povos primitivos o sentem como a perda da alma. sendo assim, o
que pode nos ajudar a manter viva essa conexão poética?
Creio que antes de mais nada precisamos aprender a cultivar
conscientemente um estado interior de disponibilidade, de
abertura para a vivência poética. Essa disponibilidade é um
ato amoroso que evoca Eros e suas qualidades de envolvimento,
entrega e desejo. Significa abrir-se para a vida a cada dia como
o amante para o ser amado. É envolver-se com o enredo da
própria história com interesse, curiosidade e respeito de quem
realmente se debruça sobre o desconhecido, sobre o invisível
que pode tomar-se visível e revelar o sagrado a qualquer
momento.
Esse é um processo circular, mandálico que nos leva cada vez
mais para o centro das nossas vidas e para o centro do Universo.
Esse envolvimento amoroso que busca a poesia no cotidiano, anula
a falsa percepção de desconexão da nossa alma com a alma do
mundo (Anima Mundi), e a beleza presente no simples ato de
estarmos vivos nos atinge com um impacto profundo e
transformador.
Há outra força arquetípica que acompanha Eros nessa busca do
sentimento poético: Afrodite, a Beleza. Aqui falamos do
encantamento que surge não a partir do “bonito”, mas
sim do Belo que produz a suspensão do tempo linear e nos lança
na eternidade do instante, na experiência do assombro, naquele
“Ah!” que diz tudo. Afrodite pode se revelar também em
momentos de intensa dor, dúvida e angústia, como nos mostra,
por exemplo, o mito de Psiquê através das difíceis tarefas que
esta última deve realizar a mando da deusa. A beleza que emerge
dos sofrimentos inevitáveis da existência humana tem uma
qualidade trágica, às vezes difícil de ser apreendida, mas que
é indispensável para o aprofundamento do significado simbólico
da experiência de estar em conexão com o transcendente. Sem a
vivência do Belo no seu aspecto trágico, não podemos usufruir
com plenitude o seu lado lírico que se manifesta na Natureza, na
Arte, no Amor e em todos aspectos mais comumente conhecidos como
reveladores do Belo.
Outra característica importante a ser lembrada sobre a vivência
poética é seu caráter livre, autônomo. Não podemos forçar
ou aprisionar algo, que se realiza através da disponibilidade do
ego, mas que o transcende. Se ao contemplar um pôr-do-sol a
poesia se faz presente, não quer dizer que em todos os poentes a
experiência se repetirá, mesmo que tenhamos a disponibilidade
interna para isso. Portanto, a vivência poética nos aproxima do
Self, o princípio transcendente que age em nós, mas que também
não aparece automaticamente pois requer nossa colaboração. A
experiência poética nos ensina que o contato com o Self é um
profundo mistério, e que possuímos como Eros a possibilidade de
voar entre o visível e o invisível, entre a dimensão humana e
a divina, daí surgindo a experiência do sagrado, do numinoso.
Para terminar, ainda resta uma última característica importante
do encontro poético a comentar: o silêncio. Um espaço de
calma, de aquietamento. Uma sensação de paz acompanhada de uma
compreensão sem palavras, que está além das palavras. Nesse
momento temos acesso ao conhecimento que brota do centro profundo
e misterioso da alma. Assim, a vivência poética é uma ponte
para as experiências arquetípicas do Amor, da Beleza, da
Liberdade e do Silêncio e todas elas nos levam ao estado
contemplativo e à sabedoria. Como diz o poeta:
“... Com o impulso deste Amor e a voz
deste Apelo
Não cessaremos nunca de explorar
E o fim de toda a nossa exploração
Será chegar ao ponto de partida
E o lugar reconhecer ainda
Como da primeira vez que o vimos
... E tudo irá bem e toda
sorte de coisa irá bem
Quando as línguas de flama estiverem
Enrodilhadas no coroado nó de fogo
E o fogo e a rosa forem um”
(Little Gidding)3
Bibliografia:
l. Bachelard, G. “A água e os sonhos”. Martins Fontes.
1998. p. 18.
2. lbid.
3. Eliot, T.S. “Poesia” Ed. Nova Fronteira. 1981. p.
234 e 235.
Vera Lucia Paes de Almeida
Texto publicado no Jornal “Psicopombo” nº 4 da
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.
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