O Simbolismo da Serpente e a Coluna Vertebral

Vera L. Paes de Almeida 

“... há um milhão e meio de anos, graças a sombrias histórias de colunas vertebrais cujas curvas se compensam, o homem adquire a verticalidade. Há um milhão e meio de anos, o homem está de pé. Há um milhão e meio de anos, ele eleva os olhos para o céu.”  

(Jean-Pierre Verdet)1 

O mundo animal evoca no imaginário do homem a força da natureza instintiva. Mesmo vivendo num meio urbano, em uma sociedade tecnológica, percebemos nos sonhos a representação variada de animais que apontam para o caráter arquetípico desse simbolismo.  

A serpente reverenciada em vários mitos, lendas e rituais desde a pré-história, ainda continua a expressar no homem moderno, vários atributos importantes do seu psiquismo. Dentre estes vamos enfatizar os aspectos relacionados a coluna vertebral. A serpente é um animal ligado ao potencial feminino da psique. É um animal lunar, que vem das regiões obscuras e que se recicla periodicamente. Ela representa uma força regeneradora, ligada à fertilidade, à sensualidade, ao poder de morte e renascimento. Como feminino ela tem um aspecto de união, de ligação que aqui se expressa na conexão entre os reinos ctônicos inferiores e os domínios superiores. O símbolo que melhor representa esse caráter dual é Quetzalcoatl, a serpente emplumada, a qual une a força da terra ao seu oposto aéreo nas plumas dos seres alados. Na mitologia asteca o homem civilizado nasce do sangue de Quetzacoalt que irriga a terra para fecundá-la e assim produzir o milho. Oxumaré, dos mitos africanos, também revela esse aspecto de ponte, de ligação entre o céu e a terra, transformando a serpente em arco-íris, em ponte de luz. Em iorubá, Oxumaré significa arco-íris, o qual é associado ao bom tempo, à fertilidade e à abundância. Também é a serpente Dan, que morde a própria cauda e representa a continuidade, a firmeza e o fluxo ininterrupto da vida.

Quando nos aproximamos da nossa dimensão corporal, a serpente se mostra associada à coluna vertebral. Ela (a serpente) é mortal e curativa ao mesmo tempo... para os gnósticos ela é considerada como um representante do tronco cerebral e da medula espinhal... é um excelente símbolo de inconsciente, que exprime a presença inesperada e repentina do mesmo...” (C.G.Jung)2 É a energia que liga o mundo inferior ao superior. Aqui a visão simbólica do macrocosmo se espelha no microcosmo do corpo. O arco-íris se revela como uma força vital que se desenrola da base da coluna em direção ao topo da cabeça, unindo a nossa natureza básica instintiva ao mundo alado do espírito. Quando esses dois polos se unem e são integrados, nasce Quetzalcoatl a serpente emplumada, o herói civilizador, o portador do conhecimento e da sabedoria. O trabalho corporal funciona como a serpente ao unir corpo e psique, trazendo a sabedoria instintiva enraizada no corpo à consciência. Além disso, é importante observar que esse trabalho não busca uma atuação sintomática, mas sim simbólica. Isto é, não visa à “cura” ou alívio de determinado sintoma, mas sim à promover a ligação entre o ego e o Self. Quando esses polos se encontram surge a “iluminação” de Oxumaré, o conhecimento e sabedoria de Quetzalcoatl. O fluxo energético entre o centro (Self) e periferia (ego) restabelece a harmonia e possibilita novas configurações fisio-psíquicas mais adequadas ao processo de individuação.  

"A serpente simboliza o númen do ato da transformação...” (C.G.Jung)3.  

Quando trabalhamos corporalmente com a coluna vertebral estamos tocando a energia simbólica da serpente, a energia sutil de Oxumaré, a luz do arco-íris dentro de nós. No Oriente ela é chamada Kundalini, a qual ao se movimentar sinuosamente em torno do eixo vai acendendo a luz dos chakras ou pontos de energia que representam as diversas etapas que percorremos no caminho da individuação.

 Temos aqui outra imagem importante a ser apreendida: a coluna vertebral como eixo, Axis Mundi, o ponto em torno do qual se move a energia da vida. O eixo é o ponto central de referência, de orientação no espaço e no tempo, o pilar cósmico que possibilita a comunicação entre os planos inferiores e superiores, entre o mundo sagrado e o profano. Além disso, organiza as direções dos quatro cantos do mundo, e estabelece o centro do círculo protetor que demarca o limite entre o Cosmos e o Caos. A serpente nos ensina que a energia que vivifica, que anima esse eixo não se move de forma retilínea, direta, mas sim sinuosamente, em espiral, avançando e retrocedendo, aparecendo e desaparecendo, de modo sutil, misterioso, feminino, lunar. 

Essa é uma lição importante a ser conscientizada e incorporada: como construir um eixo sólido e firme que nos dê orientação e organização interna, mas que ao mesmo tempo seja maleável e flexível como a serpente? A vivência da coluna vertebral na sua verticalidade nos remete ao Axis Mundi, ao Pilar Cósmico e à Montanha e Árvore Sagradas. Ela nos coloca em contacto com a nossa coragem, determinação, precisão e firmeza, nossa capacidade de crescimento e desenvolvimento. Quando a energia da serpente começa a envolver esse eixo, ele começa a se mover e todas as nossa certezas, laboriosamente construídas ao longo da vida, começam a ser abaladas. Não é fácil, portanto, suportar o despertar da serpente, pois ela vai questionar profundamente o estabelecido, o sólido, o já conhecido. No entanto, se a estrutura do eixo for forte ela não se desmanchará, apenas se tornará flexível. 

Esse é o presente que a vida nos dá e que a força da serpente expressa: a segurança se constrói na dança contínua entre o que sabemos e o que não sabemos. Podemos sair do equilíbrio central e voltar a ele inúmeras vezes porque ele sempre estará lá. Não precisamos nos agarrar a nada, podemos “serpentear” junto com a energia sinuosa da vida e descobrir várias outras possibilidades, além da firmeza e determinação do eixo fixo. Quando a coluna se torna maleável podemos vivenciar o aspecto lúdico da vida, o prazer de brincar, de dançar. É o jogo de Maya, segundo os hindus, ou Shakti, a energia feminina dinâmica que anima o mundo. Quando admitimos essa força em nossa vidas podemos nos envolver nas maravilhas e encantamentos de Maya sem nos perder nela, sem nos apegar a nada e sem nos petrificar. 

É daí que nasce a vivência da liberdade. A serpente cria asas e pode voar: somos humanos, seres da terra, mas também somos espírito, seres do céu. Quando conseguimos na alegria dessa dança sinuosa unir esses dois polos, corpo e mente, matéria e espirito, essa felicidade desperta outra vivência importantíssima, que é a reverência. Finalmente, e só então, podemos nos curvar e prestar graças. Só uma coluna maleabilizada pela alegria da vida pode se inclinar sem medo, agradecer e celebrar. 

E aí fechamos o círculo: o gesto de reverência perante o Todo, leva simbolicamente a cabeça de volta à terra, o espírito de volta à natureza e acendemos o mundo à nossa volta com a energia do microcosmo do corpo espelhado de volta no macrocosmo do universo. Sem mais divisões entre superior e inferior ou interior e exterior, tudo é unificado em luz e esplendor. Essa é a lição da serpente. 

Referências Bibliográficas:  

1) Verdet, J.P. “O Céu, Mistério, Magia e Mito.” Ed. Objetiva. S.P. 2000.  

2) Jung, C. G. “ Símbolos da Transformação”. Ed. Vozes. Petrópolis. 1986.par. 580

3) Ibidem.

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