O CHORO E PIXINGUINHA

* Por Raul Costa d’AVILA

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O surgimento de novos gêneros musicais no final do século passado e princípio deste não foi um privilégio que ocorreu apenas no Brasil. A música européia sempre teve muita influência sobre a cultura de diversos países e sendo assim, processos bem parecidos com o que ocorreu no Brasil, gerando o tango brasileiro, o maxixe e finalmente o choro, ocorreu em Cuba, dando origem ao danzon; na Martinica, com a biguine, nos EUA, com ragtime; na Indonésia, com o kronjong e assim em diversos outros países.

No Brasil a transformação das polkas, mazurkas, valsas, schottisch e tangos, que na sua essência eram executados apenas nos salões da aristocracia, deu-se de maneira muito especial e criativa, pois da emoção dos músicos, na sua maior parte amadores, nasceu o novo gênero denominado de choro que, surgindo de uma necessidade social da sociedade carioca menos favorecida, rapidamente difundiu-se pelo país e cada vez foi sendo mais aprimorado.

Originalmente a palavra choro pode ter surgido de uma transformação da palavra "xolo", que quer dizer, segundo os negros cafres, uma espécie de concerto vocal com danças. Talvez por confusão com o parônimo em português, passou a grafar-se "chorus" e transformado em choro, querendo exprimir uma música que deve ser executada pelos instrumentistas com muita emoção, sentimento, quase como se fosse cantada, chorada... um sentimento sublime que o torna a tradução mais íntegra da alma brasileira.

Segundo um depoimento de Jacob do Bandolim (1919-1969), foi o flautista Joaquim Antônio da Silva Callado (1848-1880), quem primeiro se valeu do trio formado de violão, cavaquinho e flauta, denominado de "Pau e Corda" para apresentar "choros". A música, de sua autoria, denominada "Flor Amorosa" , uma polca bem chorada, foi o primeiro registro oficial da história do choro, por volta de 1870.

Ernesto Nazareth (1863-1934) foi outro importante músico que muito contribui para a consolidação do novo gênero. Coube a ele a tarefa, segundo o professor Mozart Araújo, de "nacionalizar" os gêneros que vinham de fora - a valsa, a polka, a schottisch, a mazurka, a habanera, o tango. Um dos processos que utilizou para o abrasileiramento desse gênero constitui na transposição que fez, para o piano, dos processos típicos dos instrumentos populares - a flauta, o violão, o cavaquinho, o trombone, a percussão.

Villa-Lobos, (1887-1959) um chorão nato e idealista, também contribuiu muito para este gênero. Sua participação foi muito mais além do que simplesmente as noites de boemia, as rodas de choro e serenatas. Além da importantíssima coleção para violão - toda ela respingando aquelas noites de boemia dedilhada - ele compôs o ciclo dos 14 Choros, homenagem ao que ele sempre chamou de "a essência musical da alma brasileira". Além disso é nítido também a influência que as Bachianas tiveram do choro, bastando para isto prestar atenção na Ária (Cantilena) da Bachiana nº 5 como também em tantas outras obras.

Muitos outros nomes, sem dúvida, deveriam ser mencionados aqui: Donga, Nelson Alves, Bonfíglio de Oliveira, Anacleto de Medeiros, Chiquinha Gonzaga, Zequinha de Abreu, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Abel Ferreira, Luperce Miranda, Copinha, K-Ximbinho, Luís Americano, Radamés Gnattali, Raphael Rabelo, entre tantos outros chorões maravilhosos. Passaram--se, aproximadamente, 127 anos de história do choro, e são muitos os fatos sobre esta maravilhosa história como também sobre seus músicos.

Nossas homenagens neste texto renderam-se para um homem, mais conhecido na história do Choro por Pixinguinha. Ele completaria 100 anos em 23 de Abril deste ano de 97, foi mais do que um grande marco na história do choro e o chorões, de norte a sul do Brasil, comemoram seu centenário.

Alfredo da Rocha Vianna Filho, Pixinguinha, filho mais novo de Raimunda Maria da Conceição e Alfredo da Rocha Vianna, nasceu na cidade do Rio de Janeiro do dia 23 de Abril do ano de 1897. Alguns acreditam ter sido no ano de 1898, mas ele próprio, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, confirma a data de seu nascimento um ano antes. O apelido Pixinguinha, posto por uma prima, é uma mistura de Pizindim (pequeno bom) com Bexiguinha, que surgiu depois que ele contraiu bexiga (varíola).

O registro oficial de nascimento foi feito mesmo por Pixinguinha, em 1933, para admissão no Instituto Nacional de Música. Neste documento fica ainda esclarecido que seu nome completo é Alfredo da Rocha Vianna Filho e não Alfredo da Rocha Vianna Júnior, como muitos também admitiam.

A família Vianna era numerosa; dos catorze filhos, muitos cantavam e tocavam instrumentos. O cavaquinho foi o primeiro instrumento que Pixinguinha aprendeu a tocar, através de seu irmão Henrique. Mais tarde teve aulas de música com César Borges Leitão, amigo de seu pai, aulas de flauta, com o próprio pai, e posteriormente seguiu seus estudos musicais com Irineu de Almeida ou Irineu "Batina", como era mais conhecido. Experimentou ainda o bombardino e aos doze anos compunha sua primeira obra chamada de "Lata de Leite", choro inspirado nos boêmios (os chorões da época), que bebiam o leite deixado nas portas das casas, quando retornavam das noitadas e dos bailes.

A casa dos Vianna reunia chorões ilustres, como Candinho do Trombone, Sinhô (José Barbosa da Silva), Irineu de Almeida, Viriato, Bonfiglio de Oliveira, e muitos outros. Neste clima de alegria familiar e convívio musical, foi sendo construída a "personalidade musical" de Pixinguinha e seus irmãos e assim o menino Pixinguinha tentava reproduzir numa flautinha de folha, algumas das músicas executadas. Em 1911 o professor Irineu "Batina" levaria seu aluno, de apenas 14 anos, para tocar flauta na Orquestra da Sociedade Dançante e Carnavalesca Filhas da Jardineira. São desta época os primeiros registros em jornais sobre Pixinguinha, ainda como Alfredo Vianna Filho. Neste ano gravou ainda seus primeiros discos, como componente do conjunto Choro Carioca; são eles: São João debaixo d'água, "Nhonhô em sarilho" e Salve (A Princesa de Cristal). No ano seguinte já era diretor de harmonia do rancho Paladinos Japoneses e fazia parte do conjunto Trio Suburbano. Em 1912 participou de cinco discos, de uma só face, que fazem parte do acervo do professor Mozart Araújo.

Em 1915 Pixinguinha era destaque da emergente Música Popular Brasileira. Já havia gravado discos e editado músicas de sucesso. Os jornais da época começavam a citar o jovem flautista. Seu primeiro emprego como instrumentista foi ainda adolescente - tocava numa choperia chamada "La Concha", que ficava no bairro da Lapa. O grupo era uma quarteto formado por: Pádua Carvalho (piano), Bonfiglio Oliveira (trompete), Otávio Silvino - o "China", seu irmão, (violino) e o jovem Pixinguinha (flauta). Daí foram surgindo cada vez mais trabalhos para teatros, cinemas, choperias, festas carnavalescas mais tarde cabarés e cassinos e com isto seu prestígio cada vez mais consolidado, dando assim preferência cada vez maior ao choro.

Após uma apresentação do Grupo Caxangá, do qual Pixinguinha participava, o gerente do Cinema Palais, no Rio de Janeiro, procurou Pixinguinha e seu irmão China pedindo-lhes que daquele grupo selecionassem oito músicos para apresentações na sala de espera do cinema que ele dirigia. Assim surgiu "Os Oito Batutas", formado por Pixinguinha, China, Donga, Nelson Alves, José Alves Lima, Sizenando Santos, José Monteiro e J. Thomaz, que ficou imortalizado na história da Música Popular Brasileira. A estréia do grupo se deu no dia 07 de Abril de 1919 sendo um acontecimento novo na cidade. Na sala de espera do cinema, ao invés de pequenos conjuntos ou pianistas tocando elegantemente "músicas de classe", um grupo de instrumentistas populares, trajando vestes sertanejas, executando um tipo de música inteiramente desconhecida num ambiente daqueles mas que atraia a atenção de muita gente e que muitas vezes nem entrava para assistir ao filme mas ficava na sala de espera ouvindo os chorinhos.

Na verdade o que estava acontecendo era um movimento em busca de uma identidade cultural brasileira, uma vez que o que se consumia musicalmente até então vinha basicamente da Europa. Todo este clima foi aquecido ainda pelo movimento que a classe intelectual fazia pois estava empenhada no movimento de defesa dos ideais nacionalistas, que culminaria mais tarde com a realização da Semana de Arte Moderna de 1922.

De 1919 a 1921 os Oito Batutas viajaram muito pelo Brasil (São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Bahia, Pernambuco) sempre causando furor no público. Em Janeiro de 1922 o grupo, com o nome de "Os Batutas" embarca rumo a Paris com apenas sete integrantes, pois J Thomaz, um dos músicos, desistiu da viagem. O grupo teve a viagem bancada por Arnaldo Guinle e foi acompanhar os bailarinos Duque e Gaby. A temporada deveria ser de um mês mas o grupo permaneceu por mais cinco meses e lá apresentou à França a ginga carioca, com muito samba, swing e maxixe. A temporada no Scherazade e depois no Chez Duque e no La Reserve de Saint Cloud colocava os Batutas dentre as dezenas de orquestras típicas de vários países que animavam a alegre París da Bella Époque. Além disso, o contato com outros estilos musicais foi decisivo para a formação do músico Pixinguinha. Pela primeira vez Pixinguinha teria contato com o saxofone das jazz bands e assim o mestre começou a dominar o sax e em breve estaria alternando com a flauta. O Grupo "Os Batutas" foi o primeiro conjunto regional a sair do país, e apesar do sucesso, seria alvo do racismo e do preconceito, pois enquanto estavam na Europa travou-se uma batalha na imprensa sendo Benjamin Costallat e Floresta de Miranda seus maiores defensores.

Muito embora a música continuasse a fazer alegria nas festas e salões, sua influência agora não era mais dos sons europeus que inspiraram os chorões com as suas flautas, violões e cavaquinhos na segunda metade do século XIX, mas sim a influência norte-americana, mostrando o seu som nos saxofones, banjos e baterias. Visualmente, era o início da convivência da música popular nacional com a música das "bands" tomando maior corpo. Os grupos de choros começavam a ser preteridos no grandes eventos pelas novas orquestras e assim os músicos foram obrigados a adequarem-se para o novo mercado de trabalho. A "Jazz-Band Os Batutas" marca uma nova fase no trabalho de Pixinguinha.

Além das apresentações e gravações que já naquela época faziam figurar o nome de Pixinguinha entre os grandes músicos brasileiros, as composições em parceria com letristas reforçaram estes méritos a ele atribuídos. Os dois maiores sucessos em que a música é assinada por Pixinguinha são "Carinhoso" (1937), em parceria com Braguinha, e "Rosa" (1937) cuja letra é de Otávio de Souza. O choro "Carinhoso" foi composto muito antes de receber letra e tornar-se conhecido do grande público (1923).

Na década de 40, Pixinguinha passa a dividir a autoria de suas composições com o flautista Benedito Lacerda. Este acordo se deu por razões comerciais, já que com o talento comercial de Benedito a obra de Pixinguinha foi produzida na mídia com mais vigor, resultando assim em um ótimo resultado financeiro para os dois. Foram gravados entre 1946 e 1951 34 discos, além da edição das músicas e do contrato com a Rádio Tupi, onde passaram a fazer um programa por semana. São músicas da dupla: Um a Zero , Naquele Tempo, Chorei, Cinco Companheiros, Pagão, Vou Vivendo, Segura Ele, Sofre Porque Queres, Cheguei, Proezas de Solon, Os 8 Batutas entre outras.

Na década de 60, já sendo reconhecido como um dos maiores músicos vivos do Brasil, Pixinguinha recebeu um convite do cineasta Alex Viany para fazer a trilha sonora do filme "Sol sobre a Lama". As letras das músicas foram feitas pelo poeta e compositor Vinícius de Moraes, que dentre outras, escreveu "Lamento", Samba Fúnebre" "Mundo Melhor" e "Seule".

Pixinguinha deixou com seu nome não somente as qualidades de um grande músico, mas também as virtudes de um grande ser humano, deixando transparecer ares de melancolia, segundo a Professora Odette Ernest Dias que conviveu com ele. Para ela, Pixinguinha "era uma pessoa muito boa. Era uma pessoa melancólica, tinha uma tristeza." Nas palavras de Altamiro Carrilho: "Ele foi o homem mais humilde que eu já conheci na minha vida. Um talento fora do comum, monumental (...)" E mais: "a convivência com ele foi uma verdadeira escola. Eu aprendi muito com ele e recebi aulas de humildade e sabedoria."

Outro grande flautista que convivieu com Pixinguinha foi o Professor João Dias Carrasqueira, que por várias vezes tocou ao seu lado. Ele disse sobre seu contato pessoal com Pixinguinha: "O Pixinguinha era uma figura simpática. Ao primeiro contato, não dava para perceber que ali estava um anjo, mas ele era um anjo. A felicidade dele era o choro. A felicidade de cada vez, em cada repetição fazer coisas diferentes."

O último compromisso de Pixinguinha foi um batizado na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Era um sábado de Carnaval, dia 17 de Fevereiro de 1973. A tarde do verão carioca estava bastante quente e antes mesmo de começar o batizado Pixinguinha fora acometido de forte dor no peito e levado para a sacristia. O infarto já estava acontecendo. Minutos depois, o triste fato para história da Música Popular Brasileira: Pixinguinha a partir daquele instante somente seria saudades. Pixinguinha acabara de morrer.

BIBIOGRAFIA:

CARVALHO, Hermínio Bello. "Choro, Chorões, Chorinhos". O Estado de São Paulo - Caderno 2, Pág.5, 17 de Setembro/95

CAZES, Henrique. "Choro, Chorões, Chorinhos". O Estado de São Paulo - Caderno 2, Pág.5, 17 Setembro/95.

________________ "Paris, Confusões e Influências". Revista Roda de Choro dois. Pág.11, Março/Abril 96.

DIAS, Mauro. "Choro, Chorões, Chorinhos". O Estado de São Paulo - Caderno 2, Pág. 1, 17 Setembro/95.

GOMES, José Benedito Vianna. "Pixinguinha - Choro : Presença e Aplicabilidade Estudo da FlautaTransversal no Brasil". UFRJ, Dissertação de Mestrado/97.

* SOBRE O AUTOR DO TEXTO:

- Professor no Departamento de Canto e Instrumento do Conservatório de Música da UFPel / RS.

- Mestrando em Flauta Transversa pela Faculdade de Música Carlos Gomes/SP, na classe do Prof. Marcos Kiehl.

- Bacharel em Música pela Escola de Música da UFMG , na classe do Professor Expedito Vianna.

- Idealizador do projeto de traduçao do "Flauta Tansversa - Método Elementar" de Pierre-Yves Artaud,Editado pela UnB.

 

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