Serenidade.

Um caminho para a não-violência.*

Vera L. Paes de Almeida.


Ao contemplarmos a fotografia de Gandhi fiando em sua roca podemos observar algumas qualidades que emergem dessa imagem e que são fundamentais para o cultivo da não-violência. É importante compreender que a mensagem de Gandhi se apoiava não só nas palavras que ele pregava, mas principalmente na sua vivência pessoal dos princípios de paz, busca da verdade e não-violência que ele aplicava sobretudo nas ações da sua vida cotidiana.
Vamos agora refletir sobre quatro qualidades presentes nessa imagem:

Despojamento. Simplicidade: O despojamento aqui se expressa através do vestuário de Gandhi que está envolto simplesmente no seu “dothi” de algodão branco. Gandhi abandonou as roupas ocidentais, adotando a indumentária indiana como símbolo da simplicidade, incentivando seu povo a tecer seus próprios tecidos de algodão e a valorizar sua cultura. Esse foi um gesto simbólico, existencial e político, adequado às condições da Índia daquele momento. Mas, e para nós aqui no Ocidente, o que seria o despojamento e simplicidade?
A primeira idéia que nos ocorre é que precisamos de um maior desprendimento dos bens materiais. Parece óbvio que, hoje em dia o excesso de produtos industriais e o decorrente exagero no consumo, precisa ser revisto com urgência. A degradação do meio-ambiente e a crescente insatisfação das pessoas que não se tornaram mais felizes apenas porque podem consumir mais, apontam para uma necessidade de retorno a uma vida mais simples e despojada. No entanto, essa simplicidade não pode ser obtida através de um controle racional ou da repressão, pura e simples, dos desejos consumistas em prol de um desprendimento idealizado. Antes, é necessário construir os alicerces internos para uma mudança de atitude que vem de dentro para fora. É necessário um trabalho interior de elaboração do que significa realmente uma vida baseada em outros valores, que não os meramente materiais e consumistas da nossa sociedade atual.
Assim, se aprofundarmos um pouco nossa reflexão sobre o despojamento veremos que ele é, basicamente, um ater-se ao que é essencial. Significa não desperdiçar energia com o que não tem importância. E o que é importante? Essa é uma pergunta que todos nós temos que nos fazer e, mais que isso, responder, para que possamos construir conscientemente uma vida mais equilibrada. Despojamento, dentro desta perspectiva, significa priorizar valores que têm relação com a essência da vida.

“A questão decisiva para o homem é a seguinte: estará ele ou não relacionado a algo infinito? Essa é a questão indicativa da sua vida, apenas se soubermos que aquilo que verdadeiramente conta é o infinito, poderemos evitar fixar nosso interesse em futilidades e em todos tipos de objetivos que não são verdadeiramente importantes. Por isso, exigimos que o mundo nos ofereça o reconhecimento de qualidades que encaramos como posses pessoais: nossa talento ou nossa beleza. Quanto mais um homem coloca ênfase em haveres falsos e quanto menos sensibilidade tem em relação ao que é essencial, menos satisfatória é sua vida. Ele se sente limitado porque tem objetivos limitados e a resultado é inveja e ciúme Se compreendemos e sentimos que aqui nesta vida já temos uma ligação com o infinito, então os desejos e atitudes se alteram. Na análise final, só valemos alguma coisa devido ao essencial que incorporamos e, se não o incorporamos, a vida é desperdiçada. Também em nossos relacionamentos com as outras pessoas, a questão crucial é saber se um elemento de infinitude está expresso no relacionamento.”1

O que é o infinito, de que fala esse texto de C. G. Jung? Infinito é o que perdura, é o que permanece, é o que se desdobra e frutifica em mil significados e nos enriquece interiormente. É aquilo que não pode ser roubado, nem pelo tempo, nem pelas circunstâncias de vida, ou por outra pessoa. É o sorriso de uma criança, a beleza de um pôr-de-sol, é o amor que nos une a vida. Essas são coisas essenciais, as que verdadeiramente importam.
O mundo material à nossa volta se torna algo essencial quando está ligado a um significado simbólico que nos remete ao sentido de infinitude. Quando perdemos esse elo de ligação se estabelece um vazio interior, que pensamos erradamente poder preencher com mais e mais objetos que consumimos indiscriminadamente, mas que no entanto só nos deixa mais e mais vazios.
Ghandi era despojado de tudo externamente, mas era rico em valores essenciais seu profundo amor à verdade à justiça à não-violência. Esses valores permaneceram com ele por toda a vida, e no entanto nem eles eram posses pessoais, pois estavam à serviço da transformação do homem para um mundo melhor. Um mundo sem preconceitos, sem intolerância, ódio ou cobiça.

Paciência. Persistência: Vocês imaginam quanta paciência e persistência são necessárias para se aprender a fiar?
Da mesma maneira, aprender a não nos importar com as pequenas coisas, a dar atenção somente àquilo que é verdadeiramente essencial, exige muita paciência e persistência. Mas paciência com o que? Paciência com nós mesmos. Tolerar nossas imperfeições, nossos defeitos e continuar persistindo exige muita paciência. Significa usar nossa energia para transformar e não para recriminar, julgar ou condenar a si mesmo ou aos outros.

“O reconhecimento da sombra... conduz à modéstia de que precisamos a fim de reconhecer imperfeição. E é exatamente esse reconhecimento consciente e essa consideração que são necessários onde quer que se estabeleça um relacionamento humano. ... A perfeição não precisa dos outros, mas a fraqueza sim, pois ela procura apoio e não enfrenta o parceiro em qualquer coisa que possa forçá-lo a uma posição inferior até mesmo humilhá-lo.
Talvez isso pareça ser muito simples, mas as coisas simples sempre são as mais difíceis. Na vida mal exigem a grande arte de ser simples; portanto, a aceitação de si mesmo é a essência do problema moral e a prova dos nove de toda perspectiva de vida da pessoa.”
2

Quando reconhecemos e aceitamos amorosamente nossas limitações estamos dando o primeiro passo para a sua transformação Além disso, começamos a tolerar com maior paciência as limitações nos outros, a desmontar os preconceitos dentro de nós e a tolerar melhor as diferenças.

Concentração: À medida que conseguimos o despojamento, ou seja, usar nossa energia com o que é importante, e a paciência com as nossas limitações, começa a surgir um estado natural de concentração. Começamos a ficar centrados, em equilíbrio, firmes em nosso eixo. O contrário disso é estar disperso, dividido em mil pensamentos, ações ou sentimentos contraditórios, desconexos. É o estado de ansiedade generalizado que predomina em nossa cultura.
O centramento traz a vivência de harmonia e integração interna, que está disponível para nós, através da busca e da prática consciente. Com isso, começamos a aprender que podemos sair do centro mil vezes e retornar também mil vezes, porque o centro sempre está lá dentro de nós. Dessa percepção surge a confiança de que através da simplicidade e da paciência, conseguimos fiar o fio forte e resistente que nos liga a esse ponto central de onde emana paz, força e sabedoria.

Serenidade: Costumamos confundir serenidade com passividade. Nada, é mais ilusório. Serenidade requer a prática diária e contínua do despojamento e da paciência para buscarmos nosso centro e permanecermos nele o mais possível. Quando gastamos nossa energia com as pequenas coisas que não são essenciais não sobra energia para a vivência da serenidade. Isso nos mostra que a serenidade é um estado altamente energético. Na verdade, só a serenidade nos faz verdadeiramente produtivos, porque produz ações equilibradas e efetivas.
A violência surge da desesperança, do desamor, do abandono, da falta de conexão com nosso centro. Portanto, a construção de um mundo melhor, mais pacífico e amoroso, depende da nossa vivência pessoal de integração interior.



Aqui vemos a representação gráfica da roca evocando a imagem de uma mandala, o símbolo arquetípico da plenitude. Ela expressa de modo sintético tudo que dissemos sobre o centramento.

O centro é o lugar de onde emanam os raios da roca e para onde eles
convergem. O princípio e o fim unidos. girando sem sair do lugar. No centro
se unem os dois grandes mistérios da vida humana, de onde viemos e para
onde vamos. A pergunta que fica é: O que colocamos no centro das nossas
vidas? Estamos girando em torno de quais valores? Serão eles
verdadeiramente essenciais?

O que devemos lembrar é que a vida é um processo de transformação
contínua, como a roca que deve girar sempre para cumprir sua função. Só
no ponto central há paz e tranquilidade, e é a nossa ligação com o infinito
que nos dá serenidade.

“A vida sempre me pareceu com uma planta que vive do seu rizoma.
Sua verdadeira vida é invisível, está oculta no rizoma. A parte que aparece
acima do solo dura apenas um único verão. Depois ela definha — aparição
efêmera. Quando pensamos no crescimento e na decadência sem fim da
vida e das civilizações, não podemos escapar à impressão de absoluta
nulidade. Contudo, nunca perdi a sensação de algo que vive e resiste por
baixo do eterno fluxo. Aquilo que vemos é a flor que passa. O rizoma
permanece.”
3


***


Referências Bibliográficas:

1. Jung, C. G. “Civilização em transição”. 1993. Ed. Vozes. Petrópolis.
2. Jung, C. G. “Memórias,Sonhos, Reflexões.” 1975. Ed. Nova Fronteira.
3. Ibid.

* Palestra realizada na Associação Palas Athena por ocasião da 17ª Semana de Homenagem a Mahatma Ghandi, no dia 03/10/98.

VOLTAR   MENU   PRÓXIMO

Counter